Além de Tudo escrita por Smother


Capítulo 8
Silêncio, por favor.


Notas iniciais do capítulo

Um sinal sobre a arrogância e pré-julgamentos.



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Liguei um dia para Mischa, era Sábado de manhã. Costumeiramente falava como eu a amava excessivamente e sobre coisas aleatórias e desnecessárias que preenchiam o espaço de sua ausência.

Sim, você é a única em toda minha vida. Não consigo ficar sem você, tenho tantas saudades!

Andressa, você é muito fofa. Sabe… Eu gostaria de retribuir todo seu carinho. Já sei! Eu falei que mandaria cartas, né? Mandarei cartas para você moranguinho  ela riu e ficou em silêncio, como que pensativa −. Espero que não ligue para minha caligrafia ou espere coisas muito românticas… Assim, você sabe como eu tenho dificuldades de me expressar.

Tinha? Mesmo? Verdade? Aquilo era insuportavelmente triste para minha mente sonhadora e infantil. Pensava: tudo bem, ela deve me amar só que não se expressa. Mas, por mais que eu tentasse me convencer disso, algo em mim insistia em desconfiar e se preocupar tal como uma detetive em busca de pistas. Eram pensamentos perturbadores: “Será que ela me ama? Por que ela me amaria? Será que ela me ama apenas pela minha aparência? Ela me amaria da forma que eu a amo? E toda aquela conversa do amor ser recíproco, será que somos amantes deste nível?”. Maior parte das respostas que apareciam eram negativas e sufocantes. Para mim toda situação era verdadeira, ainda que eu estivesse presa num cabresto e olhando apenas para um destino determinista.

− Sim, mein lieber − minha querida −. Eu sei. Vou esperar sua carta e quando ela chegar mandarei outra… E assim por toda eternidade.

− Como sempre dizem, “que seja eterno enquanto dure”. Sim, mande cartas também. Será um prazer.− sua voz suave e tranquila nem sempre sincronizava-se com as verdades frias que dizia.

− Que dure eternamente, prefiro pensar assim. Tenho que ir para meu curso de inglês, até mais.

− Até, fique bem. Cuide-se.

− … Cuide-se.

Tinha dificuldades de entendê-la, sua personalidade introspectiva condensavam sentidos e significados às suas poucas expressões verbais, tornando-las complexas de decifrar.  Presa no determinismo, eu ignorava que tinha uma imensidão de estradas além desse relacionamento para vivenciar; a realidade evidenciava o quão pequeno eu conseguia ver. Passado esse final de semana com professores de Inglês, Francês e piano criticando minha falta de dedicação, era a vez dos professores católicos das disciplinas regulares. Saí de casa de bicicleta para ir ao colégio. Papai sempre dizia que o luxo não significava elegância, que a elegância estava nos atos mais simples e modestos feitos da maneira mais adequada. E o que eu tinha a pensar sobre isso? Gostaria de motoristas particulares me levando, com certeza. Odiava percorrer cinco quilômetros pedalando e ainda aguentar pessoas dementes caçoando de mim por não ser uma mimada que é levada e trazida de carro pelos pais ou motoristas.

Eu já estava no terceiro mês da minha primeira série do Ensino Médio. Corri para sala de aula e já estavam todos de pé ouvindo a música matinal religiosa. A professora, a qual me observara chegando atrasada com os cabelos um pouco desgrenhados e testa suada, fez um sinal de desaprovação com a cabeça – e quase um sinal da cruz mentalmente, vai saber –. Seu nome era Ingrid Hensel e era uma espécie típica daquele habitat horripilante disciplinar. Era um pouco velha, tinha lá seus cinqueta e cinco anos e um posto carinhosamente apelidado de “ditadora”. Bonita, mas não muito sorridente, usava sempre vestidos que me lembravam uniformes militares e prendia seu cabelo loiro platinado num coque. Eu sentei sem dar um pio, com a cabeça abaixada, rezando e implorando para que ela não viesse chamar minha atenção. O que não ocorreu.

− Senhorita Hoffman, sabe o quão desapontada você me faz ficar? Sua maneira de lidar com suas responsabilidades desde o primeiro dia de aula que passamos juntas é decepcionante. Deve ser uma vergonha na família, principalmente a seus pais. − Ela falava comigo na frente de todos com uma voz elevada. Senti uma ponta de raiva e desconforto invadindo-me, pedindo para revidar. − Somos uma instituição exemplar e queremos o bem de todos alunos, só que aqueles que não se dedicam não são dignos dela. É uma menina linda, não preciso dizer, mas precisamos de algo mais que beleza superficial nesse ambiente.

Veja seus colegas, por exemplo. Poucos são aqueles que desobedecem as normas. Siga a maioria deles e aja respeitavelmente.− Concluiu o mini-discurso fascista, triunfante.

− Professora Heisel, não lhe peço nada nem nunca lhe pedi desde o dia que vim para este colégio. Para você é belo alguém que se acha superior e não se importa com o outro, desde que tire notas altas e seja rigoroso com horários. Eu nem minha família pensamos assim. Meus pais não se envergonham da minha postura. Assim suponho, porque minha mãe morreu quando eu era pequena, mas lembro que ela sorria todos os dias e buscava ajudar o próximo com o que tinha.

Pode me dizer o que quiser sobre a minha falta de regularidade na aula, das minhas notas que não ficam acima da média e que eu sou só uma beleza superficial. − Sim, a falta de autoestima me engoliu a esse nível. − Só não me julgue pelos seus critérios pessoais, estamos unidas por você ser professora desse colégio e só. − Terminei de falar esperando ser expulsa ou algo assim, já nem ligava tanto para isso.

A professora nada disse durante alguns minutos, eu pude ouvir os cinquenta alunos excitados com nosso diálogo, comentando como eu pude ter coragem de falar assim com a "ditadora" Heisel. Ela começou a falar, parecia se despertar de um transe.

− Andressa, você está certa em alguns pontos. Eu diria, quase todos. – Um pouco arrependida, talvez, arriscou uma voz mais tenra. − Sinto muito pela sua mãe, sei como é viver sem um exemplo materno. Na minha infância eu tive que cuidar dos meus dois irmãos menores quando eu tinha dez anos e minha mãe falecera. Passei por uma época de provação. Meu pai saía para trabalhar e voltava bêbado. Meus tios e tias não eram próximos e meus avós moravam em outro estado. Isso ilustra a ponta de iceberg que passei.

Não quero lhe ofender nem tive a intenção. A minha história difícil me deu base para saber o quanto a vida é preciosa e como as oportunidades são ferramentas de milagres. Seu erro foi dizer que somos apenas professora e aluna ligadas por esse colégio. − Quebrei a cara, mas não da maneira que me humilhasse. Dentro de mim surgiu uma simpatia por essa pessoa, um certo insight dizendo "ela não é como as outras". No sentido de outras pessoas cruéis e gratuitamente arrogantes.

Fiquei realmente admirada que Heisel, ou apenas Ingrid, fosse tão humilde a esse ponto. Passei a ser uma aluna melhor e disciplinada por sua causa, embora que atualmente isso não me empolgue tanto mais. Desde esse episódio passei a respeitar e evitar julgamentos a quem se fechava em uma casca mais grossa, porque no fundo, provavelmente, só se fez assim porque teve que enfrentar muitos problemas interpessoais. Os sermões de Heisel se tornaram mais agradáveis e minha empatia cresceu a ponto de eu poder me enturmar e fazer novos amigos. Porém, seja qual fosse meu problema, isso não me impediria de tomar decisões totalmente erradas futuramente.


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