Além de Tudo escrita por Smother


Capítulo 17
Tempo ao tempo, espontaneamente ocorrerá


Notas iniciais do capítulo

Reflexões.



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Não sou de deixar as coisas pela metade. Sou inteira, parcial, não deixo que falem por mim nem fujo das consequências. A verdade me guia, mas só o amor me liberta. Quando digo que muitas coisas ficaram para trás, talvez eu nem tenha consciência do quanto eu mudei ou daquilo que deixou de fazer parte relevante no meu cotidiano.

 

Larissa me contou da existência de ciclos. Para ela, tudo tem um início, meio e fim. Pensando bem, é até óbvio! Todavia, a questão é que muitas vezes deixamos de nos atentar a esses detalhes. Existem momentos que sua vida se transforma completamente e, para isso, ocorre a destruição de tudo aquilo que até então ocupava grande valor nela. Sejam princípios, conceitos, pessoas, lugares e outros… Esses momentos são aqueles em que passamos pela piores provações. Querendo ou não, somos obrigados a mudar e nos transformar: essa é a importância de vivermos em ciclos. Renovação, evolução e certamente muito mais coisas que estão a ser compreendidas.

 

Preciso dizer que nossa vida é efêmera? Que temos que dar valor ao hoje? Lembro de Lina dizendo que por mais que pudesse me explicar, as coisas não fariam o mesmo sentido. Realmente. Para quem passa pela vida sem se tocar de toda essa transitoriedade e que cada momento é precioso, minhas palavras soarão como um livro qualquer sobre autoestima ou espiritualidade. Sinto que me cobrei excessivamente. Sempre quis ser de tal forma, conseguir tal coisa ou me preparar para tal evento. Percebo que nada me satisfaz tão completamente quanto estar aqui, vivendo o momento, sem pensar no que foi ou o que será. Larissa com seu jeito despojado me ensinou a ver a vida mais dinamicamente, urgente, colorida e leve.

 

Quando crianças éramos como unha e carne, mas a partir dos dez anos nós nos afastamos devido sua mudança de escola. Além disso, os tipos de amizade que construíamos eram bem diferentes uma da outra. Ela ficava perto dos populares, daqueles que zoavam meio mundo, que ouviam músicas que ninguém conhecia e matavam aula para fumar. Eu ficava na turma dos certinhos, nota dez, multitarefados, apagados e sem sal. Acho que a minha vantagem é que eu não levava ocorrência. Somente quando mudei para um novo colégio no Ensino Médio que nossa amizade se estreitou. No final do primeiro ano, Larissa e eu passamos a nos falar assim que soubemos da existência da outra. Sinceramente eu não diria que ela seria a menina que eu conheci aos quatro anos e me afastei aos dez. Ela sempre teve aqueles olhos lindos esverdeados, cabelos loiros escuros e rosto incrivelmente belo. Sempre foi durona, de gênio forte… Porém, ela também sempre foi gorda, com sobrepeso e cabelos que não ultrapassavam os ombros. Não era vaidosa nem se importava com isso, e andava com a turma dos sem graça como eu. Era tímida com certas coisas e dedicava-se bastante à flauta transversal.

 

Ver aquela garota popular, arrogante, magra, fitness, alternativa, vaidosa, de cabelos longos até a cintura fumando escondida no bosque da escola… Era como olhar para uma desconhecida. Não acreditei que Larissa Motta Van Voorst na lista de chamada pudesse ser a mesma Larissa que eu conheci na infância. A única Larissa da sala era uma menina que não teria nada a ver. Muito patricinha, muito escandalosa, fazendo barulho no fundão da sala, pedindo licença para ir ao banheiro quando na verdade ia fumar. Os garotos ficavam babando o ovo dizendo que ela era gostosa, no maior desrespeito. Tudo bem que nas aulas de educação física ela aproveitava para usar shortinho e cropped, mas fora dessas aulas só era permitido a blusa de uniforme mais calça. Claro, ela escolhia uma calça bem apertada que pudesse mostrar sua silhueta, mas quem seria eu para julgar? Ela não era a única (nem será) a fazer isso. Quase sempre aparecia no colégio de delineador nos olhos e batons de tons escuros; tenho que admitir que combinam muito bem com ela, assim como suas gargantilhas. Percebi seu gosto por brincos grandes, detalhados, e muitos anéis prateados. Suas cores de unha variavam entre preto, vermelho ou roxo. Tanta escuridão, mas tanta beleza e delicadeza também.

 

Eu demorara dois dias antes de reencontrá-la diretamente. Fiz essa pequena coleta de dados para poder me aproximar de Larissa e esperei até o intervalo para fazê-lo. O colégio que estudo é enorme, me dá preguiça até de dizer, e seu pátio se estende até um bosque que, teoricamente, a nenhum aluno é permitido ir. Sim, Lari pulava a pequena cerca de arbustos que delimitavam o pátio e o bosque e ia se aventurar. Até hoje ela faz isso, para ser sincera. Fiz isso com muito medo de advertências, pedi auxílio dos meus amigos para distraírem os supervisores. Consegui, e, depois de andar um pouco pelo bosque, segui o cheiro de cigarro. Quem diria que ela estava lendo livros e fumando tranquilamente debaixo de um carvalho? Pernas esticadamente cruzadas, com a mão esquerda segurando o livro e a direita sustentando o cigarro. Ela estava vestida num desses “kimonos” modernos, que mais pareciam uma capa, poncho, sei lá. De qualquer forma ela é muito estilosa e quem me dera poder ter um pouco do impulso criativo de Lari.

 

Ela obviamente me percebeu observando-a. Sou muito alta, com cabelos acobreados puxados para o vermelho: até quem é quase cego me perceberia. O problema maior é que talvez ela tivesse me percebido antes mesmo de eu persegui-la. Quem sabe até quando eu cheguei a esse colégio. Será que ela nunca ligou para mim? Nunca quis saber como eu estava? Enfim, muitas perguntas e as quais eu deveria perguntar diretamente, mesmo que fossem recentes.

 

— Larissa?

— Olá, Andressa. – A simpática amiga de infância não moveu nem um dedo fora daquilo que já estava fazendo, permanecendo sentada, fumando e lendo o livro.

— Desculpe-me por segui-la, mas pensei que seria bom que nós reatássemos a amizade. Senti sua falta, mas você não me lembra a mesma Larissa que conheci. – Comecei a enrolar uma mecha de cabelo por nervosismo e um pouco de constrangimento de ter que falar essas coisas. Coloquei minha mão direita no tronco do carvalho.

— Aquela Larissa trouxa que se fazia de gato e sapato por você? Que sofria bullying por ser gorda e era motivo de piada na sala?

— Lari! Mas eu nunca te tratei mal por ser gorda, você era minha melhor amiga! Como assim gato e sapato?!

— Afs. Você, ou é muito lerda ou é muito cínica. Talvez não diretamente você me fizesse bullying, mas não fazia nada para impedir que me ofendessem. Além disso, sempre se aproveitou dessa condição para se sentir superior em nossa amizade. Não venha com essa.

— Eu sei, eu fui errada em não te defender. Fui errada em achar que eu era melhor por ter uma condição física diferente da sua… Ok, você está certa! – como sou muito chorona e desabo em discussões, comecei a lacrimejar – Me desculpa, me perdoa, Lari! Podíamos ser só crianças, mas sei que podemos ser cruéis ainda assim…

— Para com o teatro, criatura. Caralho. Você é muito esquisita, sabia? Tudo isso já passou e muita coisa já superei. O que sofri já está cicatrizado. Mudei, tive que mudar. Carreguei mágoas estúpidas por causa de nossa amizade covarde… No entanto já me desapeguei de tudo isso. Só queria deixar claro que as coisas não são branco no preto como você lembrava, Andressa. – Larissa parecia um pouco desconcertada com minha reação, provavelmente ela esperava uma pessoa orgulhosa rebatendo seus argumentos só que percebeu que eu não mudei nada. Ela até deixou o cigarro e livros de lado, corando um pouco o rosto de irritação.

— Sinto muito…

— Tá, para de pedir desculpas! – Ela começou a se levantar e limpar as folhas agarradas em sua calça.

— Tá bem, desculpa! – Fiquei aflita e ansiosa para que ela voltasse a ser minha amiga logo.

— Afeee… Você – provavelmente iria me xingar novamente mas resolveu se calar –… Você é diferente. Bem diferente de mim. Parece que não mudou nada, até o rosto de criança ainda tem. – Larissa riu, fazendo uma expressão irônica e dando um peteleco na minha testa, com os dedos de sua mão esquerda.

— Ai! Você mudou bastante, viu. Seu rosto também é de criança, só a maquiagem que afasta um pouco.– Comecei a rir e ela fez uma cara de contrariada.

Whatever, Andressa. Aqui, o intervalo vai terminar em cinco minutos. Melhor voltarmos para a sala.

— Sim, vamos voltar! – Não conseguia deixar de ser essa pessoa feliz e animada, era inconsciente.

— … Andressa?

— O que foi?

— Seria ótimo se você não andasse tão colada assim comigo, não fazemos simbiose.

— Oh, sint… – Realmente eu estava andando muito perto dela, quase trombando em cima.

— Tudo bem, miga. Relaxa. – Lari me interrompeu e sorriu simpaticamente de maneira que nunca havia visto. Uma ótima sensação me tomou. Conforto, confiança, sei lá. Preencheu meu coraçãozinho de um sentimento muito bom, sem qualquer intenção.

 

Esse foi o dia em que nossa amizade voltou a florescer. Muito tenho a dizer sobre Larissa, contudo só sei resumir que ela me inspira. Ela é um Universo, uma realidade psicodélica e cheia de emoções. Tornou-se meu porto seguro, onde posso contar sobre qualquer coisa e sei que ela não me julga. Claro, ela sempre me avisa das possibilidades, mas não me impede quando estou determinada. Uma das pessoas mais sensíveis que já conheci e a quem devo minha vida.

 

Falo para que Larissa durma em minha casa, que a gente faça uma maratona de Netflix com direito a muitos mimos culinários do meu pai. Como sempre hilária, ela disse que está bastante tentada porque acha meu pai lindo de morrer, porém ela tem coisas para fazer em casa e seus pais comemorariam o aniversário de casamento deles. Nos despedimos e acabo por convidar papai para assistir qualquer coisa juntos, mesmo que jogo de futebol.

 

Minha terça acaba bem agradável. Amo minha família e meus amigos, fico imaginando se um dia eu abriria mão disso por causa de Mischa. Mas talvez seja uma besteira pensar nisso, porque o que for para ser será e Mischa nunca seria um empecilho para minha vida e sim um propulsor. Sua liberdade me fascina. Acho que cabe a mim viver o quanto posso e aproveitar dessas maravilhosas companhias, demonstrando todo o afeto que sinto por essas. Como diria naquela música dos Titãs, Caras Como Eu, “Não vou mais medir o tempo/Não vou mais contar as horas/Vou me entregar ao momento/ Não vou mais tentar matar o tempo”.



Antes de dormir, mando um áudio de boa noite para Mischa pelo Whatsapp. Meu amor me retribui e acrescenta: “Eu estava lendo alguns poemas e achei esse lindo. Serve para me acalmar da ansiedade de te encontrar, Andy”. Ela enviou uma foto da página.


“ O tempo não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não representam nada. Ser artista não significa contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, serena, aos grandes ventos da primavera, sem temer que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão sossegados como se tivessem na frente a eternidade. – Rainer Maria Rilke ”

 

Quem disse que não temos à nossa frente a eternidade? Sorrio e sinto uma confiança inabalável tomar conta de meu ser.


“Esse poema era tudo que eu precisava para confirmar minhas intuições, Mischa. Amooo você infinitamente! Boa noite, beijos!” – O último áudio da noite de terça-feira.


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Notas finais do capítulo

Dúvidas, sugestões, críticas? Podem comentar qualquer coisa, estou bem aberta. :3



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