A Deusa Perdida escrita por mari mara


Capítulo 2
É, matar monstros pode ser bastante divertido de vez em quando


Notas iniciais do capítulo

Obrigada pelos reviews, gente! Espero que gostem desse também :D



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[editado — se você não entendeu, volte e leia os disclaimers, run run u.u]

Capítulo 2 (que teoricamente é 1 mas como o prólogo foi 1 pelo Nyah, tanto faz): É, matar monstros pode ser bastante divertido de vez em quando

Parte I: Point of View — Nico di Angelo

Estava sendo um dia bastante normal, se você quer saber. Eu havia passado a última semana no Mundo Inferior, fazendo nada além de escutar meu pai reclamando de como eu era inútil, Perséfone dizendo que não aguentava me ver sem se lembrar de todas as milhares de vezes que fora traída e Deméter falando que eu devia comer mais cereais porque estava muito magrelo, ou algo assim. Ou seja, tinha sido uma semana muito, mas muito tediante. O que é normal.

Saí pela porta de Caronte, em Los Angeles. Era divertido sair por lá, primeiro porque eu não teria que subir trocentas escadas da porta de Orfeu. Segundo porque gosto de vagabundear pela cidade, conversar com os mortos, assustar casais que acham que é divertido se pegar em cemitérios... Aliás, sabia que existem cerca de trinta e dois cemitérios em LA? Por isso que se chama cidade dos anjos.

(Ba dum tss)

Enfim, piadas ruins à parte, saí pela porta de Caronte, ignorando as almas que me imploravam por mais alguns dias de vida e caminhei por algumas das avenidas mais importantes da cidade. Pela quantidade de limusines, hoje era um dia bastante corrido para as celebridades. Importante citar que já vi algumas delas enquando vadiava por aí, e nem sempre elas estavam vivas, como da vez que eu vi o fantasma do Michael Jackson rondando Holmby Hills, um bairro pouco pobre da cidade.

Foi estranho.

Depois de bater perna nos arredores de Hollywood Boulevard, fiz meu caminho até a parte não tão bonita de LA, atrás de um cemitério bastante interessante que há por lá.

Uma curiosidade sobre a cidade das estrelas: ela é legal, sim, é. Tem gente bonita, famosa, rica, é lógico que tem. É a capital da fama, afinal. Mas se você andar até a parte menos, como dizer, glamurosa, te dou apenas um conselho: entrega sua alma ao céu, segura na mão dos deuses e vai cara, porque as chances de você ser assaltado, sequestrado, esquartejado, esfaqueado, destroçado, decapitado, fuzilado, atropelado ou quem sabe caçado pelo FBI são grandes.

Não que eu ligue pra isso. Eu caminho por lá que nem eu caminharia num shopping. Fala sério, ninguém mexe com um garoto branco-defunto vestido de preto da cabeça aos pés que vez e outra é visto passeando por cemitérios.

Também já disseram que eu cheiro a morte, obrigado.

Enquanto eu andava calmamente com as mãos nos bolsos numa ruela não muito bela com nome de algum presidente que governou nos meus anos de Cassino Lótus, lançando um olhar carrancudo a qualquer caboclo que ousasse pensar na possibilidade de me assaltar, ouço o que parece ser uma briga.

Não dou muita bola porque discussões que acabam em hospitais ou almas sedentas por vingança são coisas comuns por aqui, mas de repente escuto algo que me faz parar de caminhar por alguns instantes.

— Não quero saber! — é a voz de uma garota, não muito velha. É um berro raivoso, mas parece vacilar um pouco no final — Me deixa em paz, seu filho de uma rapariga!

Minhas sobrancelhas se franzem. É raro quando mulheres também se envolvem nessas brigas.

Ora, colabore com a gente — agora, é a voz grave de um rapaz — Não é minha culpa se você pediu nossa ajuda.

Tento descobrir de onde vêm as vozes, e então ando silenciosamente até o cruzamento. Me apoio na parede do último prédio e, discretamente, olho o que está acontecendo.

Não era uma rua, mas sim um beco sem saída, que mesmo estando de dia conseguia a incrível façanha de estar escuro. Havia uma garota de pé no meio dele, que não parecia ser mais velha que eu: treze, talvez? Seu rosto sério é emoldurado pelo cabelo loiro liso, mas desgrenhado.

Em sua frente estão parados três garotos que devem ter em torno de seus dezesseis anos. Pela forma como eles sorriem debochadamente, não são pessoas muito simpáticas.

— Eu não pedi a ajuda de vocês — diz a garota, andando pra trás para se distanciar deles — Eu estava com fome, e vocês são melhores em roubar que eu. Só isso.

Ela anda pra trás um pouco demais, e acaba batendo as costas no muro. Um dos garotos, o mais alto, firma suas mãos na parede e encurrala a garota.

— Você sabe das regras, Hannah — ele fala enquanto os outros riem. Pela voz, é ainda o primeiro que escutei. Parece que ele é o líder e os outros dois os comparsas — Nada é de graça por aqui.

Quando o mesmo que a encurralava segura seu queixo, Hannah cospe na cara do garoto. Ele fecha os olhos, rindo sem humor um pouco alto demais, e limpa o rosto com as costas da mão.

— Pega leve, docinho — ele pega seu queixo de novo, mas dessa vez aperta com força — Seja boazinha. Não torne as coisas ainda mais complicadas.

— Eu sempre vou complicar as coisas pra você, Scott — e ela dá uma joelhada no garoto num lugar que, olha só, se fosse eu teria me contorcido de dor na hora.

Enquanto ele grunhe um xingamento, muito concentrado na dor de seus apetrechos, Hannah corre para longe deles. O segundo, que tem o mesmo físico de um rochedo, tenta pará-la, mas desiste quando leva um soco no rosto. Pelo jeito que ele grita e segura o queixo, está quebrado. A garota está quase na rua em que me encontro quando o terceiro, que é menor que o segundo mas ainda deve ter o dobro do meu tamanho, puxa-a pelo cabelo e joga-a pra trás. Ela cai de costas no chão, respirando com dificuldade, e o terceiro coloca o pé em sua barriga para que não possa se mexer. Scott, que parece ter superado a joelhada bem rápido, anda até Hannah e se ajoelha ao lado da garota.

— Vadia.

Ele tira um canivete do bolso, e assim que o vejo, arquejo. Nenhuma lâmina tem um brilho metálico tão forte quanto aquele. Ao menos, nenhuma lâmina mortal. Aquilo não era aço nem ferro, era bronze celestial. O único metal capaz de ferir monstros, deuses ou semideuses.

Decido que é melhor sair do meu (quase) esconderijo, e fazer algo que preste. Não sei o que eles são, mas ela tem perfil de semideusa. Não posso deixar que três idiotas, mesmo que também sejam meios-sangues, cortem sua garganta na minha frente. Desmanipulo a névoa de forma que minha espada estígia embainada fica visível, e paro na frente do beco. Preciso de uma frase de efeito. Intimidar o inimigo, mostrar que não se mata ninguém quando eu estou presente.

— Com licença — digo, me arrependendo cinco segundos depois. Qualquer coisa soaria menos ridículo que ‘com licença’. Qualquer coisa.

“Olha aqui, com licença, mas vocês são semideuses? Monstros? Ah, legal, muito prazer, sou Nico di Angelo, filho de Hades, e estou aqui pra cortar a garganta de vocês de forma que não cortem a garganta dela. É, pois é, meio chato, mas mande lembranças ao meu pai. Obrigado aí, cara. Gente fina, você”

Scott vira a cabeça em minha direção, ainda virado para a garota imobilizada no chão.

— Pois não? Desculpe, mas estamos meio ocupados — ele está olhando pra mim, mas continua com o canivete na garganta dela. Reparo que ele ainda não a machucou, deve estar só esperando a distração, vulgo eu, deixar de atrapalhar — A Calçada da Fama fica pra lá — ele aponta para a oeste com a cabeça.

— Não sou um turista — respondo. Ele certamente chegou à essa conclusão pelo meu sotaque nova iorquino. Era bem diferente do deles, californiano — Quero que você solte a garota, por favor.

Primeiro ‘com licença’, agora ‘por favor’. Ótimo, consegui deixar eles tão intimidados quanto um poodle deixaria.

— Calma aí, caubói. Isso é entre a gente e ela, sacou? Então se você puder.. — desembaino a espada, e a voz de Scott vacila. Posso sentir que ele não gostou de não ser mais o único com uma arma que possa o ferir.

— Eu falei pra soltar a garota — rosno, dando um passo pra frente. Vejo o pavor passar rapidamente pelos olhos escuros do cidadão quando fala ‘peguem ele’ com os capangas.

Santo Hades. Dá uma de bandido, mas por dentro é uma princesa.

Seus guarda-costas avançam na minha direção, mas é muito fácil me desvincular deles. Uma das razões é porque estão de mãos vazias, se limitando às tentativas de acertar o punho na minha cara, a outra porque eles tinham quase dois metros de altura e pareciam mais armários. Eu, com meus um e sessenta e cacetada e peso de um garoto de treze anos normal, tinha muito mais facilidade para desviar dos golpes.

Mas (sempre tem um ‘mas’, brigas sem mas não são brigas de verdade) é lógico que não era o tempo todo.

Segundo, o cara com o queixo meio deslocado que mais parece um Pão de Açúcar ambulante, me acerta na barriga quando tento cortar a cabeça do terceiro. Bato de costas na parede, ficando sem ar por instantes. Caramba, espero que essa tal de Hannah seja semideusa mesmo, ou terei tido muito trabalho pra nada.

Não que eu fosse deixar ela morrer se fosse humana, sabe, mas.. Ah, enfim. Você entendeu.

— Perdeu a pose de Super-Homem agora, guri? — pergunta debochadamente o brutamontes, com certo sotaque latino na voz. Ele me agarra pela camisa e me levanta de uma vez, fazendo minha espada cair com um baque no chão.

Sinto o suor correndo pelo meu rosto, mas então olho para além do segundo. Foi uma questão de instantes, mas quando faço isso, vejo que Hannah está olhando pra mim. Ela ainda está caída no chão, com uma lâmina no pescoço, e me encara como se eu fosse sua única chance de sair viva daqui, o que talvez fosse verdade. Reparo também que seus olhos, que se encontram arregalados, são azuis. Mas não aquele elétrico como os da Thalia nem aquele escuro como eram os do Luke, e sim azul-bebê. Um tom mais claro, como os do céu acima da Casa Grande num dia sem nuvens.

Esses filhos da puta não iam me impedir de levá-la pro Acampamento. Não iam mesmo.

Sigo o exemplo da Hannah e chuto o segundo com o máximo de força que consigo, e ele cai de joelhos no chão, me soltando. O coitado começa a me xingar de alguma coisa, mas pego minha espada do chão e cravo em suas costas antes, fazendo-o virar pó instantaneamente. Então eles não são semideuses. São monstros.

Terceiro evacua quando vê o comparsa sumir (eu poderia dizer ‘quando vê o comparsa morrer’, mas todos nós sabemos que monstros são putos demais para algo tão simplório quanto morrer) começando a ter uma noção do perigo que o semideus branquelo pode causar. Corro em sua direção e ele tenta acertar a mãos em concha nos meus ouvidos, o que me deixaria tonto ou furaria meus tímpanos, mas me abaixo e dou uma cambalhota antes de ele me golpear. Me levanto atrás do sujeito, e num pulo, passo a lâmina em seu pescoço. Mais uma vez, ele some instantâneo ao golpe.

[Lembrete: Como minha pessoa disse lá em cima, é muito mais fácil eu desviar dos golpes deles do que o contrário. Tá vendo Deméter, não comer cereal e ser relativamente magrelo tem suas vantagens.]

Viro-me na direção do último monstro, Scott. Ele não está mais ajoelhado, e sim de pé, segurando Hannah com uma espécie de chave-de-braço, impedindo-a de respirar. Acho que ficou com medo por perder os guarda-costas (não falei, é uma princesa). Ele também está com o canivete contra pescoço da garota, onde passa sua jugular. Um corte, por menor que seja, poderia levar à sua morte.

— Dê mais um passo, Super-Homem, e a vadiazinha aqui perde a cabeça.

Olho de volta pra ela. Seu rosto está ficando pálido e os lábios azuis, e ela me encara desesperadamente. Não sei o que é pior, ficar parado e ela ser asfixiada, ou tentar ajudar e ela ser degolada.

Vida de semideus. A personificação da felicidade.

— Vá com calma, cara — abaixo a espada e levanto a mão livre num sinal de inocência — Solte a garota e eu deixo você ir.

Ela balança a cabeça negativamente, mas eu ignoro. Está sem ar e sem oxigênio no cérebro, não deve estar pensando direito. Scott ri com escárnio, e a prende com um pouco mais de força.

— Até parece. Vocês, semideuses, são mais sujos que o Caos.

As engrenagens de meu cérebro começam a girar, primeiro devagar, depois num ritmo acelerado, e então tão rápido que nem mesmo eu consigo acompanhar. Caos. Escuridão. Sombras.

Hora de testar seu nem tão talentoso talento para o teatro, di Angelo.

— Quer saber? — falo aumentando minha voz alguns tons, observando mais uma vez o beco sem saída. Coisa boa ele ser escuro — Não tenho nada a ver com isso.

Scott solta uma risada má, que ecoa nas paredes úmidas.

— Nem mesmo o semideus emo quer você, Hannah — ele olha pra mim com um sorriso superior — Covarde. Não aguenta nem ver um pouco de sangue de vadia derramado.

Cerro os dentes com o ‘semideus emo’, mas finjo despreocupação.

— Que se dane — dou de ombros — Não é problema meu, nem ao menos sei quem ela é. Mate-a.

— Com prazer — ele diz, no mesmo instante que pulo na sombra da parede ao meu lado. Coisa boa é uma viagem nas sombras de três metros de distância ser tão rápida que, quando piso em terra novamente, ainda posso escutá-lo dizer a última sílaba zer.

Fico atrás de Scott e coloco a espada contra seu pescoço, do mesmo jeito que ele fizera com Hannah. Ele se assusta com a lâmina fria em sua pele e solta garota, que cai no chão, tremendo.

— Pra sua informação é dark, não emo — falo por entre os dentes, certificando-me de que ele seria morto caso se mexesse.

— Você.. como.. — diz com pânico na voz, sem entender como eu surgi ali — Você é um filho de Hades?

Dou uma risada sem humor e quase que sombria. É o único tipo de risada que eu dou a anos, na verdade.

— Não. Não sou um filho de Hades — falo perto do seu ouvido — Eu sou o filho de Hades.

Então passo a lâmina em seu pescoço, e ele se desintegra. Um, dois, três já foram: touchdown.

Passo as costas da mão na testa. tirando o suor, e embainho minha espada novamente. Também manipulo a névoa com a mente de forma que ela não fique visível. É muito mais fácil andar por ai sem que as pessoas vejam que você tem uma espada e achem que vai, sei lá, ser um maníaco que terá prazer em decapitá-las.

Embora eu realmente goste de decapitar algumas pseudo-pessoas de vez em quando.

Ando até a suposta semideusa, que ainda se encontra encolhida no chão. Suspendo-a pelos ombros e, com cuidado, deixo-a sentada apoiada no muro. Vejo que seu pescoço está vermelho onde Scott segurou o canivete antes que ela põe as mãos em volta dele, tremendo. Me agacho na sua frente e enquanto espero alguns minutos sua respiração descompassada voltar ao normal, eu a observo discretamente.

Sua calça jeans e sua blusa que em algum momento longínquo devia ser branca estão bastante surradas, assim como os coturnos, indicando que ela deve estar nas ruas a muito tempo. Pelo mesmo motivo é difícil dizer o tom da sua pele, mas creio que seja um claro nem tão claro quanto eu. Também, ela tem algumas cicatrizes nos braços, que suspeito ser de situações como as de hoje, e entre os fios de cabelo loiros há também alguns pintados de roxos.

Ela parecia mais uma garota que você encontraria num show do Sex Pistols.

— Você está bem? — pergunto, quando ela volta a respirar normalmente. Hannah para de fitar o chão e olha para mim, com uma mão ainda no pescoço. É, não era impressão minha, seus olhos realmente são azuis.

Ouço um trovão ao longe no mesmo momento que sua expressão passa de atônita a raivosa. Antes que eu consiga ao menos começar a entender, ela fecha o punho da mão livre e me acerta no queixo.

~~

Parte II: Point of View — Hannah

Eu queria começar logo a contar sobre o dia que um garoto desprovido de melanina apareceu feito um tijolo desgovernado na minha vida, mas acho que a parte chata das apresentações deve vir primeiro. Certo, lá vai.

Oi pra você. Sabe a garota que quase perdeu o pescoço hoje? É, era eu. Muito prazer, Hannah. Ótimo, apresentações feitas!

— Você está bem? — perguntou o garoto, agachado na minha frente. Ele havia acabado de matar Scott, Marcus e Miguel, três dos maiores bandidos da parte não angelical de Los Angeles. Não que eu não estivesse feliz com isso. Na verdade, se eu pudesse, estaria jogando serpentina no túmulo deles enquanto cantava que no pare la fiesta.

Mas ele não havia exatamente matado, e sim evaporado os caras. As únicas vezes que eu já havia visto algo assim era o próprio Scott brigando com as gangues inimigas, o que acontecia com certa frequência. Normalmente, sempre que eu arranjava alguém com quem andar, o trio parada dura chegava e pá!, adeus comparsas. Havia cerca de um ano que eu rondava por aí, e desde meu primeiro dia de fuga eles queriam que eu me juntasse ao grupo. Por quê? Hmm.

Por isso eu não confiava no garoto branquelo parado à minha frente. Como eu poderia ter certeza de que ele era confiável? Quero dizer, quem era eu para não ser a próxima a ser evaporada? Foram essas e outras perguntas que me fizeram bater nele, ao invés de simplesmente responder a ‘você está bem’. O que, aliás, era uma pergunta bastante idiota. Tô ótima, tá vendo não? Quase fui decapitada por um panguá aqui. Sonho de consumo de toda garota!

Assim que meu punho acerta seu rosto, ele cai sentado no chão. Não estou com forças o bastante para deslocar alguma coisa, como fiz com Miguel, mas foi o bastante pra fazê-lo colocar a mão no queixo e olhar pra mim com os olhos castanhos indignados.

— Posso saber por que a senhorita me bateu? — ele começa a frase normal, mas sobe o tom no final. Ah, não é minha hora de responder às perguntas.

— Quem é você? — rebato, dobrando os joelhos na altura do peito e mantendo o máximo de distância entre nós. Leia-se vinte centímetros.

Ele mexe o maxilar, certificando-se de que está tudo no lugar. Reparo que sua pessoa tem uma obsessão não-saudável pela cor negra. Tudo em seu corpo, desde seu all-star até sua camisa com o desenho de uma caveira, é preto. Menos a pele, porque meu Deus, eu me pergunto aqui comigo mesma, como alguém consegue ser tão pálido.

— Meu nome é Nico. Nico di Angelo — responde, suspirando. Acho que desistiu de tentar entender porque levou um de direita no rosto — Não sou como eles, Hannah. Você pode confiar em mim.

Eu ia perguntar como ele sabia meu nome, mas então me lembrei de que Scott dissera me chamara de Hannah no mínimo meia dúzia de vezes.

— O que quer dizer com não ser como eles? Por que foi exatamente isso que Scott e companhia ilimitada falaram na primeira vez que os vi.

Ele passa a mão pela nuca, certamente pensando como explicar. Ah, tenho todo o tempo do mundo meu filho, não saio daqui até ter respostas.

— Eles eram monstros — diz, finalmente.

— Diga algo que eu não saiba.

— Não, é sério. Monstros de verdade — Nico me encara — Sabe a mitologia grega?

Ah, mitologia... Me lembra meus anos de escola. Era minha matéria preferida em história e filosifia. Certa vez tive de fazer um trabalho sobre as cidade-estado gregas, e acredite, a melhor parte foi assistir à 300.

THIS IS SPARTAAAAAAAAA!

— Sei sim — respondo.

— Então, não são mitos. É real — sua expressão está séria, então percebo que não está brincando — Por mais que seja difícil de acreditar os deuses são reais, e vez e outra têm filhos com mortais. Daí surgem meios-sangues, que numa explicação bem grosseira são humanos com características divinas. E é lógico que também têm os monstros, que como esses três que acabamos de ver, não fazem nada de bom na vida além atormentar semideuses.

Pisco. Pisco de novo. E pisco mais uma vez só pra confirmar.

— É informação demais pra minha cabeça — falo, tentando entender. Não que eu não acreditasse, sabe, ver pessoas virarem pó é quase que uma prova viva de que é verdade — Isso quer dizer que eles eram monstros de verdade — o indivíduo faz que sim com a cabeça — E você é um semideus. Fruto do shimbalaiê de uma divindade com um mortal.

— É isso aí.

— Filho de quem? Íris?

Ele faz cara de bunda.

— Hades. O deus dos mortos.

— Eu estava só brincando. Já suspeitava, pela caveira na sua camisa.

Nico olha para os lados do beco, até focar o olhar em algo. Ele se estica até pegar o canivete que pertencia a Scott, também conhecido como monstro com nenhum vocabulário além de ‘vadia’. Faço cara feia quando ele se agacha na minha frente de novo, segurando-o com a lâmina descoberta.

— Tira esse troço de perto de mim — falo, levando a mão ao pescoço outra vez.

— Calma, não vou machucar você. Só quero te mostrar uma coisa — o filho de Hades faz um corte na palma, e o sangue logo mancha sua mão de vermelho. Então ele estica o braço para pegar a minha, mas escondo-as atrás do corpo. Ele suspira — É sério.

Estico o braço relutante, e ele faz a mesma coisa: um corte superficial na minha palma. Como ele me segura pela mão com o corte, nossos sangues se misturam.

— Está vendo? — diz — Nenhum de nós dois virou pó. Pode confiar em mim.

Não é uma prova concreta de que ele é confiável, mas ao menos é de que não é um monstro. E agora pensando bem, quantos desses bandidos de Los Angeles não são como Scott e seus seguidores, também?

— Quer saber? Minha vida já é uma droga — respondo — Nada que você fizer vai conseguir piorá-la.

— Ótimo — Nico se levanta, e eu sigo seu exemplo — Tem um lugar chamado Acampamento Meio-Sangue, que é basicamente para gente como nós, e o Sr. D também, mas isso não vem ao caso. É o único lugar do mundo que os monstros não conseguem entrar. Além do Olimpo, eventualmente.

— Então pé na estrada, colega — digo, mas estou olhando pro canto do beco — Só me dá um segundinho? Tenho que pegar minhas coisas.

Ele franze a testa pra mim.

— Coisas?

Ando até o meu cantinho e pego meus únicos pertences, que são quase que minha vida. Um skate de quatro rodas levemente acabado (mas que ainda dá pro gasto, muito obrigada) e um livro pegado emprestado da biblioteca pública da Cidade de Los Angeles a oito meses atrás, que suspeito estar atualmente com uma multa do preço de minha alma. Paro de volta ao lado do filho de Hades, segunrando minha troxa, e ele continua com as sobrancelhas franzidas.

— Desde quando isso tá ai? — pegunta, enquanto lê o título do livro: Os quinhentos maiores nomes da Música mundial e suas influências.

— Desde sempre. Antes até de eu estar calmamente lendo a biografia do Fats Domino e cantarolando I’m With You, e os três canalhas aparecerem atrás de mim, e daí você aparecer pra chutar a bunda deles — suas sobrancelhas continuam, ainda, franzidas — Esse é meu beco, cidadão. Rua Presidente Eisenhower, entre os números 473 e 474.

— Eu já passei nessa rua várias vezes e nunca vi você — Nico corre os dedos pelo cabelo. Ele parece incomodado, mas eu dou de ombros.

— A gente só vê o que quer.

Minha intenção não era ser melodramática ou dar uma de coitada, mas pelo visto foi o que pareceu, porque ele olha pra mim com certa pena e resolve mudar de assunto.

— Mas o Acampamento, tipo, é o máximo — diz — Tem uma torre de escalada e de vez em quanto botam fogo nela, o que pode parecer meio masoquista, mas é um ótimo incentivo pra chegar no topo mais rápido.

Eu rio. Ele é uma pessoa muito mais divertida quando não está por aí degolando monstros e coisas assim.

— Aposto que coloco você e todos os outros no chinelo com meu treinamento de correr da polícia.

Nico sorri, mas não aquele sorriso normal que pessoas felizes como eu, você e o Zubumafoo dão, foi uma coisa mais... Sem emoção.

— Quem sabe? Seu soco foi tão forte quanto o de Clarisse. Talvez ela finalmente ganhe uma adversária à altura — me pergunto quem é Clarisse, mas acho que isso não é relevante agora — Pronta?

Respiro fundo teatralmente.

— Eu sempre estive pronta, Nicolau. Não estava brincando quando falei que corria da polícia, aguento caminhar daqui até onde diabo for o Acampamento — fico pensativa por alguns segundos — Mas aliás, é onde? Nos parques da Universal?

— Não, não — ele diz, casualmente — É em Long Island.

Não, pera.. Oi??

— Long Island? Em Nova York? — pergunto, com a voz esganiçada. Não tem KGB que dê treinamento pra atravessar os Estados Unidos a pé, cara.

— É isso aí — Nico fala com um sorriso na voz e logo depois agarra meu pulso. Antes que eu possa desistir e voltar pra calmaria do meu beco, ele pula numa sombra do muro, fazendo minha visão se escurecer de repente.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? *u*