Coisa de Criança escrita por Davi Mello


Capítulo 1
Coisa de Criança




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Parte I – O Anjo da morte

Dizem que quando estamos próximos da morte a nossa vida passa diante aos nossos olhos como rápidos flashes de um filme. Aconteceu algo parecido comigo, mas o que vi não foram os momentos mais felizes de minha curta jornada na Terra, mas sim, rápidas cenas do lugar no qual seria conduzido... E posso dizer-lhes que a visão que tive não foi de anjos e arcanjos voando entre as nuvens, mas sim, demônios largados em um abismo negro, que logo fora iluminado pelas labaredas do inferno.

Tudo começou naquela manhã de agosto, mais precisamente, a manhã de meu aniversário. Sim, eu tive a sorte de ser levado desta para a “melhor” bem no dia em que completaria dezoito anos. Oh!, como eu sonhava com este momento! Finalmente poderia dirigir pelas cidades, tirando suspiros das garotas, sendo o centro das atenções por onde quer que eu passasse... Mas o que sucedeu não estava em meus planos; ao invés de receber as visitas de parentes e amigos, minha única companhia foi a morte, em carne e osso, ou espírito, não sei dizer ao certo.

Levantei com um sorriso largo em meu rosto, o que significava meu contentamento, a saúde de ser jovem, o prazer de estar virando um adulto. Meus pais entraram pela porta de meu quarto, Julie, minha irmã, veio logo atrás deles carregando um embrulho grande em seus finos bracinhos. Quão encantadora era minha irmã! Estava tão bonita naquele dia! Seus traços meigos, seu belo sorriso infantil... as sardas espalhadas em seu rosto inocente, os olhinhos negros brilhando, encarando-me.

- Feliz aniversário! – disseram em um coro. E então, jogaram-se em cima de mim, me encheram de beijos e abraços.

- Por que não abre este presente? – perguntou o meu pai, que não conseguia disfarçar o entusiasmo.

Julie me entregou a caixa. Rasguei o embrulho colorido com rapidez e logo, a imagem de um luxuoso terno negro fora revelada.

- Para o nosso futuro advogado. – disse mamãe, sorridente.

Agradeci, a beijei e senti as lágrimas dela tocar em meus ombros. Segurei as minhas emoções, afinal, a partir daquele dia já não era um adolescente bobo, havia me tornado um homem!

Papai balançou o bolso de sua calça jeans. Ouvi algo tilintando ali dentro; meu sorriso aumentou!

- Oh, meu amado pai! Não era preciso! – exclamei, surpreso. Meu pai havia me presenteado com uma chave, a mesma do automóvel estacionado à frente de nossa casa, que pude ver pela janela de meu cômodo.

E Julie, em sua inocência, retirou de seu vestido um papel dobrado em dezenas de partes. O desdobrei e pude ver um estranho desenho, cheio de traços e curvas, uma casa, uma garota feita com aqueles famosos “pauzinhos” e uma outra pessoa, feita do mesmo jeito.

- Este é você! – disse ela, apontando para o individuo desenhado ao lado da menina.

Meus pais mudaram o semblante repentinamente. A minha imagem feita por Julie estava com a cabeça desgrudada do pescoço, e ali, havia sangue, muito sangue.

- Por que fez isso, filhinha? – perguntou minha mãe retirando o desenho de minhas mãos.

- Mãe, é só um desenho. – disse eu, ao ver que Julie ficara chateada. – Ela é pequena, sei que a intenção foi a das melhores.

- Está certo, querida. – falou o meu pai alisando o ombro de sua esposa. – Não se preocupe com isso.

Pude escutar o que ele sussurrou aos ouvidos de minha mãe, depois:

- Julie tem apenas quatro anos. Não sabe desenhar direito. No certo, aquela mancha vermelha abaixo da cabeça de Julian é apenas uma gravata.

Mamãe assentiu, mas eu ainda via a tristeza em seus olhos amendoados. Estaria ela prevendo algo ruim?

- Susan te ligou, há pouco. – contou o meu pai antes de sair do meu quarto. – Mandou eu lhe avisar que precisa falar contigo. É importante.

Susan era a minha ex-namorada. Uma bela moça, entretanto, possuidora de um gênio muito forte, por isso tínhamos muitas brigas, porém nos amávamos loucamente. O rompimento do nosso relacionamento de quase um ano ainda era um mistério! Há mais ou menos um mês atrás, Susan simplesmente disse que não podíamos ficar juntos, sem dar nenhuma explicação concreta. Continuamos nos falamos, mas as coisas não eram como antes, por este motivo, achei estranho ela ter me ligado, afinal, talvez ela já estivesse comprometida novamente.

Assim que todos me deixaram a sós, decidi telefonar para Susan. Confesso que senti certa preocupação.

- Estou indo para aí. – disse ela, sem mesmo dizer “alô”, ou “meus parabéns!”.

Fiquei intrigado durante algum tempo, mas acabei esquecendo que Susan viria, pois os telefonemas para minha pessoa eram muitos.

Desci para almoçar. Minha mãe terminava de fazer a massa do meu bolo e meu pai regava algumas plantas da cozinha. Julie, como sempre, desenhava no canto da sala, sempre sorrindo.

- Olhe, Julian. – disse puxando a manga de meu casaco assim que passei por ela. – Veja se gosta deste.

Ergui minha irmã no alto fingindo que a mesma era um avião e juntos nos divertimos durante alguns minutos. Quando a “aterrissei”, ela me mostrou sua estranha ilustração. Mais uma vez eu estava ali, mas agora, ao lado de uma pequena cruz.

- Julie... – comecei dizendo, um pouco preocupado. – Por que desenha estas coisas?

- O anjo da vida me pediu. – respondeu, soturna. E saiu cantarolando atrás de uma borboleta que perambulava pela sala.

A campainha tocou com insistência, acompanhando a minha forte pulsação.

Era Susan.

- Eu sinto muito! – exclamou ela, com os olhos marejados, jogando-se em meus braços. – Eu realmente não quero fazer isso...

- O que houve? – indaguei, levando-a até o meu quarto a fim de conversarmos melhor.

Ela sentou em minha cama, limpou as lágrimas e afagou as minhas mãos, deixando-me arrepiado.

- Cometemos um erro. – disse ela.

- Acalme-se. – implorei, brincando com suas madeixas negras. – Por favor, conte-me o que está havendo.

- Julian... – o seu pálido e fantástico rosto agora assumira uma expressão indecifrável. – Eu sou um anjo da morte.

- O que está dizendo?

- Lembra-se de como nos conhecemos? – perguntou, ainda emocionada.

- Como eu esqueceria? – disse eu, sorrindo. – Você quase me matou...

- E foi por isso que tive de entrar em sua vida. – revelou, tristemente. – Eu precisava te matar!

Não sabia o que dizer. Será que Susan ficara louca após o término de nosso namoro?

- Eu precisei roubar um corpo que abrigasse o meu espírito.

- Então quem realmente é você? – quis saber, fingindo estar acreditando.

- Este é o cadáver de Margareth Thompson... Eu a afoguei, há onze meses atrás...

- Quando começamos a namorar. – dissemos em uníssono.

Nos encaramos durante um bom tempo.

- E se eu dissesse que acredito em você, - eu disse, quebrando o silêncio. – como provaria?

Ela procurava algo em meu quarto. Sorriu ao encontrar um vaso de rosas vermelhas que se localizava em um canto. Aproximou-se deste, estendeu a sua mão sobre ele e, inexplicavelmente, as flores começaram a adquirir uma cor mais escura. Por fim, murcharam e secaram-se completamente.

- Oh, meu Deus! – vociferei, surpreso.

- Agora acredita? – perguntou ela, dirigindo-se a mim lentamente.

- Saia daqui! – exigi, me espremendo entre os lençóis. – Saia!

- Não posso deixar o seu lar sem levá-lo comigo! – exclamou, melancólica. – Você cometeu um grave erro e precisa pagar por isso, mesmo parte de mim querendo que nada de mal aconteça...

- V-você... Não pode estar... falando sério! – gaguejei, amedrontado.

- Eu dirigia pela estrada e você voltava da escola...

- Cale-se! – gritei, tampando os ouvidos.

- Eu fingi perder o freio enquanto você atravessava a rua, despreocupado. – ela já estava bem próxima de mim. – Mas não pude completar o meu serviço! Eu me encantei com seu rosto jovial... Um ser tão belo como ti não devia morrer tão cedo...

- Eu não quero ouvir! – as lágrimas escorriam pelo meu rosto.

- Acabamos saindo para jantar, no mesmo dia. Uma semana depois, estávamos compromissados... – ela sorriu, provavelmente relembrando os nossos bons momentos juntos. – Mas fomos tolos! Eu devia ter lhe matado antes que você fizesse isso comigo... – Susan retirou de seu vestido preto um papel dobrado em vários pedaços e jogou para mim.

O meu olhar já falava por mim mesmo; fiquei surpreso! Um exame médico constatava a gravidez de Susan!

- Você não entende? – ela começou a chorar novamente. – Eu não trago a vida, só a morte!

- E o que quer que eu faça? – indaguei. Minha respiração estava fraca, pressentia um desmaio. Isso não podia estar acontecendo!

- Não posso matar a criança. Preciso ficar aqui com ela, mas necessito levar você. Uma troca justa. – Susan estendeu a sua mão, estava trêmula. – Mesmo porquê, já estamos condenados...

- Você está maluca! – relutei.

E levantei-me rapidamente, abri a porta de meu quarto e desci as escadas em uma velocidade incrível. Escutei a minha mãe me fazendo inúmeras perguntas, mas não quis responder nenhuma delas. Peguei a chave de meu veículo e saí daquele lugar terrível.

Meus pais se entreolharam, sem entender o que estava acontecendo.

- Papai, mamãe... – disse Julie, deprimida. – Julian vai voltar... Eu prometo!

Não me importava com os faróis, tampouco com as pessoas que passeavam pelas ruas. Dirigi feito um louco, buzinando a cada instante.

- Adeus, Julian. – disse Susan, surgindo ao meu lado subitamente.

Em uma fração de segundo, tudo se apagou.

Parte II – O acidente

A estrada estava inundada de curiosos, policiais e caminhões de resgate. Meu pai saiu de seu Picasso preto carregando Julie no colo. Logo depois, minha mãe apareceu, segurando um lenço branco em sua face, chorava muito.

- Foi um caminhão desgovernado que fez isso. – disse um dos policiais. – Eu sinto muito, senhor e senhora Stewart. – ele acariciou o rosto de Julie, depois exigiu que todos se afastassem.

O meu carro novo estava completamente destruído. Quem viu aquela cena, sabia que era impossível alguém sair daquela situação com vida.

- Ele foi decapitado. – revelou um bombeiro. – Morreu na hora.

- Houve outras vítimas? – perguntou o chefe da polícia a ele.

- Não. – respondeu o bombeiro, limpando a mão coberta por meu sangue. – Julian Stewart estava sozinho.

Aquele terno que ganhei no meu aniversário foi o que vesti no meu enterro.

Parte III – O “inferno”

E agora estou aqui... O mais incrível é que eu não sinto o calor, só o cheiro forte de enxofre.

- Julian.

Eu não quis olhar para o ser que me chamava. Senti medo.

- Tenho um trato a fazer com você. – era aquela voz fina e feminina novamente.

Continuei calado.

- Não tenha medo. – disse outra vez. – Você não está no inferno, ainda não é a hora.

- Onde estou, então? – perguntei, sem olhar para aquela que conversava comigo.

- Este é o limbo... O mundo das almas que têm uma segunda chance. Não se preocupe com o fogo, ele não pode feri-lo enquanto você não ser julgado.

- O que propõe? – minha voz estava fraca.

- Você pode continuar aqui e ser um anjo da morte. Viverá para sempre e não será julgado por seus atos...

- E a outra opção?

- Ou pode acordar deste pesadelo, sendo um mero mortal. Isso não significa que os seus pecados sejam esquecidos...

- E Susan? – quis saber.

- Ela fracassou em sua missão. Não foi ela que fez isso com você. – e então, aquela pessoa tocou o meu queixo e ergueu minha cabeça. – Fui eu!

Não podia acreditar! À minha frente estava Julie, minha querida irmã. Então ela era o anjo da vida?

- Este é o nosso segredo. – disse ela. – Você não se lembrará disso, não se preocupe... Agora, faça a sua escolha...

Parte IV – Um recomeço

Simplesmente apareci andando, prestes a atravessar a rua. Senti uma leve sensação de dèjà-vu... O farol piscava em verde, o que significava que eu poderia seguir.

Um carro parou de frente a mim, quase me atropelando. Olhei para o vidro do mesmo e pude ver quem dirigia aquela Mercedes prateada; era a mulher mais bonita que eu já tinha visto. Seus cabelos negros e sua pele pálida me deixaram perplexo.

Ela desceu de seu veículo, preocupada.

- Aconteceu alguma coisa? – perguntou, aflita.

- Eu estou bem. – respondi, sorrindo.

- Nós já não nos vimos antes?

Pensei durante um tempo. Não conseguia me lembrar.

- Não... Mas poderíamos nos conhecer melhor. – eu pisquei, maliciosamente. – O que acha de jantarmos hoje à noite?

- Se isso lhe fará sentir melhor, eu aceito! – exclamou, rapidamente.

- A propósito... – entendi minha mão a ela. – Sou Julian.

- Meu nome é Margareth. – ela sorriu, retribuindo o cumprimento. – Margareth Thompson.


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