Bibelôs escrita por SatinBirds


Capítulo 1
Parte I


Notas iniciais do capítulo

1) Do mesmo universo de "Felicidades".
2) Nota pessoal da autora:
Bem, o que eu posso fazer além de pedir desculpas pelo longo sumiço? Infelizmente, a vida pessoal tende a atrapalhar a escrita. Minhas sinceras desculpas. Para aqueles que ainda estiverem acompanhando e comentando, muitíssimo obrigada. Vocês são meu eterno estímulo e eu sou eternamente grata.



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A música parou assim que ele virou a chave do carro.

Estacionado em uma rua pouco movimentada, sem música ou o som abafado do motor, Arthur estranhou o silêncio súbito. Ele sempre estava rodeado de barulho. Pessoas. Trabalho.

Tudo fora tão corrido naqueles últimos dias que, às vezes, era difícil de acreditar que já fazia mais de uma semana que ele voltara. Os plantões, as longas horas tentando colocar em dia o atraso. Hospital, apartamento novo, sofás, a parede do quarto que pintaram de laranja e não pêssego enquanto eles estavam fora. Parecia haver um eterno zumbido em seus ouvidos.

Parado ali, sozinho e longe de tudo, ele inesperadamente se deu conta do tempo. Ainda tinha a sensação de que haviam chegado na noite anterior e que o cansaço que estava sentindo era conseqüência de uma viagem tumultuada e de poucas horas mal-dormidas.

De repente, a ligação irritada da irmã no dia anterior fez mais sentido.

Dez dias, e tudo havia se resumido a trabalho e decoração. Todas as noites, ele chegara em casa exausto, apenas para ser recebido com o cheiro de tinta fresca no ar, um apartamento quase vazio e a voz irritada de Lizzie ao telefone, reclamando com o gerente de alguma loja que não cumprira o prazo ou entregara o móvel errado.

Com um suspiro, Arthur voltou a si e tirou a chave da ignição. Certificando-se de que não estava esquecendo nada, desceu do carro e se virou para a entrada da pequena galeria, pouco movimentada àquela hora da manhã.

O letreiro simples atraiu seu olhar, como sempre. Acima das largas portas de vidro fumê, o LeFay em fonte cursiva e preta, contra o fundo branco, nada tinha de pretensioso, tanto que ninguém poderia imaginar o tamanho da discórdia que aquele nome tão simples havia gerado entre os Pendragon.

Entre Uther e Morgana, mais especificamente. Com Arthur no meio, como sempre.

“Eu não estou fazendo de propósito. Você sabe disso, não sabe?” Ele lembrava bem. Fora umas das poucas ocasiões, desde que ela entrara na família, em que Morgana, insegura, buscara a aprovação de Arthur. Na maior parte do tempo, ela era orgulhosa demais para procurar apoio nos outros. Geniosa demais. Exatamente como Uther, o que era a grande ironia da situação.

Acima de tudo, eles brigavam porque Morgana não sabia como pedir ajuda, enquanto Uther não sabia como oferecê-la. No impasse, ambos apelavam para discussões acirradas e palavras ácidas, seguidas de um silêncio obstinado que podia durar dias.

LeFay era o grande trunfo da irmã, depois de algumas tentativas profissionais insatisfatórias. Mais do que um trabalho, a galeria – mesmo que um negócio ainda pequeno – representava a independência de Morgana. Que Uther tivesse tomado um simples nome como afronta à memória de Igraine e, pior, como um sinal de ingratidão, era imperdoável para Morgana.

Arthur acreditava que todo filho adotivo, em algum ponto da vida, naturalmente se interessasse em saber sobre seus pais biológicos. Ele podia estar errado, mas fazia sentido. E Morgana não fora uma exceção – ainda mais depois de perder os pais com apenas dois anos de idade, em um assalto a mão armada. Talvez fosse uma forma de a irmã buscar conforto e, principalmente, de superar o fato. Ele sabia o quanto ela amava Igraine – mas sabia também que o amor por uma mãe adotiva não precisava substituir o amor por aquela que morrera antes mesmo que a filha pudesse lembrar suas feições.

Dois anos, e Uther nunca sequer passara pela frente da galeria. Por longos meses, os jantares semanais da família viraram pretexto para discussões, que depois foram substituídas por um silêncio constrangedor. Durante esse período, as ocasiões familiares tornaram-se verdadeiro motivo de indigestão para Arthur – aquele forçado a tentar iniciar alguma conversa com duas pessoas que se recusavam até mesmo a trocar olhares. Depois de algum tempo, ele simplesmente desistira de tentar argumentar com o pai, ou pedir que Morgana tivesse paciência.

Agora Uther simplesmente fingia que Morgana continuava a ser modelo, enquanto a irmã aprendera a não tocar mais no assunto. De qualquer forma, a relação deles não era mais a mesma. Arthur a conhecia bem demais, e era impossível ignorar a decepção estampada no rosto de Morgana a cada evento da galeria a que o pai não comparecia.

Arthur suspirou. Uther fazia tanta questão por algo que, se ainda estivesse viva, Igraine apoiaria com unhas e dentes. O que provavelmente só tornava a situação ainda mais difícil de aceitar para Morgana.

“Então… você vai entrar ou não?”

Ele piscou. Só então se deu conta de que a própria Morgana estava encostada no umbral da porta, as mãos dentro dos bolsos, em uma posição perfeitamente casual, mas a sobrancelha erguida e o pequeno sorriso não o enganaram. As palavras irritadas da irmã ao telefone ainda estavam bem vivas em sua memória.

“As damas primeiro”, ele indicou o caminho com a mão livre, um sorriso irônico no rosto.

Com um muxoxo, Morgana balançou a cabeça e lhe deu as costas, não se deixando enganar por um minuto. O sorriso de Arthur se alargou sem que ela visse.

“Venha.” Ela continuou falando enquanto adentravam a galeria e seguiam pelo corredor que, Arthur sabia, daria no escritório da irmã. “Considerando que ainda são seis e meia da manhã, imagino que você precise voltar logo para o seu precioso hospital.”

“Eu estou aqui, não estou?”, o loiro comentou, seus olhos observando distraidamente os quadros pendurados ao longo das paredes. Já conhecia a maioria deles. “E ele não é meu, mas sim, eu preciso voltar para o hospital”, acrescentou, ignorando as alfinetadas com bom humor.

Não precisava vê-la para saber que Morgana estava revirando os olhos.

Pouco depois, adentraram o escritório, e, enquanto a irmã fechava a porta às suas costas, Arthur tomou alguns segundos para olhar ao redor e sentir pena de si mesmo, dando-se conta de que se sentia mais em casa ali, com os tons claros e as poltronas confortáveis do lugar, do que no seu próprio apartamento. Em seguida, balançou a cabeça e se sentou em sua poltrona favorita, como sempre fazia.

Quando se virou para Morgana, ela estava de pé ao lado da mesa de vidro, mexendo com alguns papéis, mas o pequeno sorriso que ela tentava conter não passou despercebido. Arthur continuou a observá-la, notando as roupas amarrotadas e os cabelos presos em um rabo-de-cavalo frouxo, fios bagunçados caindo sobre o rosto de aparência cansada.

Aquele descuido com a aparência não era do feitio da irmã. Quando o loiro lançou um olhar rápido à sua volta, notando os lençóis meticulosamente dobrados sobre o braço de um largo sofá branco, confirmou suas suspeitas. Com o cenho franzido, voltou a atenção para Morgana, e a encontrou com uma mão estendida em sua direção e uma expressão impaciente.

“Pare com o suspense e me dê logo o bendito presente. Eu sei que esse pacote é pra mim.”

Rindo alto, Arthur balançou a cabeça, mas alcançou o pacote quadrado que vinha carregando desde o carro e pousou-o sobre a mesa. Era grande, cobrindo boa parte do móvel, e fino, deixando óbvio o que havia sob o embrulho de papel madeira. Morgana não perdeu tempo, abrindo-o com uma eficiência que demonstrava prática.

“Direto do Marais”, Arthur comentou, enquanto Morgana retirava a última camada de papel e observava o quadro com olhos ávidos. Dando alguns minutos para que ela digerisse os detalhes da pintura – Arthur sabia, pela forma como a irmã mordia o lábio inferior, que ela não ouviria uma só palavra que ele dissesse –, voltou a observar o escritório, tentando encontrar mudanças desde a última vez que estivera ali.

Não havia muito. Numa das estantes mais baixas, avistou uma foto dele e de Morgana dançando juntos no casamento, cerca de vinte dias atrás. Um sorriso rápido curvou seus lábios. Provavelmente, uma das fotos tiradas por Gwen, que fizera questão de levar a própria máquina, mesmo sabendo que Uther contrataria metade dos fotógrafos profissionais da cidade para registrar o evento.

“É incrível.”

A voz de Morgana atraiu sua atenção novamente. Ela segurava o quadro com as duas mãos, distante do corpo. Arthur correu os olhos pela imagem já conhecida. Nada havia de muito inovador na escolha do cenário – só mais uma paisagem de Paris às margens do Sena –, mas a pintura era de um realismo que atraíra a atenção de Arthur de imediato, parecendo uma fotografia. Exatamente como as pinturas favoritas de Morgana. Comprar aquele quadro tinha sido um dos presentes mais óbvios de toda a viagem.

Enquanto ela cuidadosamente voltava a envolver a pintura com o papel madeira, o foco de Arthur se dispersou mais uma vez, passando por fotos já conhecidas; estantes até o teto, cobertas de livros e quinquilharias que Morgana adorava colecionar, mesmo sem nunca admitir; as duas grandes janelas que tomavam quase toda a parede de fundo do escritório, responsáveis pela iluminação natural do recinto. Dali, ele podia ver todo o parque que ficava atrás da galeria, praticamente vazio àquela hora da manhã.

Por fim, seu olhar parou sobre o único quadro pendurado entre as duas janelas. Era um desenho de Morgana, à base de carvão sobre um fundo branco. Os traços imperfeitos e os sombreamentos feitos a mão formavam uma imagem fluida do rosto da irmã, que ria de algo fora do foco do artista. Os cabelos escuros estavam soltos como ela preferia. Um retrato casual e divertido, o seu favorito da irmã e, facilmente, de toda a galeria. Era também tão Merlin que a assinatura do amigo no canto inferior da tela era desnecessária.

“Ele tem perguntado por você.”

Sem piscar, seus olhos se voltaram para Morgana mais uma vez, e sua única resposta foi um “hm” evasivo. Ela o observou intensamente por alguns instantes, sem expressão alguma. Arthur aguardou o julgamento em silêncio. Para a sua surpresa, quando ela enfim se manifestou, foi com um pequeno sorriso sem humor e um leve balançar da cabeça, antes de estender a mão em sua direção novamente.

“Ok, agora o presente de verdade.”

Arthur gargalhou. “Eu realmente devo estar ficando previsível”, e retirou um papel dobrado do bolso de sua camisa. Havia um nome e um número de telefone rabiscados.

Morgana recebeu o papel como se valesse ouro, um sorriso largo no rosto e os olhos quase brilhando. Para ela, era provável que valesse. Arthur sorriu com afeto.

“Ele está esperando a sua ligação. Ansiosamente, eu diria”, comentou, enquanto ela anotava, em letras grandes e garrafais, os dados do pintor no papel madeira que envolvia o quadro. “Espero que o seu francês não esteja enferrujado.”

“Nah, Merlin pode fazer essa ligação por mim”, ela respondeu, indo até a porta do escritório com o pacote na mão. Ela encostou o quadro contra a parede, ao lado de outros quatro ou cinco já empilhados, à espera de que alguém os levasse.

Enquanto ela organizava a pilha, Arthur lançou outro olhar geral ao redor do escritório e perguntou, tentando soar casual:

“Então… você e Leon?”

A única reação da irmã foi parar o que fazia por dois ou três segundos, e então recomeçar a organizar. Por alguns instantes, Arthur achou que seria simplesmente ignorado, mas então ela perguntou, com a voz rouca:

“Eu e Leon o quê?”

Arthur comprimiu os lábios, observando-a por alguns instantes com um ar pensativo. Quando ela começou a enfileirar os quadros pela terceira vez, ele suspirou.

“Por Deus, Morgana, pare com isso. Eu só quero saber como vocês estão.” Ela se empertigou, mas continuou de costas para o irmão. “A última vez que eu vi vocês dois juntos foi no casamento, e eu digo juntos muito vagamente, considerando que cada um passou a noite em um extremo diferente do salão.”

Quando a irmã enfim se virou, Arthur se deparou com a mesma expressão vazia de alguns minutos antes, o que só o preocupou mais. Morgana e Merlin eram tão parecidos em tantos aspectos, e um deles era que ambos vestiam o coração na manga, para todos verem. Uma reação tão evasiva por parte de Morgana não era algo com que estivesse acostumado.

“A gente vai ficar bem.”

Arthur ergueu uma sobrancelha diante da resposta curta e seca.

“Se o seu conceito de ‘bem’ inclui dormir no trabalho, eu não estou ficando menos preocupado.”

Com lábios crispados, Morgana voltou a aproximar-se da mesa para encará-lo fixamente.

“Arthur, hoje não, ok?”

E, enquanto ela reunia alguns papéis com uma expressão firme, Arthur suspirou e se levantou, entendendo que o assunto estava encerrado. De pé ao lado dela, o loiro repousou uma das mãos sobre o braço da irmã, forçando-a a parar o que estava fazendo. Quando seus olhares se encontraram, ele ofereceu um pequeno sorriso.

Ela ficou quieta por alguns instantes, encarando-o. E então cobriu a mão dele com a sua.

“A gente vai ficar bem”, ela sussurrou, como se compartilhasse um segredo.

Arthur assentiu, em silêncio. Morgana então se afastou, e ele a seguiu. Enquanto ela abria a porta, Arthur lançou um último e rápido olhar para o quadro entre as duas janelas. Quando se voltou para a saída, a irmã o observava com uma sobrancelha erguida.

“Merlin vai chegar daqui a pouco para dar uma olhada neles.” Ela gesticulou em direção aos quadros empilhados ao lado da porta. Houve uma pausa, e Arthur sabia exatamente o que viria em seguida. “Por que você não espera? Ele não deve demorar.”

“Eu preciso voltar para o trabalho, ‘Gana.” Não era mentira, mas, mesmo aos ouvidos de Arthur, as palavras soaram como uma desculpa fraca.

Sua irmã torceu os lábios, mas assentiu curtamente. O que significava que ela não concordava com o que quer que ele estivesse fazendo, mas não iria discutir. Em silêncio, Arthur agradeceu pela pequena trégua. Já estava no corredor quando ela o chamou mais uma vez.

“Esqueci de dizer,” Arthur se virou para encará-la, “Gary’s hoje, às oito. Gwen e Lancelot convidaram todo mundo.”

Arthur ergueu as duas sobrancelhas.

“Gary’s, huh?” E então, ele sorriu abertamente. “Eles finalmente marcaram o casamento?”

“O que eu posso dizer? Parece que você iniciou tendências por aqui.” Uma expressão marota tomou conta do rosto de Morgana. “Lembre de fazer cara de surpresa quando eles derem a notícia.”

O loiro riu. Morgana ofereceu um sorriso, mas Arthur apenas conseguiu enxergar o cansaço por trás do gesto.

“Me ligue.”

“Eu poderia dizer o mesmo.” Dessa vez, não havia censura nas palavras dela, e o pequeno sorriso ganhou alguns milímetros no rosto pálido de Morgana. Arthur assentiu novamente e, com um curto aceno, deu as costas à irmã e foi embora.

***

Arthur encarava o copo vazio com certo desânimo, considerando se seria mais válido ir até o bar para conseguir outra bebida ou simplesmente coagir Lancelot a fazer aquilo por ele, quando o próprio pigarreou alto, chamando sua atenção e de toda a mesa.

Quando olhou para o amigo, ele e Gwen estavam trocando olhares cúmplices e, no caso dela, um sorriso constrangido. Arthur conteve o riso. Então eles finalmente fariam o anúncio. Olhou discretamente para o relógio. E o casal só precisara de uma hora e meia para tomar coragem. Muito bem, Lance.

Um chute nada gentil em um de seus calcanhares provou que não fora tão discreto assim. Fez uma careta para Morgana, do outro lado da mesa, e ela retribuiu com um sorriso vitorioso. Ao lado dela, Leon revirou os olhos, mas era óbvio que se esforçava para não rir. Morgana bateu no peito dele, mas era óbvio que ela também queria rir.

Um sorriso suave tomou conta do rosto de Arthur. Quando chegaram, Leon e Morgana estavam tensos, e mesmo sentados um ao lado do outro, quase não se tocavam. Agora pareciam mais relaxados, e lentamente as discretas demonstrações de carinho começavam a ressurgir entre os dois, o que o deixava mais tranquilo. Se a irmã dissera que eles ficariam bem, então Arthur acreditaria nela.

“Hem.” Lancelot agora estava de pé, erguendo uma taça, e parecia extremamente desconfortável com a situação. Gwen lentamente ficava mais vermelha.

“Desembuche de uma vez, homem.” Todos riram e olharam para Elena, que fora adotada pelo grupo logo depois que Lancelot a conhecera, também trabalhando como advogada para as indústrias farmacêuticas de Uther. Ela piscou um olho para o amigo, um sorriso maroto no rosto.

Sem jeito, o moreno começou a agradecer pela presença de todos. Arthur observou, divertido, enquanto ele começava a gaguejar. E pensar que Lance era um dos advogados mais competentes trabalhando para Uther Pendragon.

Lançando um olhar ao redor, Arthur encontrou expressões similares de divertimento, todos fingindo não saber o que Lancelot e Gwen estavam prestes a anunciar, para não aumentar o constrangimento dos amigos. Não foi com surpresa que seu olhar cruzou com o de Merlin, que estava sentado duas cadeiras à esquerda de Morgana. Desde que chegaram ao bar, depois de um cumprimento inicial sem jeito, os dois não haviam trocado uma palavra sequer, mas ambos estavam extremamente cientes da presença um do outro.

Arthur tinha de admitir que o estranho sentado ao lado de Merlin, com um braço estendido sobre a cadeira onde o amigo estava, envolvendo-o em um quase abraço, não era a única razão para o atual desconforto entre os dois.

Por outro lado, Arthur era obrigado a reconhecer que a presença do homem – Gavin, se não estava enganado –, assim como o fato de ele lhe ter sido apresentado como o mais novo namorado de Merlin, não colaboravam com a situação.

Como das outras vezes, Arthur ignorou o olhar do amigo, voltando a atenção para Lancelot, que agora puxava Gwen para ficar de pé ao lado dele. Assim como naquela manhã, o loiro não estava disposto a analisar as razões por que não queria falar com Merlin ou sobre ele. Tudo o que queria naquele momento era dar os parabéns aos amigos e voltar para casa, onde Lizzie e outra crise de decoração o aguardavam.

De fundo, Arthur reconheceu os primeiros versos de You Brought a New Kind of Love To Me e sorriu. Apropriado.

“… e, bem, eu… pedi Gwen em casamento semana passada. E ela aceitou.” Nesse momento, o sorriso tomou conta do rosto de ambos, e Lancelot beijou a noiva com entusiasmo.

Por um curto espaço de tempo, a mesa permaneceu em silêncio.

E então, de repente, todos estavam falando ao mesmo tempo, levantando-se, erguendo taças e se abraçando, e por alguns instantes Arthur se viu de volta no tempo, no próprio casamento. Os brindes, os comentários em voz alta, as risadas de Gwen, Lizzie chorando.

Merlin desaparecendo, para voltar com olhos vermelhos e a expressão de quem recebera uma boa notícia quando já era tarde demais.

Uma imagem tão diferente do Merlin que estava vendo naquele momento, sorrindo abertamente e abraçando Gwen com força, enquanto tentava alcançar Lancelot ao mesmo tempo, falando alto e, Arthur suspeitava, com lágrimas nos olhos. O loiro sorriu. O amigo sempre dera bons motivos para que Arthur o chamasse de garota.

Naquele instante, tentou lembrar se Merlin tivera a mesma reação efusiva quando Arthur lhe contara sobre o seu noivado, um ano atrás. Tinha certeza de que houvera algumas lágrimas e um sim bastante surpreso quando o loiro o convidara para ser seu padrinho logo em seguida.

Arthur observou em silêncio enquanto Merlin, obviamente constrangido, mas mesmo assim rindo, permitia que Gavin enxugasse algumas de suas lágrimas. O estranho sorria e tocava o rosto dele gentilmente. Era óbvio que, mesmo sem conhecer Gwen ou Lancelot como todos ali, ele estava feliz por eles. Mais do que aquilo, ele estava feliz por Merlin.

Arthur desviou o olhar.

Não, pensou, lembrando-se do dia em que anunciara seu noivado, nada como isso.

***

“Hey, garoto.”

“Gary.” Arthur levantou o copo vazio em cumprimento, sentando-se em um dos bancos altos do bar.

“O de sempre?”

Arthur assentiu com um sorriso rápido. Batendo dois dedos na têmpora direita em uma breve continência, o homem de jeans e camisa xadrez se afastou. O loiro o acompanhou com os olhos distraidamente. Kilgary Johnson era o dono daquele bar há mais de vinte anos e, involuntariamente, acompanhara todos os grandes acontecimentos na vida de Arthur e de todos ali – aniversários, o seu noivado e agora o de Lance, o novo emprego de Merlin como designer gráfico, a inauguração da galeria de Morgana. Eram tantos que já perdera a conta.

Com o tempo, e sem planejar, eles passaram a comemorar eventos importantes ali, e agora era o lugar perfeito para anúncios oficiais como o daquela noite.

“Você vai gostar dessa, garoto”, Gary chamou sua atenção, piscando um olho. Antes que pudesse perguntar o quê, a jukebox mudou de faixa.

Reconhecendo os versos iniciais de outra canção de Sinatra, Arthur sorriu. A música era um de seus aspectos favoritos do lugar. Para Gary, os anos 80 ainda eram “a nova geração que veio para destruir a boa música”, então raramente se ouvia algo lançado depois de 1979. Aquilo lhe trazia um conforto familiar, já que aquele era o tipo de música que seu pai costumava ouvir quando o loiro era pequeno.

Arthur observou enquanto o homem preparava sua bebida. Podia ver um pouco de sua mãe nos escassos cabelos loiros que ainda restavam em meio ao grisalho, assim como nos olhos azuis. Gary era tecnicamente seu tio, mas, desde o início do câncer de Igraine, ele e Uther não se falavam, e ninguém além de Gaius sabia muito bem por quê.

Gaius era o único membro remanescente da família Johnson que ainda mantinha contato próximo com os Pendragon, e ele se recusava a falar sobre o assunto. A única coisa que Morgana conseguira descobrir, alguns anos atrás, fora que, mesmo antes de Igraine se tornar uma Pendragon, Kilgary era contra o casamento da irmã mais nova com Uther.

Quando a mãe morrera, Arthur e Morgana ainda eram muito pequenos e praticamente haviam perdido contato com o irmão de Gaius e Igraine, exceto por noites como aquela. Uther provavelmente teria um infarto se soubesse, mas Arthur não se importava. Ele gostava de Gary, ainda que soubesse muito pouco sobre o tio.

Vozes conhecidas interromperam seus pensamentos. Com o cenho franzido, Arthur olhou para os lados, mas havia outras pessoas em pé ao redor, impedindo sua visão.

“– melhor do que Will. Já é um começo. Se bem que qualquer um é melhor do que Will.”

“Nessas horas, eu lembro que você e Arthur são irmãos.”

Eles estavam bem próximos, Arthur percebeu, quando um grupo de pessoas à sua esquerda enfim se afastou do bar. Morgana estava de pé, encostada no balcão em uma posição casual, enquanto tomava a cerveja no gargalo e observava a movimentação do lugar. Era o tipo de cena que costumava atrair homens assim como era certo que mel atrairia abelhas. Inevitavelmente, algumas pessoas ao redor – nem todas do sexo oposto – já observavam sua irmã de esguelha, ponderando as próprias chances de levar um fora. Arthur revirou os olhos.

Assim como ele, Merlin estava sentado em um dos bancos altos, de costas para a multidão, observando a própria cerveja com um ar ligeiramente entediado. Arthur franziu o cenho, perguntando-se onde estaria o estranho. Ele não os vira separados desde que chegaram ao bar.

“Sininho, até você tem de admitir que William não foi um dos seus melhores momentos.”

“Ele não era pior do que Owen.”

Morgana resfolegou.

“Owen era um idiota. De proporções épicas.”

Eles se entreolharam e, com um sorriso cúmplice, bateram as garrafas de cerveja em um brinde silencioso. Arthur baixou a cabeça e tentou esconder o próprio sorriso diante do comentário. Aquele era um consenso indisputável.

Quando Gary enfim trouxe sua bebida, o loiro assentiu brevemente, agradecendo em silêncio. O homem o encarou por alguns segundos, olhou na direção de Morgana e Merlin e, quando voltou a atenção para ele, estava sorrindo. Com uma risada baixa, seu tio balançou a cabeça e se afastou.

Dando de ombros, Arthur voltou a prestar atenção na conversa da irmã e do amigo. Não era muito digno, mas ele estava curioso para saber quais eram as impressões de Morgana sobre o recém-chegado. Ela geralmente tinha um senso aguçado para babacas como William e encrencas como Owen.

“Bem, eu digo que você finalmente acertou na loteria, meu amigo.”

“E eu digo que você só está dizendo isso porque Gavin e Leon são primos”, Merlin retrucou, rindo quando Morgana acertou alguns amendoins no seu rosto.

“Eu estou falando sério, idiota.”

“Não sério demais, eu espero. Dois casamentos em menos de um ano são mais do que suficientes.” Quando Arthur viu o amigo responder à careta de Morgana com um sorriso inocente, teve de abaixar o rosto e encarar a própria bebida para conter o riso.

A mulher deu de ombros, com um falso ar de resignação.

“Com ou sem planos de casamento, ele me parece um bom sujeito.” Ela soou sincera. “Independente das relações familiares”, acrescentou logo em seguida, dando língua quando o amigo ergueu uma sobrancelha.

Merlin suspirou, o que era sinal de que estava se rendendo à insistência da amiga.

“Ele é. Um bom sujeito”, ele elaborou, quando Morgana pareceu momentaneamente confusa. “Mas… eu estou falando sério, ‘Gana, nada de grandes expectativas.”

“E nós dois sabemos muito bem por quê”, ela comentou casualmente, como quem fala sobre o tempo, antes de tomar outro gole de cerveja.

Arthur, que bebericava seu uísque, começando a distrair-se e perder o foco na conversa, baixou o copo diante daquele comentário e, da forma mais discreta possível, olhou na direção do par. Morgana continuava observando a multidão calmamente, mas Merlin segurava a garrafa de cerveja com força, encarando o balcão à sua frente com uma expressão tensa.

Quando o silêncio se estendeu entre eles, sua irmã colocou a própria garrafa vazia em cima do balcão com um pouco mais de força do que o necessário.

“O quê?” Ela se virou para o amigo e, consequentemente, ficou de costas para Arthur, uma das mãos espalmada sobre o balcão enquanto a outra gesticulava. “Todo mundo aqui sabe o que vai acontecer.”

“’Gana…” Arthur não podia vê-lo, mas o amigo soou cansado.

A mulher o ignorou.

“Sabe, por muito tempo eu achei que nenhum dos seus namoros dava certo porque Arthur sempre dava um jeito de atrapalhar – aliás, eu não vou nem entrar nesse mérito, ou a gente nunca vai sair daqui. Mas agora eu percebi – demorou, eu sei – que você faz todo o trabalho sujo sozinho. Veja agora, por exemplo: o idiota passa a noite inteira ignorando você, mas ainda assim você vai acabar trocando um cara como Gavin por ele.”

“Eu nunca troquei ninguém por Arthur.”

“Tem razão. Nesses treze anos, você trocou todos eles só pela ideia de estar com Arthur – que agora é casado, vale ressaltar.”

“Morgana, será que você não pode dar trégua só por uma noite e desistir desse assunto?” Pela primeira vez, Merlin começava a soar irritado.

“Quando você desistir, eu faço a mesma coisa.”

“Não é tão fácil quanto trocar de roupa, é?”, Merlin perguntou, ríspido.

“Não, mas é uma escolha que você tem que fazer: ficar se lamentando pelo meu irmão recém-casado, ou aproveitar a chance com alguém como Gavin.” O tom de voz de Morgana se tornou mais suave ao continuar: “Eu sei que você ama ele, Mer, eu sei. Isso provavelmente não vai mudar. Mas o casamento dele com Lizzie também não. Você pode aprender a amar outras pessoas também.”

“Talvez. Mas…” Morgana torceu os lábios, e Merlin desviou o olhar para as próprias mãos de novo. “Você acha que seria justo com Gavin? Eu não quero fazer dele…”, ele hesitou, mordendo o lábio inferior.

“O cara de transição?” Ela completou, com um sorriso maroto. “Ele não precisa ser. Ou, pelo menos, ele pode ser mais do que isso, se der certo.”

“E se não der?”

“Você sabe tão bem quanto eu que há outros peixes no oceano.” Eles riram juntos.

Morgana apertou um dos ombros do amigo gentilmente.

“Eu vou voltar para a mesa, Leon já deve estar me procurando. Você devia fazer a mesma coisa – Elena não vai conseguir distrair o seu garotão por muito tempo. Ela ainda é a pior dançarina que Londres já conheceu.”

“Daqui a pouco eu vou”, ele assentiu, com um pequeno sorriso. Morgana piscou um olho e se afastou, deixando-o sozinho.

***


Today you were far away
And I didn’t ask you why
How close am I to losing you?
(The National)


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Notas finais do capítulo

Música citada:

1) Frank Sinatra, "You Brought a New Kind of Love To Me."

Referências:

1) "Direto do Marais.": Le Marais é um dos bairros boêmios mais conhecidos da cidade de Paris, marcado pela presença das galerias de arte.
2) "mas a pintura era de um realismo que atraíra a atenção de Arthur de imediato, parecendo uma fotografia.": Apesar de não citar o nome do pintor, aqui eu fiz referência ao estilo e às pinturas de Edward Hopper, para quem tiver curiosidade em saber como seria o quadro que Morgana ganhou.
3) "Era um desenho de Morgana, à base de carvão sobre um fundo branco.": Assim como no caso anterior, mesmo sem citar o artista, eu usei como inspiração os desenhos à base de carvão de Gil Vicente, em especial a sua série "Inimigos", que também pode ser vista pelo Google, para os que ficarem curiosos.
4) "O cara de transição? Ela completou, com um sorriso maroto.": A expressão "cara de transição" (transitional person) foi retirada do filme "Harry e Sally, Feitos Um Para o Outro" (no original, When Harry Met Sally, de 1989) e é usada pela personagem Sally, interpretada por Meg Ryan.