Yuki Spiegel Kronika escrita por Petit Ange


Capítulo 1
Capítulo 1: Piloto


Notas iniciais do capítulo

E por fim...
Não podem imaginar, caros leitores, o quanto estou temendo por minha vida nesse exato segundo. XD
Espero sinceramente que não me apedrejem por esse projeto infeliz. ;__;
Qualquer comentário será mais do que bem-vindo. E muitíssimo obrigada por lerem tudo isso até o fim! >



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E o viajante virou as costas para seus semelhantes...

Gritar seu nome, como acontecia, de nada adiantaria. Eles sabiam perfeitamente disso, mas não conseguiam pensar em mais nada naquele breve momento, nenhum dos dois. Afinal, ele sumira em pleno ar, como faziam anteriormente. Desta vez, entretanto, ele não iria mais voltar. Estavam, enfim, sozinhos. Nunca planejaram nem desejaram, mas aconteceu. Habilidosas mãos haviam sempre guiado cada um de seus passos, e essas mesmas mãos agora pareciam ter vencido a guerra silenciosa da qual pouco suspeitavam.

...Roubando-lhes toda a esperança...

Haviam cruzado um longo caminho até ali. Houveram muitos momentos divertidos e outros tantos dolorosos, mas nenhum dos mesmos comparou-se àquele sofrimento de ter a verdade, nua e crua, caindo-lhes sobre os ombros feridos. As pernas do primeiro remanescente não suportaram aquele peso e cederam até tocarem o chão gélido; memórias e esperanças destruídas caíam-lhe em terra com os membros. Seu companheiro limitou-se a continuar a não acreditar no que acontecia, de lábios entreabertos.

...Voltando para onde realmente esperavam-no...

Uma brisa gélida soprou, levantando os fios leves de seus cabelos e suas roupas num compasso silencioso, numa ária de dor. Não houve nenhum retorno, nenhum pedido de desculpas... Não foi sonho, afinal. O cruel sabor da verdade impedia aquelas almas remanescentes de articularem sua surpresa. Reinou, por muito tempo, do mesmo jeito como era antes de aparecerem, o silêncio. Puro e simples.

...E então, seus semelhantes ergueram os olhos.

E, a partir daí, eles estavam todos mortos...

YUKI Spiegel Kronika[1]

Petit Ange

Capítulo 1.

[ Reino de Feuer[2] ]

Um trotar de cavalo atravessava, com pressa indescritível, a floresta fechada nos confins de Feuer. Ninguém em sã consciência atrevia-se a entrar ali. Histórias e mais histórias minavam aquela floresta com uma magia verbal, uma faixa que impedia os supersticiosos de aproximarem-se. Histórias que serviam para assustarem as crianças que ali perto viviam contadas pelas mães cansadas de um dia de labuta ou por senhores de idade ou jovens atrevidos que diziam ter entrado realmente lá.

Corriam-se as lendas de que não menos de cinqüenta pessoas, se não fossem até mais, só nos últimos dez anos, sumiam para nunca mais aparecerem no meio daquelas árvores densas. Uma bruma inexplicável enchia o ar de frio e morbidez, conferindo àquele lugar sua alcunha: a Floresta das Brumas. E lá em cima, para aquele que conseguisse sobreviver ao medo e ao labirinto emaranhado de verdes folhas, encontrava-se o prêmio: o Castelo de Névoa.

O nome não era dos mais criativos, mas ficou assim conhecido porque desde que o Lorde que lá vivia faleceu, há muitíssimas décadas atrás, o castelo ficou assim, inalcançável, envolto naquela floresta e naquelas brumas que mais pareciam querer protegê-lo. No começo, as pessoas acharam ser um mau-agouro, fantasmas, e tinham medo. Abriu-se uma nova rota que contornava a floresta para se passar, porque muitos mercadores e moradores do reino sumiam sem deixarem rastros, homens e mulheres. Depois, há algum tempo, o príncipe, irmão caçula do rei, que estava predestinado a ser o próximo, desapareceu. Mas o engraçado é que ele não atravessou a floresta (era outro, afinal, que nunca chegava perto da mesma). Então, o rei decidiu agir.

Ao descobrir o paradeiro do irmão, não hesitou. E, para a surpresa geral, ele voltou na manhã do dia seguinte da Floresta das Brumas. Foi recebido como herói, com suspiros aliviados, mas trazia no rosto a desolação. E somente pôde dizer:

“O príncipe está no castelo...”

Nunca mais se ouviu falar no príncipe, desde então. Nasceu uma bela princesinha que iria ocupar-lhe o lugar deixado às pressas, mas não era a mesma coisa. E depois de uma temporada desolada, como a de alguém que recusa-se a acreditar em alguma coisa, deixando todos curiosos sobre o que o pobre rei vira naqueles confins que tanto o mortificaram, ele voltou. Havia um brilho novo nos olhos dele, algo decidido. Todos sabiam, hoje em dia, que aquele trotar nobre de cavalo era o rei. E ele rumaria, como sempre, para a Floresta.

O rei já conhecia aquela sensação de longa data. Bastava adentrar os domínios da densa floresta e já sentia uma brisa gélida soprar ao seu redor, atrevidamente, como se estivesse-lhe fustigando o rosto. As árvores mal-dispostas atropelavam-se, davam-lhe ainda mais trabalho atravessar. E os olhos pesavam, como se zéfiros invisíveis estivessem forçando suas pálpebras. Talvez fosse isso que matasse os que ali entrava, pensou nas primeiras vezes. Hoje em dia, apenas seguia em frente, certo de que ele e o majestoso cavalo branco galopando velozmente cruzariam aquela mata densa em questão de minutos. E depois de momentos onde apenas ouvia-se seus gritos de guerra para o cavalo, o som das patas do mesmo tocando com violência o chão, bufando na busca frenética de energia, ele viu um brilho. A luz do sol que nunca tocava o interior da Floresta das Brumas.

Ao sair dali, a primeira coisa que sentiu foi uma súbita golfada de um breve calor. Feuer era um reino naturalmente quente, mas dentro daqueles domínios, o frio reinava por alguma razão. Entretanto, pouco sol e uma densa floresta tornavam aquele lugar muito mais frio que ali fora. E viu, sem importar-se com essas sensações do corpo, um imenso castelo.

As paredes eram velhas, da cor de um passado usurpado, cheirando a mortes e solidão vasta. Nada se via pelas janelas, como se o interior daquela morada fosse um vazio imenso, um vórtice que sugaria o idiota a aproximar-se demais. Nenhuma luz bruxuleante de velas, e tudo tornava-se ainda mais gélido e até mais escuro com aquela neblina que eternamente rodeava o local, como um escudo etéreo.

Respirou fundo, descendo do cavalo, acariciando sua crina em seguida. Continuava de olhos fixos naquela construção, esperando. Ninguém vinha. Em algumas situações, ele bem o lembrava, os golpes vinham instantaneamente, tão logo ele saía, com um farfalhar, das folhagens da Floresta das Brumas. Aquele dia, aparentemente, era um daqueles onde ele teria de tomar a iniciativa e esperar pelo combate que almejava todos os dias.

“SAIA DESTE CASTELO E ME ENFRENTE, MALDITO!” – havia a raiva genuína, como se o rei fosse, naquele momento, um animal ferido que reencontra o majestoso leão que o feriu, naquele grito. Mas não havia nenhum medo, nenhuma hesitação. Só havia uma vontade latente.

Um breve silêncio reinou depois daquilo.

E aquela rajada de vento foi como um furacão formando-se bem à sua frente. Projetou o corpo para o lado, pensando brevemente no cavalo, mas ouviu um relincho, e o cavalgar dele para longe. Amaldiçoou aquele que quase o havia ferido, como sempre fazia. Virou a cabeça para encarar uma flecha debilmente enterrada no chão, para, em seguida, voltar-se na direção do tiro. E viu, numa considerável altura, apoiado numa janela, o maldito que procurava sempre que vinha para aquele castelo.

Estava do mesmo jeito, ele. Os mesmos cabelos loiros e revoltos, os mesmos olhos dourados, com aquelas fendas felinas que pareciam ofuscar qualquer esperança que restasse em qualquer humano, as mesmas vestes negras exibindo um corpo esguio e forte. E, mais do que qualquer uma dessas características irritantes, jazia naqueles lábios pálidos o maldito sorriso jocoso com que lhe presenteava todas as vezes.

Com um salto, depois daquela tradicional troca de olhares, o rapaz pulou da janela. Para uma pessoa normal, aquele salto seria fatal; quebraria a coluna, se não o pescoço ou espatifar-se-ia no gramado recoberto de nevoeiro. Mas nada aconteceu com ele: com a mesma graça de um gato, ele pousou ao chão, com um baque surdo de suas botas, e o som da capa chicoteando o chão estalou nos ouvidos sensíveis do rei.

“Veio cedo hoje, Ehre.[3]” – foi seu cumprimento.

“Tsc... E você nunca se cansa de tentar me apanhar nessas abjetas armadilhas, Mausi.[4]” – o outro respondeu, mostrando desgosto e familiaridade simultâneos no rosto.

“Tenho esperanças de um dia ter sua cabeça na minha sala.”

“Sua sala? Este castelo pertence ao Lorde Hessen.”

“De fato, não lhe tiro a razão. Mas creio que ele não esteja mais vivo para reclamar a posse. Tampouco encontrei descendentes ou parentes para tal...” – havia sarcasmo em sua fala. E era sempre assim. – “Ah, será então que você veio vingar o pobre Lorde Hessen, Ehre?”

O rei engoliu em seco, sentindo o corpo retesar-se de desgosto. Por mais que aquela cena fosse corriqueira, todos os dias em que lá aparecia nascia em si um novo sabor de raiva, mais alguma coisa a odiar nele.

“Não seja cínico, criatura. Você sabe o que eu vim reclamar.”

As áureas orbes do rapaz loiro cintilaram, revelando uma breve hesitação imperceptível para a maioria dos humanos comuns.

“E creio que você também sabe que isso eu não posso dar.”

“Sim, eu sei, Mausi.” – respondeu o moreno, com um tom gélido. – “Por isso mesmo eu vim aqui. Vim roubá-lo outra vez, tal qual fez comigo.”

“Sabe que não posso deixar que o leve, Ehre.” – declarou.

Um vento cortante e repentino passou-lhe pelas capas de um carmesim de sangue coagulado, e os cabelos loiros balançaram, impedindo-o de ver com clareza a figura do rei à sua frente. O mesmo continuou encarando-o por algum tempo, esquecido e embebendo-se em sua própria raiva e decisão. Cada batida do coração daquele homem era-lhe uma afronta. Sentia ganas de parti-lo ao meio assim, sem importar-se com mais nada, como se fosse um animal qualquer. Mas restava, debaixo de toda aquela desavença, o natural espírito de respeito mútuo.

E, por mais que aquela criatura lhe tivesse roubado horrivelmente um bem muitíssimo precioso, talvez o maior deles, ele ainda tinha princípios; e eles aplicavam-se até mesmo naqueles casos.

“Tome, Mausi.” – dizendo isso, o rei jogou a espada reluzente que guardava-se naquela segunda bainha que trazia presa na cintura.

“Ah... Você não cansa nunca disso, Ehre?” – suspirou o loiro.

“Você luta comigo há tempo suficiente para saber que não.” – e avançou.

oOoOoOoO

[ Reino de Velikean[5] ]

Abandonar um local de clima quente típico do sul pelo norte e seus pinheiros cobertos de neve, num primeiro momento, pareceu-lhe uma loucura. Mas sua vida obrigou-lhe a fazer muitas loucuras, muitas das quais ele não gostou nem um pouco do resultado. Vendo por esse lado, então, não tinha porque desgostar daquele clima maldito e seco, que fazia tilintar o corpo nas primeiras semanas; comparado com outras coisas que aconteceram pelos séculos afora, aquilo era brincadeira de criança.

E depois, fazia muitíssimo tempo que ele estava lá. Primeiramente, é claro, foi uma brusca mudança e afetou-o por demais, mas depois, acostumou-se. Entre isso e a morte, não foi nem um pouco difícil escolher. Aprender uma língua nova, costumes novos, lidar com um clima e cultura novos... Nada disso, de fato, doeu-lhe muito. E foi até proveitoso, ao final. Agregava um pouco mais de cultura e inteligência, isso era bom. Um dia, tudo isso seria de extrema valia para sua liberdade.

Havia uma fina camada de neve cobrindo o gramado imaculadamente verde, tingindo-o de um branco puríssimo, estendido até onde seus olhos, exemplares de um misto de âmbar com a cor dourada do mel, podiam alcançar. Ergueu os mesmos para o céu fracamente nublado, e via os flocos diminutos caindo por todos lugares. Estendeu a mão para tocar num deles e sentiu o frio que transmitiam. Lembrou-se, com nostalgia, da primeira vez que viu neve: foi naquele mesmo país, dentro de uma carruagem. Maravilhado, ele quis abrir a janela e tocar naqueles pedacinhos brancos de sonho, mas uma mão firmemente agarrada na sua e um rosto cabisbaixo impediam-no de demonstrar aquela maravilha que sentia. Em vez disso, ele via de relance aqueles flocos enquanto encarava o rosto derrotado que, em vão, tentava sorrir.

Piscou nervosamente, soltando um longo suspiro. Uma nuvem etérea de fumaça que saiu de seus lábios dissipou-se rapidamente no ar, fazendo-o cravar brevemente o olhar naquele pedaço de nada. O corpo ainda teimava em tremer de frio, graças ao calor proveniente do treinamento que agora começava a ir embora, cortesia do suor que ainda lhe restava no corpo gelando impiedosamente. Sentiu outro floco lhe cair na mão, e fechou-a rapidamente, para depois reabri-la e ver uma pequena poça de água escorrendo-lhe pelos dedos. Uma onda de sentimentos sem nome invadiu-lhe.

Fechou seus olhos, sentindo um torpor engraçado no corpo, como se nem lembrasse que, em algum tempo que aconteceria em breve, teria de voltar ao trabalho. Já sentia no estômago as primeiras reclamações de fome, mas elas foram brutalmente interrompidas, tal qual seus pensamentos que tomavam forma, por uma toalha displicentemente jogada sobre sua cabeça.

O rapaz abriu os olhos rapidamente, num estado de alerta total, tomado de um susto, mas só viu o tecido tapando-lhe a visão. No mesmo instante sentiu contra a garganta o toque frio de metal, e respirou profundamente, acalmando-se, tirando com vagar aquela toalha do rosto.

“Cê tá me tirando pra palhaço hoje, né não?”

Ergueu as orbes para encarar a figura que apontava-lhe a arma, e constatou que era exatamente quem pensou que fosse. Aquele homem de gestos irritantes de uniforme e medalhas cintilantes.

“Senhor Nikolaievich para você, soldado.”

O homem em questão, Andrei Nikolaievich[6], era alto e de compleição física bem feita; ombros largos e corpo esguio e magro. Trajava um uniforme semelhante ao seu, impecável, mas trazia por cima uma capa negra, a cor da realeza e do luto, usada especialmente em dias de bastante frio, como era aquele. Medalhas e condecorações mostravam o poder que o militar podia exercer sobre  seus subordinados, até mesmo sobre ele, se quisesse. O rapaz encarou-o e perscrutou sem vontade aqueles olhos escarlates conhecidos de longa data, aquele rosto arrogante, para logo em seguida, encarar a espada.

“Permita-me lembrá-lo, ‘senhor Nikolaievich’...” – sua voz foi carregada de sarcasmo e desgosto por sua presença. – “Ainda estamos no intervalo. Posso chamá-lo do que eu quiser.”

“Lembre-se também, meu caro Souma...” – respondeu com o mesmo tom, mas não apagava do rosto o risinho superior. – “Que, além de seu instrutor, também sou seu rei.”

Cansado daquela atitude, o militar ergueu-se do banco onde estava sentado, afastando antes disso com um gesto irritado aquela espada de sua garganta.

“Larga de ser um pé no saco, ‘majestade’!” – novamente encheu-se de sarcasmo, mesmo irritado. – “Eu tô no meu descanso! Já não basta o que me incomodou hoje no treino e o que me incomoda naturalmente, que mais cê quer?”

“Já faz dois minutos que o recreio das senhoritas acabou.”

Então, pela lógica, ele veio buscá-lo pessoalmente. Devia sentir raiva ou felicidade?

Souma engoliu em seco, cerrando os punhos e tentando conter a onda de ódio que enchia-lhe o corpo (como se alguém fosse acreditar mesmo que ele pudesse sentir-se feliz com aquilo). Via-se torcendo seu pescoço, amarrando-o e ateando fogo no corpo, chutando-o para cair de um desfiladeiro... Talvez quebrar dedo por dedo, depois pedacinhos do braço e pernas... Em suma, se pudesse ‘cair matando’, certamente o faria.

Entretanto, o que o irritante ser havia lhe dito era verdade. Era duplamente seu superior e ele aturava suas faltas de respeito, a exemplo daquela própria que foi seu diálogo breve com ele, por demais. No fundo, até pensava que ele e a irmã deviam sentir-se honrados por estarem de favor num país como aquele sem serem castigados por cada palavra dita em péssima hora. A irmã sempre fazia-o questão de lembrar o fato, e reprovava-o terrivelmente acerca essas chispas trocadas com o rei.

Pensar nas palavras dela fizeram-no engolir um palavrão de resignação, e jogando a toalha de novo para o outro, com força e sem sequer usá-la, suspirou.

“Desculpe, senhor Nikolaievich. Eu estava distraído, não ouvi que havia acabado o descanso. Peço perdão, isso não voltará a acontecer.”

“Assim espero, soldado.” – e voltou a andar com o outro logo atrás de si.

Ficaram assim, num silêncio tenso por alguns instantes. O lugar onde o rapaz loiro costumava descansar ficava relativamente afastado da área de treinamento (além de sua natural “anti-socialice”, era também por uma questão de preservação da irmã; a pobre num ambiente infestado de víboras uniformizadas era a última coisa que ele queria!), o que certamente era uma pedra no sapato de seu superior, que chegou ao cúmulo de vir buscá-lo pela demora (merecia, o idiota! Ele era sempre um intrometido nos seus assuntos).

“Sua irmã não veio vê-lo hoje, não é?” – ouviu Andrei comentar, distraído. – “Aconteceu alguma coisa com ela?”

A menção da palavra ‘irmã’ fez o jovem loiro retesar-se totalmente, azedando o rosto. Detestava quando qualquer homem começava a trazer o nome de sua irmã à baila. Quando isso acontecia, ele era categórico e breve: negava tudo, nada permitia e impedia-os até mesmo de continuarem a insistir. Mas, mais do que detestava quando aqueles seus colegas ou outros homens por aí falavam dela, odiava quando seu superior falava dela.

E, para seu desgosto, ele costumava comentar distraído de vez em quando “que a vira dia desses no jardim/cozinha/corredores” ou “que de vez em quando via-a passar até aquele esconderijo tosco dele”. Enquanto o militar de cabelos ébano falava isso, o garoto sentia o sangue de ódio borbulhar. Mais um pouco e ele próprio começaria a virar vapor d’água. Pensava, às vezes, que ele devia fazer isso só para incomodá-lo, porque todos sabiam dos modos dele em relação à irmã, mas ao mesmo tempo, nem queria pensar que ele falava aquilo de brincadeira ou a sério; irritava-se igual.

“Eu não quis que ela saísse com esse frio.” – Souma resmungou simplesmente.

“Ah... Então está sem almoçar?” – num tom indescritível, o soldado encarou o outro por cima dos ombros.

“Que que tem?” – encolheu-se instintivamente, detestando ter que olhar para aqueles olhos vermelhos e aquele rosto pálido. – “O que cê quer agora?!”

“Nada demais.”

“Até parece...”

Ah, aquela pose arrogante e aquela voz maldita... Ele o odiava, definitivamente.

“Só estava pensando se você vai desmaiar nos primeiros cinco minutos. Seria uma lástima se acontecesse.”

“Como é?”

Não... Talvez odiar fosse pouco demais. O execrava também, só para dar um bom complemento à lista de sensações desagradáveis que sua presença trazia.

“Essa falta de modos vai valer alguns exercícios extras e uma luta demonstrativa comigo. Nada demais, mas acho que devia ter comido.” – o tom era ainda mais distante, e o rei mantinha o sorriso divertido.

Como se ele não estivesse acostumado àquela sua rebeldia... Aquilo não era punição por sua falta de educação, era simplesmente uma diversão às suas custas.

Maldito... Ele o queria morto, isso sim!

oOoOoOoO

[ ... ]

Lentamente, o torpor onde estava envolto foi trocado por uma sensação de vazio. Uma dor de cabeça que latejava por toda sua extensão o impedia de abrir os olhos. Com a consciência restaurada, ele teve um lampejo. Um raio de pânico atravessou a espinha, indo alojar-se na forma de uma pontada de ânsia no estômago.

O vazio transformou-se em medo, e aquela dor de cabeça não queria passar, agravando-se ainda mais com sua agitação. Abriu os olhos, recebendo todo o calor do sol neles. Não fazia idéia de que lugar era aquele ou porque ali estava. Olhando ao redor, pôde ver que o lugar em questão era branco, de uma grama sedosa e sem nenhuma árvore. O céu era azul-pálido, um tom fugidio, contrastando em máxima perfeição com o gramado ebúrneo. Não tinha consciência de onde estava, de verdade, e aquele vazio, sem pássaros ou sinal de vida, assustou-o.

“Nami...[7]” – ouviu uma voz em sua cabeça.

Fechou os olhos, pondo as mãos sobre as têmporas. Aquela nova pontada jurou matá-lo, mesmo. E projetando-se através de suas pálpebras, formou-se a primeira imagem, a única lembrança que parecia ter na cabeça: uma mulher. Loira e esbelta, trajando um vestido longo negro e sensual com detalhes em ouro e seda cinza. Ela agarrava-se aos seus pés com seus olhos azuis suplicantes, e havia uma estranha luz azulada em seu peito.

Ele olhou-a melhor, e viu que era um pequenino pedaço de algo semelhante ao vidro. O objeto estava adentrando, vivamente, por conta própria, o peito daquela mulher.

“Nami!...” – ela gemeu de novo, e o coração dele disparou. Queria abrir os olhos, mas não conseguia. Estava totalmente fixado naquela visão. Sentia o rosto esquentar ainda mais que todo seu corpo, e aquela sensação de extremo cansaço que estava começando a ter esqueceu-se, sendo substituída por uma sensação quase que de paz.

Mas no mesmo instante aquela paz desfez-se, porque ele viu nos olhos dela que estava sofrendo. Julgou aquilo uma lembrança, talvez a única desde que caiu neste lugar abençoado e silencioso, e soube que alguma coisa de muito ruim aconteceu com aquela moça de madeixas douradas que sussurrava tão dolorosamente seu nome, como se ele fosse o único capaz de protegê-la.

Ela dizia ‘Nami’. Seria esse, então, seu nome?

“Não posso mais... Pegue meu cajado, Nami...” – ouvia-a murmurar fracamente, com a cabeça contra a perna dele. – “E vá até a Arael Magister[8]. Ela certamente irá ajudá-lo... Vá depressa... Eu lhe imploro... Salve-me...”

Aquela luz fraca e azulada desapareceu, assim como o pequeno pedaço de vidro que estava enterrando-se no peito daquela dama. E, no momento que tudo aquilo desapareceu, ela teve um último lampejo nos olhos marejados e desabou aos seus pés.

Nami abriu os olhos no mesmo instante, com o corpo trêmulo, e sentiu uma lágrima lhe escorrer pelo rosto pálido.

“Quem... É você...?” – sussurrou, sem dar-se conta do ridículo de estar falando com uma imagem de sua mente.

Sua mão escorregou até sentir um toque frio. Tirou-a rapidamente, retesando-se todo, mas viu ao seu lado, caído, o que devia ser o tal cajado. Tinha uma base extensa e era fino, de uma coloração meio dourada, meio âmbar, com um desenho de uma espécie de asa de um pássaro ou de um anjo na extremidade superior e uma jóia rubicunda na extremidade inferior. Não soube para quê servia, mas aquela mulher em sua única memória lhe dizia para pegar aquilo, que dizia ser dela.

Algo em si também dizia para pegar aquele cajado e procurar a tal ‘Arael Magister’. Aquela dor pungente em seu peito, como se lhe tivessem tirado algo muito valioso, mandava-o fazer aquilo. E imediatamente.

oOoOoOoO

[ Reino de Feuer ]

O piano de cauda conferia um ar ainda mais sorumbático à sala. A primeira vez que ali entrou, achou que aquele cenário fosse tirado de algum Inferno, de algum pesadelo muito vivo. E lembrava-se de que ficou a encarar estupidamente aquilo tudo, sentindo vagamente um arrependimento de ter abandonado aqueles prazeres almiscarados e delicados, todas os luxos e alegrias de seu antigo lar por um ambiente repleto de velas bruxuleantes espalhadas pelos corredores escuros, que nenhuma luz do sol alcançava. Sua surpresa apenas acabou quando sentiu um par de mãos cálidas lhe tocando os ombros. Neste momento, todo o medo dissipou-se no ar.

De fato, desde então, suas manhãs e noites eram de um contentamento permanente. A primeira impressão que teve do castelo não foi das melhores, mas aos poucos aprendeu muitas coisas, inclusive que aquele podia ser um bom lugar. As velas que fracamente iluminavam e davam um aspecto macabro para o pedaço escuro à frente eram uma diversão à parte. Havia também aquela exigência em fazer daquele castelo frio um lugar um pouco mais humano; pôr alguns quadros, talvez... Afinal, Mausi havia tirado todos dali (isso se, quando chegou, houvessem muitos).

Enquanto pensava nisso, tinha em seus ouvidos as notas contínuas de uma melodia delicada. Mausi, ao contrário de si, era sorumbático como aquele castelo, com uma eterna sombra de amargura sondando sua silhueta, e preferia sempre tocar coisas mórbidas e tristes, como a Marcha Fúnebre ou o Ignis Spiritus (sua voz cantando aquelas linhas em latim enquanto dedilhava chegava a inspirar medo), o que escandalizava sua pessoa. A sua vida, afinal, precisava de um pouco de alegria, diabos! Então, ele afastava gentilmente o loiro do piano e sentava-se ele, tocando coisas que em nada combinavam com o ambiente, como Music Box Dancer ou o At The Cradle (esse tinha um quê ainda sim melancólico que caía ao gosto do loiro). E lá ficavam eles, sorrindo e roubando-se o lugar ao instrumento por muito tempo.

Desta vez, os acordes que enchiam a ampla sala eram de uma canção conhecida, uma das primeiras que aprendeu: Gymnopédie nº1. E ouvia, misturando-se à percepção da música, o som das brigas. Desde que evoluíra, naquele dia que parecia tão distante, os ouvidos ficaram extremamente aguçados. Ele ouvia à distância tudo o que queria e até o que não desejava. Ouvia o som das espadas se chocando, dos corpos caindo repetidamente ao chão, os rugidos de guerra, o som de suas determinações... E enchia o peito de uma tristeza que chegava a doer fisicamente.

Distraiu-se brevemente ouvindo-os brigar ao compasso da melodia de Erik Satie, e perdeu por completo a noção de passagem do tempo.

“Amin...[9]” – a voz que sussurrou seu nome era como uma carícia na escuridão.

Uma delicada nota tornou-se um som insuportavelmente agudo que reverberou por todo aquele salão solitário de densa escuridão.

“Ah... Mausi, que susto...” – o rapazinho virou-se para encará-lo, erguendo-se de imediato do banco.

“Não precisa erguer-se, Amin.” – o loiro impediu-o com um gesto de sua mão, dali mesmo da porta, e o outro não teve escolha senão sentar-se de novo. – “E então? Há quanto tempo está aqui? Achei que estivesse dormindo.”

O som da capa farfalhando no chão quando o rapaz menor remexeu-se no banco sombrio pronunciou-se no silêncio da cena.

“De fato, eu estava dormindo, Mausi.” – sorriu. – “Mas acordei quando ouvi-o sair da cama.”

Naquele momento, o loiro suspirou pesadamente, enchendo-se de pesar. Aquele sorriso do companheiro ele bem conhecia; o garoto não estava feliz. Caminhou até ele, em total silêncio, e só viu a passividade no outro. Aquilo, por alguma razão, não o alegrou. Apenas deixou-o com um nó ainda maior na garganta. Ao chegar perto dele, por fim, tocou-lhe os fios sedosos e morenos do seu cabelo, sentindo como se aquela carícia fosse uma punhalada em seu peito.

“Sei que não devia perguntar... Mas... Era meu irmão de novo, não é...?”

Até hoje, o rapaz alto não conseguia conceber como o rei de Feuer teve a capacidade, a sanidade, todo aquele conjunto de força exterior e interior para atravessar a Floresta das Brumas, aquela que ele próprio encheu com todo seu rancor e poder. Ninguém conseguia fazê-lo. Ninguém.

“Sim. Era o Ehre de novo, Amin...” – e tocou-lhe nos ombros, porque sabia que o homem só perdeu a batalha, não a guerra. Ele voltaria de novo e de novo, enquanto pisasse sobre aquele solo.

O moreno sentiu por cima das roupas negras o toque gentil e ergueu uma de suas pálidas mãos para retribuir. Pôs a mão em cima da dele, fechando os olhos, deixando escapar um suspiro de contentamento.

“Sabe, Mausi... Fico pensando se, um dia, meu irmão irá compreender que eu não fui seqüestrado.”

“Não. Isso está além da compreensão dele.”

O príncipe não foi seqüestrado, como as más línguas diziam. Ele quis vir de livre e espontânea vontade com o outro. Implorou para que o levasse também; e no calor do momento, foi aceito. Entretanto, hoje, Mausi sentia que fez algo muito errado. Tirou o príncipe herdeiro de seu lar e o privou de todo e qualquer vestígio de sua antiga vida. Tirou-lhe até mesmo sua humanidade... E sentia que nunca iria perdoar-se por isso.

Não censurava o rei de vir tentar obstinadamente tomar-lhe de volta o irmão caçula. Ele próprio, no papel de irmão mais velho, se o fosse, faria o mesmo. Enfrentaria uma criatura lendária e muitíssimo mais forte, uma floresta cheia de perigos e até mesmo o Diabo para salvá-lo. Mas, ao invés de ter tão nobres sentimentos, o que ele fez foi terminar de destruir a vida do outro.

“Eu quis me tornar ‘eterno’... Foi minha escolha a de viver ao seu lado, Mausi...”

O ex-príncipe continuava desabafando, com aquela sua voz num fio trêmulo, e o loiro sentiu o aperto delicado nos ombros do mesmo falhar. Desviou os olhos, sentindo o peso da culpa. Se tivesse o poder de voltar no tempo, certamente gostaria de demover sua amada criatura daquela idéia louca que só lhe trouxe contratempos.

Abandonar o reino, o irmão, a vida, a humanidade... Tudo só por ele... Só para poder ficar sempre junto, nunca deixá-lo sozinho, como o mesmo disse... Para alguém que nunca teve nada além de solidão na vida aquilo foi como o néctar amargamente doce derramado diretamente da copa de Vênus.

“Me desculpe, Amin.” – deixou escapar.

Imediatamente, o garoto que estava sentado virou-se, erguendo o rosto até poder encarar o companheiro. Os olhos dourados com fendas felinas de ambos encontraram-se num breve relance, e naquele encontro de milésimos de segundo todo um universo foi apresentado dolorosamente, sem nenhum ornamento, ao vampiro de cabelos escuros.

“Você está triste, Mausi...?”

Uma mão pálida estendeu-se nas trevas fracamente vencidas pela luz das velas e veio tocar o rosto fantasmagórico do loiro, que retesou-se brevemente.

“Está triste, né...?”

O rapaz de figura esguia deixou-se acariciar por aquele ser que tanto adorava. Ergueu sua mão do ombro dele até sua própria face, segurando aquela mão pequenina nas suas. Quando encarou as orbes douradas como o brasão que usava na capa carmesim puída, uma onda de ternura e melancolia, numa mistura tortuosa, rebentou-lhe no peito.

“Não. Estar com você só me traz felicidade, Amin.” – foi o que disse. Mas o abraço que dignou à ele, inclinando-se contra seu corpo, estava dizendo justamente o contrário.

oOoOoOoO

[ Reino de Velikean ]

Com efeito, a neve caía mais intensamente no fim da tarde. O sol já se pôs há muito tempo, mas por puro capricho, como se ele fosse o brinquedinho favorito daquele cretino sádico (o que, de certa forma era verdade, porque a pior parte ficava sempre com ele), o soldado loiro foi liberado somente naquele momento de seus deveres. “Até amanhã, Souma”, ele disse com aquele sorrisinho superior, deixando-o cheio de cansaço e machucados sozinho por ali (o maldito sempre, de algum jeito, saía daquele jeito! Se cortassem-lhe uma perna, era capaz dele continuar naquela pose impecável, o patife!). Só de pensar nisso, o sangue ferveu. Suspirou longamente, tentando controlar-se, sentindo na pele quase que o contato direto com aquela neve. Estava com muito frio, mesmo tendo exercitado-se por demais.

Quando entrou no castelo, foi engolfado por um calor abafado, uma sensação de relaxamento o invadiu bem em tempo. A realeza dirigia-se à frente e ia viver seu mundinho, ele virava a esquerda e ia cuidar de seus ‘outros’ afazeres. As luzes do castelo estavam todas acesas, dando-lhe uma sensação contente. Para quem esteve enfrentando o frio e o escuro da noite (incrível como o Inverno daquele país sequer era iluminado pelo turbilhão de estrelas que continha o céu), aquele ambiente quente e aconchegante, mesmo não sendo seu verdadeiro lar, era tudo do que ele precisava.

Ele chegou na ala da criadagem e abriu uma das primeiras portas. O quarto estava escuro e impecável. Era muitíssimo simples, sem nenhuma espécie de ornamento, tinha apenas um armário e duas camas, próximas uma da outra, com um bidê separando-as. Em cima do mesmo, havia aquilo que os humanos provavelmente chamariam de ‘abajur’, item indispensável para o que os que ali viviam tivessem uma boa noite de sono. Pouco tempo depois, saiu devidamente vestido com outra roupa, sentindo-se outro depois de um bom banho. Tomou o mesmo caminho pelo qual veio, mas dessa vez, antes da entrada, virou para um lado diferente.

O ar da cozinha, quando adentrou-a, era excessivamente quente, isso ele bem o sabia. Se tivesse aparecido ali antes, seria até capaz de morrer de choque térmico. A maioria dos criados estava ocupada em suas próprias funções, sobrando, enfim, para uma única pessoa cuidar das louças de última hora (que sempre eram muitas... Realeza maldita). Esta pessoa, como o soldado imaginou, era quem estava procurando.

Ver aquela silhueta loira fez o garoto esquecer de toda sua irritação e o péssimo dia que teve. Com um sorriso peralta, ele fez com uma destreza e silêncio inimagináveis o percurso que o afastava dela. Ouvia-a tilintar copos, alguns pratos, e estava crente de que, naquele dia, iria conseguir o que tanto queria. Estendeu as mãos, saboreando de antemão o gozo que seria vê-la assustar-se, e já visualizava a cena em sua mente. Só rezava para que ela não quebrasse nada.

Mas quem tomou um susto foi ele, quando um movimento incrivelmente rápido partiu dela, fazendo-o instintivamente estender a mão. Em tempo, o placar final foi 1x1: ele estava segurando o pulso úmido da garota que tinha em mãos uma afiada faca de cortar peixes ainda pingando água.

“Por que sempre quando eu tento te dar um susto é você quem acaba me assustando, Nezumi onee-san[10]?”

Os olhos num misto de mel e âmbar, como os seus, analisaram-no de cima a baixo.

“Que bom que veio, Souma-kun. Já estava ficando preocupada com a sua demora, sabia?” – ela afastou uma mecha de cabelo loiro que caía pelos ombros e soltou-se dele prontamente, voltando a cuidar da louça. – “O que aconteceu hoje?”

O garoto voltou a azedar-se:

“Tava muito frio e o rei, de novo, pegou no meu pé. Aquele cretino... Ficou me amolando a tarde toda! ‘Soldado Souma isso’, ‘soldado Souma aquilo’... Pro diabo com aquela espada de merda! Um dia eu vou fazer aquele cara engoli-la!” – resmungava como um menininho, pondo as mãos no bolso.

A jovem sorriu, divertida. Num primeiro momento, todos pensavam que Souma Kyoku era o irmão mais velho: era alto e tinha um rosto muito sério, vivendo sempre ao redor da irmã pouco mais baixa, protegendo-a até de uma brisa mais forte. Mas, ao contrário do que se acreditava, Nezumi era cinco anos mais velha. Tinha a aparente fragilidade da mãe, mas os que burlavam a segurança superprotetora do caçula em busca daquele pedaço de sonho tinham uma surpresa (terrível): a garota era mais forte que uma manada de touros, e muitos dos hematomas do loiro que não eram fruto de treinamentos militares estavam lá de prova.

“Você e essa sua birra com o rei Nikolaievich...” – ela continuava rindo. – “Nem adianta mais dizer que você deve parar com isso. Aliás, não entendo nem de onde vem esse ódio todo!”

É claro que ela entendia, estava mentindo, ele sabia. Se havia alguma coisa que nenhum outro casal de irmãos tivesse em tamanha quantidade era aquilo: aquela cumplicidade muda deles, a capacidade de saberem instintivamente, com um olhar, com um toque, tudo que sentiam, o que estava perturbando-os ou qualquer coisa do gênero. Havia quem achasse aquilo meigo, mas se tratando de dois órfãos com um histórico nada honrado, aquela característica era mais uma maldição.

“Onee-san, vai vir de novo com aquele sermão de que o rei nos ajudou quando precisávamos e blábláblá?” – ele coçou a cabeça, soltando um suspiro contrariado.

“Net.[11] Você já é bem grandinho pra isso.”

O rapaz dos cabelos loiros ficou sem reação quando ela virou a cabeça de novo para cuidar dos afazeres da cozinha que lhe eram cabidos. Odiava quando ela entrava naquela espécie de coma silencioso; ela podia pensar qualquer coisa neste momento, e haviam caminhos que o garoto não queria que ela tomasse. Aquela simples frase causou um rebuliço dentro da mente do garoto junto com este pensamento inoportuno, fazendo-o adiantar-se um passo, esquecendo-se de todo o respeito que tinha pela irmã. Agora, mais assemelhava-se ao garotinho de cinco ou seis anos que tentava animá-la da forma que todo garoto conhece.

“Ah!...” – Nezumi virou-se, assustada por um breve momento, quando tomou um soco no ombro, fazendo-a cambalear levemente para a esquerda. O rosto contorceu-se numa raiva repressiva de quem não gostou nada daquilo. – “Qualé, Souma-kun?! Perdeu a noção do perigo?!”

“Pára de falar essa língua eslava nojenta quando estivermos sozinhos, inaria.” – ele disse simplesmente.

Os lábios da garota entreabriram-se num gesto de surpresa. No fim, aquele elo que eles tinham podia ser irritante, fazia-os sentirem na pele a tristeza do outro, mas também tinha o lado bom: eles sabiam quando estavam tentando consolarem-se ou animarem-se mutuamente. E naquele momento, ela soube que a última coisa que ele queria era que ela ficasse enterrada em lembranças como o fazia pelas tardes afora quando não tinha sua presença por ali.

“Quem cê pensa que é pra me chamar de ‘magricela’, iyasii?” – dizendo isso, largou a louça que estava lavando e o encarou ameaçadoramente.

“Agora cê quem perdeu a noção do perigo, mina?!” – pôs-se na frente dela, ameaçando-a com sua altura (é claro que ela nunca ficaria intimidada só com isso, mas dava um efeito legal à brincadeira). – “Ninguém me chama de ‘chorão’ e fica por isso mesmo!”

Houve, a partir daí, um duelo ridículo de mais xingamentos nostálgicos na linguagem sirenita que só reservavam para eles, intercalados com mostras de língua e até alguns ensaios de socos facilmente desviados. No fim, os dois mais pareciam duas crianças que fugiram do banho e estavam ali, sujos da espuma da louça, brigando na mais divertida das brincadeiras. Nesses momentos, Souma sentia-se satisfeito consigo mesmo; conseguia proteger a irmã dela própria por alguns breves minutos.

“Senhorita Kyoku!”

Nezumi gelou ao ouvir a voz elevando-se do corredor, e puxou as mãos do irmão de imediato para dentro da água, fazendo-o soltar uma exclamação surpresa.

Uma mulher de corpo robusto e olhos azuis apareceu à porta, vestida com o rigor das serviçais mais antigas do castelo. Tinha uma aura bondosa, mas inspirava respeito na maioria esmagadora dos que lá viviam. Ela mantinha o olhar fixo na cena que presenciava: a garota e o irmão cobertos de espuma e ambos com as mãos na louça.

“Senhorita Irina!...[12]” – ela saudou, com um sorriso amarelo.

“Senhor Souma... Ajudando sua irmã com a louça de novo?” – ela perguntou, com uma sobrancelha arqueada.

“Ah... Sim, senhorita Irina...” – até mesmo o rapaz tremia em sua presença, quem dirá ouvir a voz dela no corredor de uma hora para outra. – “E-eu achei que podia ser útil por aqui, né...”

“Que amável.” – sorriu, inclinando a cabeça num gesto aprovador. – “Ah sim, Senhorita Kyoku, não esqueça de levar as roupas de cama para cima depois que acabar aí.”

“Sim, senhorita.”

A governanta, que supervisionava os dois órfãos desde que chegaram confusos e famintos no castelo, saiu dali com rapidez, deixando que respirassem em paz novamente. O garoto tirou as mãos da pia cheia de água e a mais velha ficou ainda olhando para lá, vendo se a senhora não voltaria de novo.

“Essa foi por pouco...” – suspirou ele.

“Temia por nós dois. A senhorita Irina é muito gentil, mas quando o assunto vira insubordinação ou falta de disciplina dos empregados, ela vira outra criatura! Só cometi um deslize sob a sua supervisão.” – ela sussurrava, como se as paredes tivessem ouvidos. – “Só um. E me dá medo só de lembrar! Até invejo você, sabia, soldadinho?”

“Hã? Por causa daquele mané? Cê tá bem louca?!” – cruzou os braços. – “Até parece que é muito gentil, como cê fala! Aliás, acho até que cê precisa de tratamento psiquiátrico por achar isso. Ele é um pé no saco! Prefiro uma governanta que é possuída pelo demônio do que uma voz calma e uma bela surra de espada como treino.”

“Souma-kun, ‘aquele mané’ é o seu rei. Além disso, lembre-se do que a mamãe dizia: o que não mata, fortalece.” – e sorriu, radiante.

Souma engoliu em seco.

“Hã... Onee-san, vai levar as roupas de cama, cuidar da sua vida... Eu termino o serviço por aqui. Até seco pra você.”

“Ei, mas...”

“Pode ir. Qualquer coisa, eu digo pra senhorita Irina vir dar uma surra em mim.” – como se a afável mulher fosse capaz daquilo...

Nezumi hesitou por um momento, mas no fim, deu de ombros, dizendo qualquer coisa como “Falou”, que ele não ouviu, distante. Se eles herdaram muita coisa da mãe, inclusive a teimosia, o irmão, por infelicidade, acabou por ganhar de brinde a do pai. Bela combinação. Saiu dali, deixando o rapaz loiro a sós, encarando a imagem de suas próprias mãos distorcidas na ondulação da água.

oOoOoOoO

[ ... ]

Tracejados tênues de um branco etéreo enchiam o ambiente de uma espécie de aura mística. O cheiro adocicado de florais desprendia-se de um incenso amparado por um exemplar com a forma de um gracioso dragão. Não havia nenhum som naquele lugar, como se ele fosse um mundo acusticamente isolado, algo à parte. Podia-se ouvir o mínimo ruído, uma simples respiração, um bater do coração.

No amplo espaço branco e límpido como as nuvens do céu, uma sombra negra divisava-se. Era a única coisa que destacava-se ali, destarte os complementos em cores claras e harmoniosas. Aquelas fumacinhas delicadas que desprendiam-se dos florais rodeavam-na, como se aquela sombra fosse um vórtice que as obrigava a girar ao seu torno, num compasso gracioso. Uma das mãos estendeu-se, tocando o silêncio perfeitamente.

Abriu os olhos, límpidos como a grama de uma campina. Não havia, entretanto, nenhum raio de luz, nada que indicasse que houvesse vida ali naquele corpo.

Mas dentro dele, um turbilhão formava-se: aquela silhueta ouvia sem ter ouvidos, via sem ter olhos. E os pequeninos redemoinhos, quase imperceptíveis, que formavam-se a sua volta com aqueles traços que desapareciam no ar pareciam querer tomar forma, libertarem-se das amarras que sua presença significava. O cheiro doce do incenso ficava mais forte a cada momento. Projetando imagens em algum lugar de si própria, ela via pessoas e situações; ouvia suas vozes, media suas vontades, atraía-as invariavelmente àquele destino que vibrava como um sino.

“Chegou o momento... As cortinas ergueram-se por vontade própria...”

E seu sussurro, como se estivesse num profundo transe, alcançou os confins daquele pedaço de infinito perolado, reverberando pelas pilastras e pelo pó brilhante levado pela brisa quase insensível. Tudo mais parecia ter saído diretamente de um conto-de-fadas, de algum sonho muito agradável.

“Resta saber se os atores estarão dispostos a... Abraçarem o destino.”

Um sorriso mal escondido pelas trevas que pareciam aparecer do nada brotou silenciosamente no rosto daquela pessoa. E aquilo pareceu uma senha para que a palma da pálida figura de negro emitisse um forte clarão.

oOoOoOoO

[ Reino de Feuer ]

O salão enchia-se com as melodias de Before Dawn. Às vezes, aquela intimidade toda que o garoto tinha com o piano incomodava o loiro, mas só então ele voltava a recordar e fixar em sua cabeça que, de certa forma, aquele instrumento era a única coisa que ainda restava; uma breve consolação para quem foi criado para, dentre muitas coisas, ser um bom pianista. Estendeu-se melhor no divã, como se afundar naquele pedaço de móvel fosse sua salvação, querendo desesperadamente alguma coisa, mas sem saber o quê.

Em verdade, sabia que tanto o garoto ao seu lado quanto ele próprio detestavam quando ficava assim, mas no momento, não conseguia estar de outro modo. Fazia tempo que uma visita de Ehre não o perturbava daquele modo. Talvez por ver nos olhos do rei algo que ele próprio via em si: inspiração. Aquele velho espírito de “hoje a sorte irá sorrir para mim”. Mas o mundo não era dado a essas esmolas. E esmagar suas próprias esperanças refletidas nas daquele homem, de certa forma, lhe trouxe a certeza de que aquela felicidade na qual estava embebido iria acabar algum dia, abruptamente, como a do rei de Feuer acabou também.

“Está com algum problema, Mausi?” – ouviu a voz dele.

“Não, Amin. Está tudo bem comigo.” – sorriu cordialmente.

“Mas você está assim, sorumbático, desde que voltou... Tens certeza de que está tudo bem? Não dói nada?”

Aquela insistência do pequeno de cabelos morenos o fazia ter uma legítima vontade de trair a si próprio e confessar aquela tristeza que o corroía por dentro como algo cáustico. Respirou fundo, entretanto, engolindo com convicção aquele pensamento, como se fizer isso fosse injuriá-lo indevidamente. Já bastavam seus próprios problemas; não precisava de ainda mais.

Mas a verdade é que aquele próprio sentimento que o fazia sentir vertigens quando estava perto do garoto lhe encorajava à isso. Tinha vontade de, uma vez mais, deitar a cabeça no ombro alvo e descarregar cada lamento seu. Mostrar-se uma vez mais como aquele ser miserável. Pensava, porém, que isso era demais. Uma vez era o suficiente. Uma única alegria como aquela podia suster-lhe por toda a eternidade. E poderia deixar o garoto pianista em paz.

“Não. Juro-lhe que está tudo bem.” – insistiu.

“Me desculpe... Estou insistindo por besteiras...” – o outro suspirou, virando o rosto para sorrir-lhe radiante. – “Então, Mausi... Quer escolher uma música? Ainda falta um pouco para o meio-dia, não?”

“Creio que sim. O sol estava forte quando saí.” – encarou-o dolorosamente.

O outro percebeu aquele olhar nas orbes douradas e parou de tocar.

“Ora, vamos! Só porque eu sou um pouquinho mais sensível ao sol do que era antes, não quer dizer que meu mundo vai acabar!...” – ergueu-se para andar até o loiro. – “Sou muitíssimo feliz por estar com você, Mausi, seja lá sob que condição.”

Para comprovar sua afirmação, Amin veio estender-se perto dele. Ajoelhou-se no piso gélido e encostou a cabeça no peito do loiro que estava deitado no divã escarlate, humildemente. Aquele gesto singelo provocou uma comoção, alguma coisa que impeliu o mais velho a tocar-lhe gentilmente nas madeixas escuras e compridas, deslizando os dedos pelas mesmas. Nesses instantes, um egoísmo latente falava-lhe mais alto: permitia-se acreditar brevemente nas palavras dele, como se o mesmo não houvesse feito nenhum sacrifício, como se eles fossem de fato as pessoas mais felizes do universo.

Mausi quis dizer que também era feliz com ele, que o próprio Amin era o motivo dele ter voltado a acreditar que, de vez em quando, a vida cede um pouco de alegria às pessoas, que até mesmo pessoas como ele podiam ser felizes. Mas nada disso saiu-lhe pela boca: havia um imenso e doloroso nó na garganta, cortando o dom da fala. Mas seus olhos pareciam falar por ele: nunca aquele dourado pareceu mais precioso para o que ergueu seus olhos do peito dele. Um sorriso breve e tímido, típico dele, nasceu-lhe, e o pequeno teve mais uma vez a certeza, então, de que iria fazer tudo de novo do mesmo jeito se pudesse voltar no tempo. Devolveu-lhe aquele sorriso, mas o seu era radiante e enorme, do tamanho de sua própria felicidade no momento.

Sentiu quando aquela carícia delicada em seus cabelos cessou e tornou-se um segurar singelo em sua nuca, instigando-o a ir mais para a frente. Ele próprio sentiu o corpo do outro inclinar-se mais, e entendeu que palavras não eram precisas; aquele silêncio era-lhe ouro. Quis gritar de felicidade quando fechou os olhos, esquecendo-se brevemente do mundo e do que sua alegria significava para outras pessoas.

Naquele momento, havia apenas o cálido abraço que recebia.

E, de repente, sobreveio a escuridão, como se estivesse com o mais pesado e insuportável dos sonos, e nesse momento, um breve pensamento desesperado quis avisar que estava tudo bem, que foi uma tontura breve, mas ele desabou antes disso.

“Amin!...” – foi a última coisa que ouviu.

Mausi só pôde ver, impotente, o garoto descrever um caminho rápido, os cabelos balançarem ao sabor do ar, para caírem-lhe sobre o rosto do pequeno e espalharem-se pelo seu próprio peito a seguir. De repente, Amin havia desmaiado em seus braços. Sentiu alguma coisa no peito e soube que aquilo era um péssimo sinal. Não parecia-lhe normal simplesmente desabar do nada.

“Amin... Amin...? Está me escutando?” – insistiu, mas o menino parecia envolto num profundo e imperturbável sono. Engoliu em seco. – “Acorde, Amin, por favor!...”

O rapaz alto pôde ver uma breve luz, como pó de estrelas, no peito do outro desmaiado em seus braços. Aquela luz desapareceu tão rápido quanto apareceu, mas foi o suficiente para alertá-lo: havia alguma coisa de muito errado. E essa suspeita veio concretizar-se no instante seguinte, quando diante de seu toque, o mesmo alertou-lhe.

“...Está ficando gelado?!”

oOoOoOoO

[ Reino de Velikean ]

O estômago reclamou por comida, mas no momento, essa era a última coisa que iria receber, sem dúvidas. Havia agora o conhecido movimento que formava-se quando as atividades do dia estavam acabando; últimos retoques, louça, ir para a ala dos criados e dormir algumas horas, para logo cedo já se estar trabalhando.

Particularmente estava começando a achar que alguém estava deitando-se nas costas deles: ultimamente, muitos serviços recaíam a um ou outro. Enquanto o garoto reclamava sempre, culpando algum preguiçoso pelo serviço de porco (e até citando nomes, mesmo que depois distribuísse sorrisos a todos) e até mesmo Deus ou o rei por serem irresponsáveis. A garota limitava-se a concordar ou ficar quieta, às vezes pedindo-lhe para controlar o ímpeto de garotinho, como se fosse, de fato, sua mãe. E então, o garoto começava a sentir-se realmente um menino tolinho e ficava quieto, olhando a quantidade absurda de pratos que os dois conseguiam equilibrar perfeitamente.

Para algumas pessoas, seria até impensável um menino que já treinava fora vir fazer mais serviços dentro do castelo, mas os dali já se acostumaram a ver o casal loiro de irmãos trabalhando juntos: eram inseparáveis, no fim de tudo. E os que conseguiam ver além daquela superproteção doentia entendiam o fato e até achavam inevitável.

“Ai, minhas costas...” – reclamou, quando puseram o último prato em cima da pia. – “O que esses caras têm na cabeça em colocarem tudo isso, hein? Duvido que aquele cretino coma metade do que é servido.”

“Souma-kun, a vida é assim mesmo. Contente-se com a refeição que ganha e faça isso quando pode. Nunca se sabe o dia de amanhã.”

“Pare de falar como se fosse uma mulher muito entendida, inaria.”

Podia parecer sério, mas ambos sabiam que era só mais uma provocação infantil.

“Ao invés de bancar o idiota, iyasii, poderia fazer algo útil e secar essa louça.” – fuzilou-o com os olhos cor-de-mel ao ouvir a última palavra dele.

O silêncio reinou absoluto depois disso. Ouviam vagamente o som dos criados acabando seus serviços e indo, aliviados, dormir. Obviamente, viram passar pela cozinha alguns deles, para quem desejaram boa-noite, o mesmo devolvido por eles. O garoto alto começava a atribuir aquele abuso ao fato deles serem pessoas ‘de favor’ (ou, em último caso, poderia ter o dedo daquele cretino infeliz (rei) no meio disso tudo; o que não seria nada surpreendente para ele), e cada vez mais tinha vontade de chutar tudo e ir embora de uma vez. Mas a mais velha sempre dizia ‘só saímos daqui quando pagarmos todo o gasto que demos’.

Hora das lições de moral da mamãe’, ele pensava na hora, contrariado, mas no fim acabava por concordar também. Seu orgulho dizia a mesma coisa, que seria uma falta de consideração sair do jeito que desejava de fato. Mas, de verdade, ia arrancar a cabeça do infeliz quando o fizesse. E alegrava-se imaginando a cena.

Ah, cara... Tô com fome...” – suspirou.

“Depois que acabarmos, podemos comer, Souma-kun. É que excepcionalmente hoje, o serviço demorou.” – ela comentou.

“É culpa daquele cretino.” – talvez nem fosse, mas era bom exercitar o ódio. – “Fica nos escravizando e esquece que nós também sentimos fome. Como se fôssemos animais...”

“O senhor Nikolaievich não pensa assim.”

“Até parece que cê tem algo com ele dizendo isso, onee-san.” – e só de pensar na possibilidade, por algum motivo, sua raiva aumentou.

“Não é questão de eu ter ou não algo com ele, Souma-kun. É questão de dívidas. Mesmo que passemos um pouquinho de fome, mesmo que treinar com ele seja duro....” – a voz da garota elevou-se um pouco nesta hora. – “Ao menos, ele não é...”

O caçula quis pedir para ela parar, mas não foi preciso. Ela parou antes de finalizar a sentença. Esfregou os olhos e, como se fosse falar alguma outra coisa que não era a frase, despencou. Foi suspendida antes de terminar a queda, mas as mãos molhadas abandonaram o prato que espatifou-se com um som agudo.

“Onee-san!...” – ajoelhou-se ao chão, descansando a cabeça dela em seu colo. Tocava-lhe no rosto, tentava acordá-la, mas nada acontecia.

Ele próprio, entretanto, teve de esfregar os olhos quando viu algo que em toda sua vida ainda não tinha presenciado: havia alguma coisa no peito dela. Era um pedacinho brilhante e muito pequenino, azulado, parecendo mais um pedaço de vidro. Quando reabriu os olhos, aquilo já não estava mais lá, por isso, chegou a pensar que fosse apenas uma alucinação nervosa. Mas ao tocar no rosto da irmã mais uma vez, o que sentiu não era nenhuma alucinação.

“Rei Nikolaievich! Senhorita Irina! Alguém, por favor!” – porque ele tinha esperanças de que alguém lhe ouvisse. – “Minha irmã não está respirando!...”

oOoOoOoO

[ ... ]

Mausi abriu os olhos, sobressaltado. Tinha a impressão de ter dormido cansado, no meio da noite, depois de tentar todos os métodos para despertar Amin. Nenhum deles adiantou. Mas, então, de repente, estava ali. Não sabia que lugar era aquele, nem como havia chegado ali; via apenas o branco lácteo e as pilastras ebúrneas dispersas pelo imenso corredor, como se fosse um templo. Teria morrido? ‘Impossível’, pensou, descartando a hipótese de imediato.

Uma porta mais a frente chamou-lhe a atenção. Era repleta de graciosos arabescos e de aparência majestosa. Branca de detalhes dourados. Começava seriamente a pensar que estava tendo algum problema; talvez fosse um sonho. Tinha de acordar, se fosse isso. Tinha de achar um jeito de fazer Amin acordar. O garoto estava frio como gelo, empalidecia mais do que já era a cada minuto. Só o diabo podia dizer o quanto ele ficou desesperado quando ele simplesmente despencou em seu peito. Tinha milhares de idéias, de planos, de perguntas, mas nada de nada era respondido, posto em ordem ou simplesmente considerado. Entendia agora o desespero por um ente querido e soube que era uma sensação aterradora. Não a desejaria para os outros, de fato.

Pensou que, talvez, se abrisse aquela porta pudesse acordar, como se aquele branco salpicado de poeira brilhante que um vento que ele não sentia levava e aquela porta imensa fossem alguma mensagem de seu subconsciente. Uma idéia ridícula, mas depois de tantas coisas ridículas que ele havia feito naquele dia, nada mais o assustava. Deu seu primeiro passo, decidido, mas só tinha o pensamento fixo em acordar logo. Adormecer e deixar o garoto dos cabelos escuros sozinho foi uma tolice sem precedentes.

Quando abriu aquele obstáculo, com um som leve, o que viu não foi a cama onde deixou o corpo adormecido de seu companheiro: mais um espaço branco e etéreo, percorrido de cima a baixo por uma complexa teia de fumaça esbranquiçada, com aquela sala cheirando a florais. Não haviam janelas nem espaços abertos como do outro lado da porta, mas cortinas semitransparentes sacudiam-se graças àquele vento insensível por entre as outras pilastras que ali enfeitavam, como se atrás delas houvessem mais portas, mais espaços inexplorados. Parados ali no meio do pequeno espaço, haviam duas pessoas. Dois homens.

Um era loiro e alto, trajando um uniforme militar azulado. Tinha no rosto a mesma confusão que sabia estar presente no seu. Ao seu lado, um outro homem, um pouco mais baixo, de cabelos curtos e prateados como a lua segurava na mão um grande cajado num tom pálido de dourado, sua capa branca esvoaçando como as cortinas. Mausi ficou pensando como aquela peça de roupa, assim como sua própria capa escarlate que ele também sentia que mexia-se, podia fazer isso sem que se sentisse correntes de ar. Ficou intrigado com toda aquela situação, de fato, mas quando deu o primeiro passo para dentro, abandonando de vez o imenso espaço lá fora, a porta fechou-se, sobressaltando a ambos.

Num profundo silêncio, os três encararam-se. Haviam milhares de perguntas na boca dos três, mas nenhum atrevia-se a começar. Sentiam-se ainda no meio de um sonho longo e doloroso. Coisas estranhas demais num curto intervalo de tempo, provavelmente.

“Com licença, quem seria você...?” – quem perguntou isso foi o rapaz dos olhos dourados e cabelos prateados, ao lado do outro.

“Pergunto o mesmo.” – respondeu o que acabara de chegar.

“Você também veio de...”

“Receio que tenhamos muito pouco tempo para apresentações formais, cavalheiros.”

Os três, em estado de alerta, viraram-se. Uma voz melodiosa e de timbre feminino pronunciou-se de algum lugar. Mas era uma sala vazia, só haviam eles ali, que se olhavam firmemente. E nenhum deles falou daquele jeito. Mas quando olharam de novo para o canto esquerdo, uma silhueta negra divisou-se. E das cortinas semitransparentes que continuavam em sua eterna dança incompreensível, uma pequena mulher sorriu.

“De qualquer forma... Boa tarde, senhores.” – ela deu mais alguns passos, até chegar perto de suas pessoas. – “Sejam bem-vindos ao meu refúgio.”

Continua...

Notas:

[1]O título é uma mistura das três originalidades dos protagonistas apresentados. ‘YUKI’ é o kanji japonês (Nami) para ‘neve’. ‘Spiegel’ é uma palavra alemã (Mausi) e significa ‘espelho’. E por fim, ‘Kronika’ é o russo romanizado (Souma) para ‘Crônica’. Traduzindo o título, seria algo como ‘Crônicas do Espelho de Gelo’. Qualquer semelhança com o título de TRC (Crônicas das Asas) ou com referências  ao conto infantil ‘A Rainha do Gelo’ não é mera coincidência. XD

[2]Feuer é um nome originário da fanfic “Phönix” (Akane Kittsune), que remete ao reino do Fogo onde, de fato, vive o rei Ehre.

[3]Personagem da fanfic “Phönix”. Lá, também é o rei de Feuer.

[4]Personagem da fanfic “Phönix”. Na história original, é do reino de Wasser, que remete à Água.

[5]Escrita russa (aglutinada) para ‘Pacífico Norte’ (quanta criatividade ¬¬).

[6]Personagem da fanfic “Entre os Céus e os Mares” (Darkrose&Ziegfried). De fato, é originalmente o atual rei do Pacífico Norte na obra citada e também o chefe da guarda do reino Ártico.

[7]Personagem da fanfic “Okaerinasai” (Petit Ange). Originalmente, é o guardião das cartas da maga Linka Seikun.

[8]Arael: anjo cujo nome significa ‘Olhos de Deus’. Magister: termo original  do mangá ‘Mahou Sensei Negima!’ que designa um mago. Traduzindo o termo, fica algo como “Mestra das Visões”.

[9]Personagem da fanfic “Phönix”. De fato, no original, ele também é príncipe de Feuer e irmão caçula de Ehre.

[10]Personagem da fanfic “Entre os Céus e os Mares”. Originalmente, princesa do reino do Atlântico Sul.

[11]Cultura lingüística’s time (XD): ‘Não’ em russo.

[12]Personagem de “Entre os Céus e os Mares”. Também é governanta do reino do Pacífico Norte na dita obra.


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Notas finais do capítulo

Prestigie as fanfics usadas neste capítulo:

“Entre os Céus e os Mares” – by Darkrose&Ziegfried:
http://www.panbox.com.br/viewstory.php?sid=958
“Phönix” – by AkaneKittsune:
http://www.panbox.com.br/viewstory.php?sid=3205

“Okaerinasai” – by Petit Ange:
http://www.ffsol.org/portal/texto.php?idff=932
ou
http://www.panbox.com.br/viewstory.php?sid=1130



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