Inverno em G Maior escrita por Blue Dammerung


Capítulo 1
Capítulo 1: Sie klassische Musik?


Notas iniciais do capítulo

"Quando te vi amei-te já muito antes: 
Tornei a achar-te quando te encontrei. 
Nasci pra ti antes de haver o mundo. 
Não há cousa feliz ou hora alegre 
Que eu tenha tido pela vida fora, 
Que o não fosse porque te previa, 
Porque dormias nela tu futuro."



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Aquilo poderia ter acontecido com qualquer um, ou melhor, poderia nem ter acontecido, porque se fosse outra pessoa, provavelmente essa outra pessoa faria algo diferente, e não o que aquele cara fez.

Numa cidade qualquer, aonde às vezes nevava e às vezes fazia muito calor, havia uma universidade enorme, tão grande que a cidade basicamente se sustentava graças a essa universidade, e por causa disso, era óbvio e certo pensar que a maioria dos seus habitantes eram jovens.

A universidade era dividida em vários ramos de todos os tipos, e cada ramo era uma área em particular desta universidade. Cada área era separada por um grosso e alto muro, o que era estranho porque parecia querer desmembrar e separar ideias que sempre juntavam mais de um ramo e... Enfim, sou o narrador e minha função é contar a história, e não me perguntar o porquê dela.

Nesta universidade, havia um aluno chamado Roderich Edelstein. Roderich era austríaco, aplicado, educado, um tanto “mão-de-vaca” mas era boa pessoa. O ramo que estudava era música, e mesmo sendo bastante jovem, era um ótimo pianista.

Da janela do grande prédio que era a ala de música, todos ouviam sua bela melodia soar, as notas calmas então se tornando rápidas e emocionantes apenas para se acalmarem de novo, como uma história contada para crianças, com altos e baixos.

De vez em quando folhas e galhos batiam nesta mesma janela, às vezes aberta e às vezes fechada, porque uma grande árvore de uma espécime que não nos importa tinha galhos longos e fortes que alcançavam desde a janela do nosso pianista até alguns metros além do muro que separavam as áreas da universidade.

E a área vizinha a de música era a de física, sim, física, uma área mais que oposta a de música aonde somente os realmente inteligentes andavam, somente aqueles que conseguiam entender esta disciplina tão difícil (porque eu mesmo não entendo nada dela).

Porém, um dia Roderich ficou tocando seu piano até tarde, até mesmo quando todos os seus colegas e professores já haviam ido embora. Graças ao fato de que aquela universidade servia exclusivamente aos alunos, se alguém quisesse certamente poderia dormir ali, passar a noite na biblioteca ou então nas salas de computadores disponíveis, o que dava ao nosso pianista tempo ilimitado para tocar e tocar sem parar, uma vez que não havia um piano de calda no seu pequeno quarto do dormitório.

E neste dia que Roderich saiu mais tarde, quando estava recolhendo suas partituras e saindo da sala, ele passou pela janela e viu um grupo de amigos jogando o que parecia ser futebol do outro lado do muro, na área de física, uma vez que aquele espaço aonde jogavam parecia ser um espaço nos fundos, inutilizado, repleto de árvores, arbustos e grama.

E um daqueles amigos tinha um curioso cabelo branco.

Primeiramente Roderich pensou que fosse um velho, mas ele se movia com tanta vivacidade que aquilo era impossível.

Naquela noite, quando sozinho voltou ao seu dormitório, em seu diário (porque mantinha um desde que seu pai morrera e perdera parte de suas memórias devido ao choque emocional, então lhe fora passada a tarefa de escrever num diário tudo que fazia todos os dias até que se recuperasse, e mesmo 8 anos depois, quando isso já não lhe assolava tanto, tinha acabado transformando aquilo num hábito) escreveu um parágrafo curto, relatando apenas os acontecimentos mais importantes.

“Hoje consegui tocar com perfeição aquela partitura que tanto tinha dificuldade, Inverno em G maior. Hoje também vi um homem, ou quem sabe um rapaz ou ainda um velho, não sei, com cabelos brancos”.

E foi dormir, sem fazer muito caso, tendo uma noite sem sonhos.

Porém, no dia seguinte, quando voltou a tocar aquela mesma partitura, errou duas vezes e novamente decidiu ficar até tarde praticando, e mais uma vez, ao passar pela janela, viu o grupo de amigos jogando. Desta vez, podia claramente escutar suas vozes, altas e repleta de xingamentos, embora brincalhonas. E lá estava o curioso rapaz (??) de cabelos brancos de novo.

E no diário, outro parágrafo surgiu:

“Errei Inverno em G maior, preciso praticar mais. Aquele rapaz de cabelos brancos estava lá de novo e, ao que parece, estuda física, o que não condiz muito com seu palavreado. Ele fala alto demais”.

No dia seguinte, Roderich voltou a errar a mesma partitura, e mesmo ouvindo de seus professores que seria melhor passar para outra, quem sabe uma mais fácil, ele estava determinado a acertar toda ela e com mérito, e não acertar as notas por sorte, como houve da primeira vez.

E mais uma vez ele viu o rapaz de cabelos brancos, desta vez rindo. Parou em frente a janela e passou mais de dez minutos os observando jogar futebol, às vezes caindo e xingando, às vezes fazendo um gol naquela trave improvisada de pedaços de pau e então xingando e às vezes xingando do nada. Pareciam felizes.

A única frase que naquela noite Roderich escreveu foi:

“O rapaz de cabelos brancos é um tanto mal-educado. Será que ele pertence mesmo à área de física? Nunca o vejo de dia também... Não que eu saia muito da minha área, na verdade”.

Os dias que se seguiram também foram assim, tocando até tarde e no final, parando em frente à janela, aonde sempre via os amigos jogarem, o de cabelos brancos sempre presente. Não demorou até que Roderich começasse a ficar terrivelmente estressado por dormir tarde e acordar cedo, e na noite que voltou cedo ao seu dormitório, escreveu:

“Não vi o rapaz de cabelos brancos hoje. Será que estará ao lado do muro nesta noite? Me pergunto...”.

Uma e então duas semanas se passaram, e quando Roderich menos percebeu, estava deixando de se sentar na frente de sala para se sentar ao lado da janela, pegando-se observando o outro lado do muro várias vezes ao dia, numa esperança infundada de que o outro aparecesse.

O porquê? Não sabia, apenas acabava esperando por isso, e quando todos finalmente iam embora e ele continuava na sala, tocando Inverno em G maior e ainda errando algumas notas, sempre no final ele ficava parado de frente para a janela e olhava o outro jogar lá embaixo, do outro lado do muro.

Quem sabe não tivesse uma pitada de inveja daquele rapaz de cabelos brancos, quer dizer, ele parecia rir com bem mais frequência do que Roderich... E também parecia menos estressado com tudo, mais feliz, digamos.

Fazia um bom tempo que Roderich ria, e tampouco sorria. Outro fato de que talvez tivesse inveja era de que aquele de cabelos brancos parecia ter amigos, amigos bons que sempre no final de todos os dias iam até aquele lugar, aquele campinho improvisado, e jogavam futebol até ficar terrivelmente tarde.

Na verdade, Roderich nunca os tinha visto irem embora porque sempre acabava ficando tarde demais, então o próprio austríaco desistia de ver para então voltar ao seu dormitório, horário que mesmo assim era tarde.

E dormir tarde e acordar cedo estava começando a interferir em suas notas.

Dois meses se passaram desde o primeiro dia que vira o curioso rapaz de cabelos brancos, e justamente naquele dia era o dia dos namorados. Roderich, aquele que nunca tinha tempo para ninguém a não ser para si mesmo, aquele que sempre preferia os estudos à uma boa saída, aquele que ficava enfurnado em seu quarto nos feriados em que a universidade fechava totalmente, não tinha uma namorada.

Não que fosse feio, porque não o era, mas achava que namorar era perda de tempo e mesmo que algumas meninas já tivessem ousado lhe chamar para sair, ele nunca aceitou. Naquela noite de dia dos namorados, porém, ele estava se sentindo um tanto só.

Talvez de tanto ver o rapaz de cabelos brancos se divertindo com seus amigos, o nosso jovem pianista tivesse começado a se perguntar se não estaria sozinho demais, solitário demais, se não estaria afastando os outros mais do que seria o saudável (será que era ao menos saudável?). Naquela noite, depois de passar o dia tocando piano, ele foi até a janela e lá embaixo, do outro lado do muro, sob uma das árvores, viu o rapaz de cabelos brancos com uma garota qualquer, eles se beijando como se não houvesse amanhã.

Naquela mesma noite, quando chegou em seu dormitório, na verdade dez minutos depois de ter visto tal cena, a única frase que surgiu em seu diário foi:

“Hoje é dia dos namorados, nada de sucesso em Inverno em G maior, aquele cara é um idiota, é mal-educado e mulherengo.”

Nas semanas que se seguiram, Roderich não ficou até mais tarde tocando piano e nem olhou pela janela. Suas notas voltaram a subir e tudo parecia estar voltando ao normal, mas ele já não aguentava mais resistir a tentação, e quando seus professores acharam que seu aluno prodígio estava entrando na linha depois de uma súbita e curta fase de rebeldia, o jovem austríaco decidiu praticar até mais tarde e olhar pela janela.

E lá embaixo viu o rapaz de cabelos brancos gesticulando com os braços, sozinho, furioso, chutando todas as pedras e arbustos próximos, acabando por jogar seu celular longe também, fazendo com que o aparelho acabasse se espatifando contra uma árvore.

A anotação daquela noite foi:

“Hoje aquele cara de cabelos brancos parecia estar realmente furioso... O que teria acontecido com ele? Será que ficou de recuperação em alguma matéria? Mas ele nem parece o tipo que passa de ano, então ele não deveria estar acostumado com isso? Tomara que ele melhore”.

Na noite seguinte, quando Roderich novamente ficou até mais tarde, o rapaz de cabelos brancos não apareceu, e nem nas 7 noites que vieram, quando fez 3 meses que o austríaco tinha achada aquele rapaz tão peculiar.

O pianista já começava a achar que o outro rapaz tinha sido transferido ou expulso da universidade quando o mesmo surgiu de repente noutra noite, jogando futebol sozinho. O fato era que naquela noite a temperatura estava bem baixa, mas o rapaz de cabelos brancos vestia apenas uma regata e uma calça jeans com os joelhos rasgados. Não parecia muito feliz, mas o pianista não pode deixar de sorrir um pouco.

Nos dias que se seguiram, Roderich ficou até tarde, sempre parando para observar aquele rapaz, e quando começou a perceber, suas anotações no diário tinham parado de falar sobre si, sobre seus sucessos e seus fracassos, e a começar a falar somente do tal rapaz, como o que fazia, porque estaria tão irritado, porque estaria tão feliz, aonde estaria a garota da noite dos namorados e, principalmente, qual seria seu nome.

Mais tempo passou e começou a nevar. O natal chegou, e com ele, as férias. A maioria dos estudantes ia para a casa dos pais ou dos amigos noutro lugar, apenas uma pequena parcela escolhia ficar na universidade, aberta aos alunos mas sem qualquer atividade letiva. As salas continuavam abertas, e por isso, Roderich passava o dia tocando em seu piano.

Porém, numa noite qualquer, quando o austríaco voltava para seu dormitório mais cedo porque estava realmente cansado, ele decidiu passar pelo dormitório da área de física, e em frente ao grande prédio haviam tantos jovens bêbados que quase não acreditou.

Carros e motos fazendo um grande barulho, música terrivelmente alta, bebidas, fumaça, gritos, luzes neon e todos os outros detalhes que claramente determinavam que aquilo era uma festa. Ele, Roderich, o nerd, o educado, o “excluído”, logicamente se sentiu perdido ali, as mãos nos bolsos de seu casaco de frio, trajando além desta peça de roupa, sapatos sociais, uma camisa social de mangas longas e uma calça também social, como qualquer cavalheiro faria.

Ele até pensou em ir embora dali, mas quando viu uma cabeça com cabelos brancos se destacando dentre as outras, pensou em ficar... E pensou em ir embora e então pensou em ficar e em ir embora novamente porque, afinal, ele não pertencia a aquele lugar, mas lá estava o rapaz de cabelos brancos, não era? Tão próximo que com alguma insistência, o alcançaria e...

E então o quê? Aquele rapaz era um ser humano comum, e certamente ser abordado por alguém que você nunca viu na vida era por demais estranho... Mas era como se durante todo aquele tempo aquele rapaz de cabelos brancos tivesse sido apenas uma ilusão, um sonho, algo que não existia para então se tornar real.

Era a prova de que Roderich não estava ficando louco ao olhar por uma janela aonde muito bem poderia não haver ninguém, aonde tudo que poderia estar vendo seria apenas uma reprodução do seu subconsciente ansiando por amigos e um descanso daquela vida tão corrida e regrada que era a sua.

Ele sabia que não tinha um bom pressentimento com aquilo, mas avançou passos e mais passos e quando viu, estava dentro do grande dormitório da área de física, e mesmo estando frio, a quantidade de pessoas que viu nuas, dentro de quartos com portas abertas e algumas ainda correndo loucamente pelos cantos, foi absurda, coisa que dificilmente aconteceria no dormitório da área de música e...

Prendeu a respiração de repente, localizando, sentado num sofá rodeado de gente, o rapaz de cabelos brancos. Mesmo com gente correndo por aí, bebidas no chão, barulho de música, coisas sendo quebradas, coisas caindo, a maior algazarra possível, Roderich conseguiu ver e enxergar com a maior nitidez possível o rosto do rapaz ao longe, que agora segurava uma enorme caneca de cerveja e ria com alguma coisa junto com a pessoa ao seu lado.

Ele realmente era jovem, o rosto deixava isso claro, a ausência de rugas e de qualquer marca que viesse com a idade, longe disso, parecia que tinha uns 19 anos. Porém, seus cabelos realmente eram brancos, bem brancos mesmo, e sua pele era tão pálida que ele... Oh, só podia ser. Um distúrbio, não era? Uma espécie de distúrbio que atingia algumas pessoas, não sabia muito sobre aquilo, mas ele era um albino, não era? Sim, sim, um albino, um albino de olhos vermelhos... Curiosos olhos vermelhos, ele deveria admitir...

E a risada dele era tão... Estranha. Na melhor das hipóteses diria que era estranha, confusa, perdida, rouca, diferente, muitos adjetivos para uma coisa só. Quem sabe se chegasse mais perto, poderia ouvir com mais clareza e...

- Hey, Gilbert, você aguenta mais uma?!-Exclamou outra pessoa, um moreno aparentemente espanhol devido ao sotaque carregado, um sorriso no rosto, trazendo consigo outra caneca de cerveja.

- Claro que sim! O incrível eu topa tudo!-O albino se pôs de pé, ainda rindo e pegando a caneca, então se virando para a entrada, justamente aonde Roderich estava.

E o austríaco não soube o que fazer no momento seguinte porque do nada seus olhares se encontraram, os olhos vermelhos como sangue com os violetas do pianista, e então o mesmo se sentiu como um espião sujo, alguém que estava fuxicando a vida alheia das pessoas, que não deveria estar ali, que tudo foi um erro, que ele nunca seria bem vindo num ambiente tão festivo e tão oposto à suas regras.

E saiu correndo dali, sem olhar para trás.

Naquela noite, a única anotação em seu diário foi:

“Hoje passei pelo dormitório de física, não foi boa ideia. Não sei se o rapaz de cabelos brancos realmente me notou ou apenas me viu casualmente, tomara que não, deveria estar muito bêbado para isso... Será que... Eu nunca experimentei cerveja na minha vida... Ah, seu nome é Gilbert”.

Depois foi dormir um sono com sonhos leves sobre gente correndo nua para lá e para cá, quem sabe o choque emocional tivesse sido muito grande para sua cabeça tão direita.

O restante das férias passou rapidamente. Roderich ainda frequentava a sala com o piano aonde tocava com frequência, mas preferia ir embora mais cedo para nem se arriscar a ceder à tentação de olhar o albino pela janela. Também evitou toda e qualquer aproximação da área de física, porque desde aquele “acidente” estava com certo receio, senão medo, em esbarrar com o outro de novo, mesmo que a probabilidade fosse muito pequena.

A questão era que desde o começo ficara observando o outro como um espião, alguém que não deveria estar ali, alguém de fora, alguém que não estava fazendo a coisa certa, e o austríaco já tinha se acostumado a toda noite ficar observando o outro, já tinha se acostumado a escrever sobre ele em seu diário, tanto que nos meses anteriores só haviam citações sobre o albino, nada sobre a nota alta que tirara, nada sobre Inverno em G maior, pelo menos não mais, e nada sobre nada que fosse relacionado ao austríaco.

E agora ele se sentia como um verdadeiro stalker, um perseguidor, e se sentia tão sujo que nem conseguiria mais olhar para o rosto daquele albino, do rapaz de cabelos brancos, Gilbert da área de física, até porque se este Gilbert descobrisse sobre Roderich, o que iria pensar? Certamente não coisas boas, e longe disso, ficaria com raiva e com toda a razão porque ninguém gostaria de ser vigiado tão sem motivo assim.

Porque Roderich nem tinha um motivo, ele apenas vigiava, observava, ficava olhando todas as reações do albino, tudo, ou pelo menos ficava olhando, porque agora não mais, não mais, iria parar com aquilo, não era saudável, não era normal.

E então, quando as férias acabaram, começou o novo ano letivo. Logo a universidade lotou de alunos novamente e Roderich ficou tão atribulado que por alguns dias esqueceu-se totalmente do rapaz de cabelos brancos.

Apenas por alguns dias.

Digo que foi apenas por alguns dias porque num final de tarde, quando as aulas já tinham terminado e todos os alunos da área de música já voltavam aos seus dormitórios e Roderich arrumava suas coisas para voltar também, uma partitura caiu de sua mochila bem na hora que guardava o caderno aonde todas suas partituras estavam.

Pegou o papel do chão, fitando-o por alguns minutos.

“Inverno em G maior...”

- Por que logo você caiu? Inverno em G maior, que tipo de título seria este? Penso que deveria ter sido escrita numa época muito fria, ou então... Por alguém frio, o que acha?-Puxou uma cadeira para se sentar, ainda fitando a partitura em sua mão.-Mas você tem partes tão calorosas às vezes que esta ideia precisa ser reformulada... G maior... Gilbert se escreve com G, não é mesmo? Então eu deveria supor que eu seria o Inverno e ele seria o G? Não acredito que na verdade estou falando com um pedaço de papel...

Fitou o chão de madeira por alguns instantes, as tábuas um tanto velhas mas ainda resistentes. A sala em si era realmente agradável, com várias janelas, bem iluminada e nos dias quentes quem sabe um tanto abafada.

- Acho que eu seria mesmo o Inverno...-Suspirou, ficando em silêncio por instantes apenas para se por de pé e andar até o piano, colocando a partitura na base de apoio e começando a tocar, as mãos se movendo sozinhas.

Não notou quando lá fora realmente ficou escuro, quando realmente ficou tarde e nem quando começou a ouvir os gritos e risos animados que entravam pela janela aberta, só soube quando se pôs de pé, pegou e guardou a partitura, indo até a janela e tocando o vidro frio com os dedos.

Ele estava ali de novo, jogando futebol de novo, rindo de novo, correndo de novo como se nada em sua vida tivesse mudado, e na verdade, nada deveria ter mudado mesmo.

-Inverno em G maior...-Roderich sussurrou.-Será que ele gosta de música clássica? Não tenho o mínimo jeito para guitarras mesmo...

Deixou a sala e desligou as luzes, descendo as escadas do prédio e voltando ao seu dormitório com um ar soturno. Não escreveu em seu diário naquele dia e nem nos que se seguiram, assim como não olhou mais por aquela janela durante a noite.

Suportou aquilo por ainda dois meses, sim, dois meses inteiros, e ainda conseguiu comprar para si um teclado para praticar em seu quarto, no dormitório, com a desculpa de que a única razão que ficava até tarde na sala de música era para praticar com o piano, e se agora não precisava mais, para quê continuar lá?

No começo do terceiro mês de abstinência, voltou a escrever em seu diário, mas apenas uma única frase:

“Já não aguento mais”.

E acreditem, alguém como Roderich, sem os pais, sem família e nem amigos, para alguém como ele, desistir é extremamente fácil, e quando eu digo desistir, é suicídio mesmo. “Mas, narrador, isso não é meio radical?”, bem, se você se pôr no lugar dele, pode ser que não.

Qual era o objetivo de Roderich? Se formar, mas e depois? Não sabia. Esse “não saber” era que lhe assustava durante as noites de insônia, porque na universidade ele estava seguro, mas não poderia continuar nela por muito mais tempo.

Porém, quando ele finalmente encontrou algo mais do que estudar e estudar e tirar notas boas, algo que tirava sua mente daquelas regras que ele fora acostumado, algo que, sei lá, era diferente, algo que só ele tinha e fazia, o austríaco, na cabeça dele, foi lá e estragou tudo.

Por isso que numa noite muito fria como uma noite de inverno embora o inverno tivesse acabado, Roderich saiu de seu dormitório durante a madrugada e foi até a sala de música levando consigo apenas uma corda e a partitura de Inverno em G maior.

Ele só queria acabar com todos aqueles medos e aqueles sofrimentos que vistos por alguém de fora eram exagerado, mas que para ele não eram. Uma vez na sala, Roderich amarrou a corda na luz do teto, pegou o banco que usava para sentar quando tocava piano e subiu no pequeno móvel, amarrando então a corda em seu pescoço.

Em suas mãos, Inverno em G maior começando a ser manchada pelo suor.

- Eu devo ser muito estúpido...

E então desceu do banco. É, geralmente os suicidas tendem a amarelar na última hora porque a vontade de viver fala mais alto, quer dizer, vai que eles esqueceram a roupa na lavanderia, né? Eles precisam pegar a roupa antes de morrer, então vamos deixar o suicídio para depois, okay, pessoal?

Fitou a corda ainda amarrada à luz e bufou, subitamente com raiva de si mesmo. Quem sabe por todo aquele tempo apenas precisasse daquilo, saber que ele tinha tanto poder de controle sobre sua vida quanto sobre sua morte, afinal, ele era ele e poderia fazer o que quisesse, não? Sim, agora sabia que podia.

Puxou a corda, desfazendo o nó (fraco de propósito porque desde o começo Roderich sabia que não iria conseguir) e colocou o banquinho de volta no lugar. Guardou Inverno em G maior no bolso e estava quase saindo da sala quando ouviu um som primeiramente muito baixo.

Aproximou-se da janela, que era de onde o som parecia vir, curioso, abrindo-a e colocando a cabeça para fora apenas para ver alguém chorando debaixo de uma árvore pequena. Não chorando copiosamente e nem fazendo aquela escândalo, mas chorando, e chorando sozinho, pelo o que pôde constatar.

E foi só minutos depois que seus olhos violetas conseguiram perceber que era uma cabeça com cabelos brancos que estava ali, sentado sob a árvore, chorando, chorando de um jeito como se quisesse que ninguém ouvisse, como se fosse seu maior segredo.

E Roderich não pôde acreditar.

Ele estava chorando, Gilbert estava chorando, era verdade? Já o tinha visto feliz, com raiva, bêbado, xingando, brincando e até se agarrando com outra pessoa, mas desde a primeira vez que o vira exatamente daquela janela, nunca vira sequer uma lágrima.

E agora, ele chorava.

E agora, Roderich colocava uma perna para fora da janela apenas para apoiar o pé no galho da árvore que anteriormente eu disse para vocês que formava uma espécie de ponte entre a janela da sala do piano até o outro lado do muro, problema de vocês se não prestaram atenção.

Colocou primeiro um pé e depois o outro, e apoiando-se em outros galhos, saiu passo a passo lentamente andando até o centro da árvore para então passar para o outro lado, logo sobre o muro e logo vendo Gilbert realmente de perto.

Eu poderia narrar com detalhes o jeito que Roderich andou de uma extremidade da árvore até a outra, mas eu aposto que vocês não querem saber disso, então pulando para o fato principal, devo dizer que nosso austríaco nunca teve muitas habilidades quando se tratava de força e agilidade.

Quando Roderich chegou ao último galho, já bem perto do outro ser humano presente, o mesmo galho fez um barulho tão estranho que seu estômago e trancou e ele engoliu em seco, e a última coisa que pensou foi “maldição” enquanto qualquer um de nós falaria “merda” ou “porra” ou ainda “fudeu”, mas Roderich é educado e não fala palavrão, portanto, foi “maldição” mesmo.

O galho quebrou, assim, por ser um galho velho de uma árvore centenária e que não aguentava tanto peso, simplesmente quebrou, partiu-se em pedaços, e então, um Roderich caiu 8 metros no chão de uma forma tão cinematográfica que qualquer um riria da queda.

Mas não Gilbert, o único presente, porque na hora ele ficou boquiaberto demais para aquilo.

Desde quando nerds caíam do céu durante a madrugada?

O albino se aproximou rapidamente do outro agora estirado na grama, gemendo de dor, o enorme galho de madeira caído ao seu lado. Ah, podia ser pior, não podia? Levou uma das mãos até o ombro do austríaco, fazendo com que o mesmo levantasse o rosto. Era normal as pessoas terem olhos violetas?

- Cara, você tá legal?!-O albino perguntou a Roderich, a voz um tanto exasperada.

- Você está bem?-Perguntou o pianista, fitando o outro profundamente.

- Porra, foi você que caiu uns 10 metros, e não eu! O que estava fazendo ali, aliás?! E você não era cara aquele que...

- Você estava chorando, não estava? Eu vim por causa disso.

- Você me viu chorar?! E-Eu não estava chorando!-Gilbert bufou, cruzando os braços, agora sentado na grama.-De qualquer forma, o incrível eu não chora, dã! Mas o que você estava fazendo ali mesmo? Não acho que seja passatempo de nerds ficar em cima de árvores quando deveriam estar dormindo e...

- Por que estava chorando?

- Por que continua insistindo que eu estava chorando?! Eu não estava... O quê...

Roderich, agora sentado (embora o corpo doesse, tinha certeza de que pelo menos não tinha quebrado nenhum osso...) de frente para o outro, levou uma das mãos até seu rosto, o polegar limpando o restante de lágrimas que ali sobraram.

- Nunca te vi chorando antes.-O austríaco disse.

- É porque eu nunca choro!-Exclamou o albino, puxando a mão do outro para baixo, afastando-a de si.-Enfim, vai me responder ou...

- Eu toco piano lá em cima.-Apontou por sobre o ombro a janela que daria na sala do piano.-E uma vez te vi jogando futebol aqui. Seu nome é Gilbert, não é? E você estuda física?

- É...-O outro assentiu, estreitando os olhos.- Como sabe tudo isso?

- Eu estava pensando em me matar hoje, sabe? Mas aí eu desisti e quando estava indo embora, encontrei você chorando aqui embaixo e pensei que se fosse eu, acho que gostaria de alguém comigo.

- Se matar?! Por quê?!

- Você está bem? Acho que eu estou apaixonado por você.

- O quê?! Cara, você não pode ir falando essas coisas assim do nada! Eu acho que só te vi uma vez na minha vida, naquela festa, e eu não te conheço! Eu nem...

- Eu não disse que você deveria estar apaixonado por mim, eu só disse que eu estava apaixonado por você. Não espero que me dê algum sentimento bom em retorno, eu apenas queria que soubesse.

- E o que eu deveria fazer agora?

- Eu não sei. Quer me contar por que estava chorando?

- Merda, eu já disse que não estava chorando... Foi meu irmão, okay?! Ele vai se mudar para a Alemanha daqui há uns dias...

- Ele é aquele rapaz alto e loiro? Não parece com você.

- É, eu sei, eu sei... Enfim, ele está indo embora e eu não tenho muitos amigos aqui, quer dizer, tenho dois amigos, mas estuda do outro lado da universidade e o outro vive ocupado... Vou acabar ficando sozinho, mofando na biblioteca.

- ...

- ...

- Sabe?

- O quê?

- Eu também não tenho nenhum amigo. Quer se juntar a mim numa busca por amigos? Não precisamos ser amigos de imediato, é só para não ficarmos sozinhos nesse meio tempo. O que acha?

- Achei que fosse dizer algo mais filosófico.-Gilbert riu.

- Tipo o quê?

- Algo como “hey, você é uma alma sozinha, eu sou outra alma sozinha, então o que acha de andarmos juntos e acabarmos com nossa solidão mutuamente?”.

- Mas isso não é a mesma coisa?

- Você é muito chato, certinho demais. Só te conheço há cinco minutos e já percebo isso.

- E você fala palavrão demais, é mal-educado, é arrogante, é convencido, pelas roupas amassadas eu presumo que não seja muito organizado e pelos cabelos desarrumados também presumo que seja preguiçoso a ponto de não arrumá-los. Estou certo?

- Ei, você não pode ir falando mal assim de mim!

- Estou apenas sendo realista.

- Pro inferno com esse seu realismo barato!

- ...

- ...

- Gilbert?

- O quê?

- Você gosta de música clássica?

Fim 


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Notas finais do capítulo

Bem, é isso. Espero que tenham gostado, foi meu primeiro trabalho do Roderich com o Gilbert e devo dizer que adoro demais esse casal ~~

Enfim, se gostaram, deixem reviews, se não, deixem reviews também! Aceito até as daqueles tipos que só tem uma linha ou então "MIGUXA GOXTAY DIMAIX TU VAI CUNTINUAR??"

Kisses e até próxima vez!