Mágica para o Afeto escrita por Janus


Capítulo 1
Capítulo 1




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  Dayrin concentrou-se. Sentiu o fluxo de energia universal atravessando o seu corpo - era muito mais fácil agora - visualizou a rocha em sua mente. Cada imperfeição, cada nuance, cada detalhe. Mesmo a pequena rachadura em seu interior, decorrente de séculos de aquecimento e resfriamento não passou desapercebida. Formatou a figura que desejava - esta ainda era uma parte muito difícil - abriu os olhos e começou a dirigir a energia de forma a moldar a rocha. Gotas de suor brotavam de sua fronte, seu vestido de aprendiz, sempre um branco impecável, transparecia o esforço de seu corpo. Grandes manchas de suor apareciam, especialmente na região dos seios e do pescoço.

  Ergueu os braços e feixes de magia foram lançados. Similar a relâmpagos, eram de cor amarelada e sem a forma oscilante destes. Em um instante, o esforço de horas de concentração foi compactado em um mero suspiro. A rocha tornou-se uma estátua de madeira. Era uma alto imagem. Uma estátua de si própria, em trajes reduzidos de dançarina real, congelada em uma posição de rodopio, muito usada para encerrar a dança de fertilidade dos campos.

  Ela desabou na cadeira rústica, totalmente esgotada. O esforço para concentrar tanta energia fora inimaginável. Ela realmente não acreditava que a transmutação de algo era muito mais simples do que a modelagem. Mas era! Para transmutar, bastava conhecer a freqüência de energia de cada matéria, a modelagem exigia conhecimentos artísticos, algo muito mais complexo.

 Olhou para a sua criação e sorriu com uma mistura de satisfação e perda. Adorava dançar, e, pelo menos em duas oportunidades fora selecionada para ser a principal a abrir as festividades da colheita. Mas isso foi antes de seu talento de feiticeira surgir. Agora, seis anos depois, finalmente podia fazer truques um pouco mais complexos. Gostaria de já saber animar objetos. Seria bom fazer aquela estátua dançar.

 Levantou-se devagar - seus músculos doíam incomodamente - espreguiçando-se. Ainda não entendia como o corpo podia refletir um esforço basicamente mental, mas, como seu mestre tinha dito, o uso da magia só podia ser feito quando corpo e mente se tornavam um. Olhou mais uma vez para a pequena estátua e soltou um grito de susto. Ela tinha começado a dançar.

 Dava rodopios e inclinava-se, exatamente como na dança que tanto gostava. Teria ela feito isto sem perceber. Um riso abafado revelou-lhe a verdade. Olhou para as cortinas da grande janela e viu um vulto do lado de fora.

 - Gahiger! - exclamou - que brincadeira é essa?

 O vulto desapareceu por detrás da janela e ressurgiu na sua frente. Ela ainda ficava impressionada com o que ele podia fazer sem demonstrar o mínimo esforço.

 - Desculpe - disse ele - mas não resisti.

 Fez um gesto largo com o braço direito e a estátua voltou a posição antiga. Como ele fazia parecer fácil. Bom, alguém com a prática dele sem dúvida faria aqueles feitiços básicos muito facilmente.

 - Estou impressionado - disse ele lhe sorrindo - demorei quinze anos para chegar neste ponto em que você está agora. E fiquei mais esgotado ainda.

 Ela o olhou incrédula. Aquele mago a sua frente, provavelmente um dos maiores do planeta, estava afirmando que ela tinha mais potencial?

 - Gentileza sua - disse levemente corada.

 - Que nada! É inveja mesmo. Mas fazer o que? As novas gerações sempre tem mais facilidades que as mais velhas. E o velho? Onde está?

 - Saiu. Foi colher ervas e elementos químicos para suas poções. Já faz dois dias.

 - Então acho que não adianta muito espera-lo. Normalmente ele fica fora várias semanas. Lembro-me de quando ainda era seu aprendiz. Me deixou quase dois anos sozinho aqui.

 Ela ficou assustada com aquilo. Dois anos preso naquele forte?

 - Bom, eu o aviso de que você passou por aqui. Caso ele venha antes de um mês - sorriu.

 - Obrigado. As vezes sentimos a solidão. É bom conversar com alguém de vez em quando.

 Ela estremeceu ao ouvir aquilo. Ela sabia que estava condenada a uma longa vida, devido a sua conexão natural com as forças universais. Chegar aos dois mil anos de idade não era raro, seu mestre mesmo possuía quase mil e oitocentos, Gahiger, que aparentava ter no máximo vinte e cinco anos, já beirava aos trezentos.

 Antes de se descobrir como uma deles - era estranho não serem considerados humanos - achava aquilo muito bom! Por que viver apenas cinqüenta ou sessenta anos? Viver significa aprender mais, ensinar mais, aproveitar mais.

 Sim, até seu talento surgir - expressado em uma luminosidade que envolveu o seu corpo. Seu pai ficou apavorado! Ele odiava os místicos - provavelmente por boas razões - e ter uma filha desta espécie foi o mesmo que ser esfaqueado. Desde que sua condição foi revelada, ele nunca mais lhe dirigiu a palavra.

 Primeiro ela tinha gostado, depois viu a triste realidade. Não é divertido viver tanto e ver seus amigos envelhecerem e morrerem. No final, ficavam reclusos e se ausentavam da humanidade, sendo conhecidos apenas por cochichos e histórias de suas ações, que acabavam por se tornar mitos ou lendas.

 - Tudo bem?

 Ela olhou para ele um pouco assustada. Suas palavras quebraram o torpor que a tinha acometido.

 - Sim - disse ela - apenas algo que eu fiquei pensando.

 Ele olhou pela janela e viu que o sol estava se pondo.

 - Bom, já que estou aqui, acho que vou cumprir a promessa aos seus sobrinhos. Acho que você já deve estar indo ve-los, não?

 Ela sorriu. Da última vez em que ele esteve no reino, tinha visitado a sua família, e os filhos de seu irmão o adoraram. Ele sabia como lidar com crianças.

 - Sim, estou. Deixe-me tomar um banho e me trocar que já...

 Ele ergueu sua mão direita e ondas de nuvens azuladas forma sopradas em sua direção. Sua roupa antes marcada pelo suor agora já seco, ficara imaculada novamente. Ela mesma se sentia limpa e perfumada. Podia até mesm sentir o frescor do banho que a magia dele lhe dera.

 - A roupa é por sua conta - disse ele sorrindo.

 - Pode ser prático desta forma, mas prefiro a satisfação de sentir a água - disse um pouco irritada.

 Ela fechou os olhos e visualizou o que queria. Abriu eles ao mesmo tempo em que abria os braços. Sua vestido branco de aprendiz fora substituído por uma roupa mais justa, de couro camurça, com uma saia mais curta. Ótima para cavalgar.

 - Se ousar nos levar até lá - disse ela muito séria - eu juro que te transformo em um pombo! Não vai me tirar o prazer de andar a cavalo.

 Ele nada disse. Sabia muito bem quando parar. Saíram do forte e, do lado de fora, ela fez um feitiço ensinado pelo seu mestre. Um escudo invisível se formou ao redor de toda a construção. Uma excelente forma de se evitar invasores. Pelo menos os normais.

  

 

 Ambos montaram em seus cavalos e galoparam para a cidade. Magos e feiticeiras raramente possuem sua base nelas. Os vizinhos não apreciariam muito luzes e barulhos ensurdecedores durante os treinos e estudos. Salvo quando o rei os convida a tanto - geralmente durante guerras.

 Foram cumprimentados pelos amigos dela assim que chegaram - como a população já estava acostumada com ela, não a evitavam como iria ocorrer em algumas décadas - desmontaram dos cavalos e os deixaram em um estábulo. Ela se concentrou novamente e seu vestido próprio para cavalgar se tornou algo mais feminino, incluindo uma capa para a noite já fria.

 

 

 Hanser ouviu a batida na porta e se retirou da sala. Sabia que era sua filha, e não queria pousar os olhos nela. Sua esposa, filhos e netos não tinham rejeição - apesar de conhecerem os seus sentimentos - e ouviu-os abraçarem aquela que tinha nascido do ventre de sua esposa.

 Já no seu quarto, percebeu que ela tinha trazido mais alguém. Pela algazarra dos netos deveria ser aquele mago do ano passado. Sentou-se pesadamente em sua cadeira e encheu seu caneco de vinho. Era hora de se entregar a Baco.

 Não que ele realmente conseguisse isto. Quando se sentia tonto, jogava-se na cama e ia dormir pesadamente. Pela manhã, ela já teria partido, e teria mais algum tempo de tranqüilidade para se lembrar de como perdera sua filha há seis anos. Ela seria provavelmente a melhor dançarina do festival hoje. O destino não aceita que alguém possa ter total satisfação nas coisas que mais agradam na vida mesmo.

 Já estava no terceiro caneco, e as risadas das crianças ainda eram ouvidas. Elas estavam mesmo felizes. Bom, algo ocasional assim não pode ser tão mal. Deu um longo gole e, quando bateu a caneca da mesa começou a sentir a tontura surgir. Mais uma e não teria mais que pensar naquilo.

 Olhou em direção a jarra no chão e viu as pernas de alguém dentro do quarto - como ele tinha entrado? - olhou para cima e viu o rosto daquele mago.

 - O que faz aqui? - gritou com uma raiva impressionante - quem lhe deu permissão para invadir meus aposentos privados?

 - Seus netos me pediram para lhe fazer uma pergunta - disse ele gentilmente - pois têm medo de faze-la. Não acho algo muito bom quando aquele que nos ama tem um problema e têm medo de pedir ajuda ou conselho. Eles podem tentar resolver por conta própria e arrumarem um problema maior ainda.

 A raiva virou espanto. Alguém que ele respeitava muito tinha dito quase a mesma coisa a ele, quando era apenas um garoto.

 - Então, pergunto logo e deixe-me em paz - entornou o que sobrava no caneco e pegou a jarra para encher de novo.

 - Bom, eles querem saber por que você odeia tanto a tia deles, se ela não é culpada de ser o que é.

 - Porque... - seus olhos ficaram semi-cerrados, sua testa relaxou - porque ela é uma pária agora.

 Largou a jarra e aparentemente, tentava conter as lágrimas.

 - Ela podia ter filhos agora - continuou - podia ter sido dançarina da colheita, como tanto desejava. Agora... agora é uma feiticeira. Aprendendo feitiços e poções, vivendo no meio do nada, com um velho que só Deus sabe quantas desgraças já pode ter causado, assim como você - estava com raiva agora - todos vocês magos, bruxas, feiticeiras, são todos uns arrogantes que se acham acima dos homens. Só porque tem poderes nos desprezam, vivendo longe de nós. Minha filh... esta mulher que está ai embaixo ainda não é assim, mas vai ficar. E neste dia, nunca mais entrará nesta casa. Só o permito por amor aos meus netos. Assim como a você. Agora saia!

 Pegou a jarra novamente e a enfiou na boca. Bebendo grandes goles. O intruso de seu quarto andou em direção a janela e olhou para fora, para a bela lua que estava emoldurando a noite.

 - Sabe o que é ir ao enterro do neto de seu amigo de infância? Ver sua esposa definhar e morrer? Ver o mesmo ocorrendo com seus filhos?

 Ele tirou a jarra da boca e olhou para ele.

 - O que quer dizer?

 - Você não tem a menor idéia do que é isso. Ver a familia, o ninho aonde nasceu definhar e morrer. E você continuando. Por décadas, séculos, milênios. Não nos afastamos das pessoas por nos considerarmos superiores, não evitamos amizades por eles não serem do nosso meio, mas sim por não suportarmos mais ver amigos morrerem, enquanto nós perduramos. E perduramos. - abaixou a cabeça - e perduramos.

 - Por que não se casam entre si então? Criem sua própria sociedade!

 - Já foi tentado. Nossos filhos são normais. Seja o que for que nos torna o que somos, não é facilmente herdado. Não conheço um só casal de magos que tenha tido um filho também mago. Nós já somos poucos, apenas um para milhares de vocês. E destes poucos, a maioria tenta evitar que o talento se desenvolva, como sua filha tentou no começo. Apenas um terço não consegue. Talvez no mundo inteiro, só tenha no máximo cem ou duzentos de nós. Espalhados por léguas e léguas - olhou fixamente para ele, com o olhar triste - este reino é uma raríssima exceção, com três magos. Sua filha, o mestre dela, e eu. Isso quando eu estou por aqui, pois prefiro passar o meu tempo estudando a vida selvagem de alguns animais ao norte daqui. Eles não se incomodam que os observemos, é só deixa-los em paz.

 - Bom meu caro, não posso dizer que tenho pena.

 - Só há um momento real em nossas vidas em que realmente conhecemos uma grande alegria. É no começo. Quando ainda temos nossas famílias, em alguns casos podemos ter até filhos. Podemos ve-los crescer como qualquer pai, brincamos com eles, os ensinamos, os castigamos quando desobedecem. Mas, um dia, essa alegria se vai. Um dia você vê que seus netos já parecem ser mais velhos que você, e em mais alguns anos voc6e está enterrando sua esposa, depois os seus filhos.

 Ele grunhiu uma resposta de que não se importava e olhou para o outro lado.

 - Você jurou ao seu avô que iria amar seus filhos, ocorresse o que ocorresse.

 - COMO SABE DISSO? - ele estava ultrajado - Fez um encanto para ver o passado?

 - O único momento alegre real de sua filha é este - disse ignorando totalmente a sua reação - Brincando com os sobrinhos e batendo papo com os irmãos e com a mãe. Ela não sente o calor de seu abraço faz seis anos. E mais umas duas décadas é certeza que nunca mais o terá. É assim que honra com a sua promessa?

 Ficou dividido. Por um lado queria saber como ele tinha tal conhecimento de uma promessa feita há quarenta anos passados, e, por outro, se torturava ao compreender como ele tinha razão. Sua filha não tinha culpa, e ele, como pai, tinha um dever a cumprir.

 - Como soube de minha promessa?

 - Transformar nossa aparência física não é muito diferente de transformar rocha em óleo - disse ele lentamente - quando minha família envelheceu, eu alterei meu corpo para envelhecer também. Provavelmente sua filha fará o mesmo para com os seus sobrinhos. Fica mais fácil para nos afastarmos. Isso funciona até os nossos netos. Depois... - deixou a frase sem terminar.

 Virou-se para uma parede e andou em direção a ela.

 - Não vou mais incomoda-lo, mas saiba que fiquei muito desapontado com você.

 Ele atravessou a parede e sumiu, deixando-o com um aperto no coração e muitos pensamentos incríveis em sua mente. Ficou muito tempo assim, talvez horas.

 

 

 Os pequenos sobrinhos estavam adorando aquele último truque. Flutuar a alguns centímetros do chão e tentar pegar estrelinhas que circulavam ao seu redor. Mas não iriam brincar muito, pois Dayrin ainda tinha pouca experiência para manter aquilo por muito mais que alguns minutos.

 Muito cansada, pôs o pequeno casal de traquinas no chão e se preparou para partir. Foi quando viu o seu pai ao pé das escadas. Observando o seu rosto, seus irmãos olharam na mesma direção, e ficaram apreensivos. Mesmo as crianças notaram que aquilo não era normal e se agarraram a mãe, receosos de que o avô fosse fazer algo ruim.

 Ele começou a andar lentamente para a sua direção, o rosto uma mistura de tristeza e agonia. Não sabia o que fazer. Imaginava se ele iria ataca-la ou expulsa-la de lá para sempre.

 - P-pai... - disse quando ele levantou os dois braços em sua direçao.

 Fechou os olhos, esperando ser agarrada e jogada para fora. Mas o que ocorreu então, foi algo totalmente inesperado, senão impensável. Ele a abraçou, com força, com carinho. E estava chorando. Chorando muito.

 - Filha... - disse entre um soluço e outro - perdoe este velho idiota. Me perdoe. Eu amo você minha filha... não quero que fique brava comigo. Me perdoe.

 Ela não conseguiu dizer nada. Não sabia o que falar. Mas o que fez foi a resposta que ele queria. Abraçou-o também e chorou. De pura alegria.

 

 

 Do lado de fora da casa, ninguém reparou em Gahiger observando a tocante cena de reconciliação entre pai e filha. Muito menos que ele também vertia algumas lágrimas de seus olhos. Ao contar a Henser, tinha quebrado a promessa feita a sua esposa falecida há muitas décadas.

 Mas, com certeza, ela teria aprovado. Pelo menos por mais uns vinte anos, sua trineta viveria no amor e carinho completo de uma família.


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Notas finais do capítulo

Minhas outras fics Originais
—Um Estranho Incidente— Oneshot
—O Último Ser Humano— Oneshot
—Declaração de um Alienado— Oneshot
—Por Que?— Oneshot
—Feitiços Modernos— Oneshot
—A Caçadora
—Ayesha, a Ladra