Para Nós Dois escrita por Silver Lady


Capítulo 5
Capítulo 5




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Can't you see that you're smothering me?

Não percebe que está me sufocando?
Holding too tightly, afraid to lose control

Me apertando demais, com medo de perder o controle
'Cause everything that you thought I would be

Porque tudo que você pensou que eu seria
Has fallen apart right in front of you

Está se despedaçando bem na sua frente

                                                Numb, Linkin Park

 

 

Capítulo 5

 

 

 

    O grito, ou melhor, o urro de Kevin ecoou pela sala de comando e pelo escritório de Frank. Os presentes viraram estátuas. Ben, principalmente, olhava o melhor amigo com apreensão. O rosto dele estava ficando vermelho, com uma veia pulsando perigosamente na testa:

— Eu não aguento mais! — berrou, puxando os cabelos — Pare de choramingar “minha família isso, minha família aquilo”! Pare de se fazer de vítima pra manipular os outros! Eu já aguentei muita coisa de você, mas não vou deixar ninguém desfazer dos encanadores, nem mesmo a mãe da Gwen! Quem você tá pensando que é? VOCÊ NÃO TEM O DIREITO DE FALAR ASSIM COM O BEN!!!

    Natalie não podia responder. Estava congelada de pavor. O rosto corado do rapaz, com veias pulsando e mechas de cabelo desgrenhadas pendendo de cada lado, parecia uma versão masculina da cabeça da Medusa. Estendeu a mão para desligar... e outra mão a segurou. Frank olhava para ela com ar severo, como quem diz: “Agora é a sua vez de ouvir.”

  Completamente alheio ao que se passava do outro lado, Kevin prosseguia:

— Eu não sei se os pais do Ben gostariam que o Superomnitrix quebrasse, mas sei de uma coisa: eles nunca fariam pressão pro Ben abandonar o que ele gosta e fazer um doutorado qualquer pra impressionar o resto da família, como você pressiona a Gwen! Ela é uma pessoa maravilhosa, uma feiticeira fantástica, uma encanadora tão incrível quanto o avô e um dia vai ser uma anodita mais poderosa do que a Verdona! Mas ela sempre se sentiu culpada de ser todas essas coisas, porque decepcionou vocês... porque a única Gwen que os pais valorizam é a princesinha comportada que só pensava em estudar! Como foi que disse há pouco? Ah, é: “ela nem parece a minha filha quando está brilhando!”  Foi por isso que acharam melhor deixar a Verdona levar ela embora?

  Frank e Natalie mal conseguiam respirar diante das chicotadas verbais lançadas por Kevin, e a pergunta jogada de sopetão caiu como uma bomba em cima deles. Depois dos primeiros segundos de surpresa chocada, os dois irromperam em protestos e censuras pelo atrevimento dele de sugerir uma coisa tão horrível. Natalie tinha falado aquilo sem pensar! É claro que nunca haviam desejado que sua filha fosse embora!

— Ah não? — Kevin debochou, de braços cruzados — Então por que é que nunca disseram isso pra ela?

Silêncio constrangidíssimo. Nunca nenhum deles tocara no assunto, porque achavam que não precisava. Era tão óbvio... ou será que não?

— É bem possível que Gwen tenha se perguntado isso, mais de uma vez. Vocês nunca esconderam que se sentiam desconfortáveis com o lado anodita dela — Ben observou, em apoio ao amigo  - Na primeira vez em que a Vovó Verdona esteve aí, eu não entendi qual era a da Gwen. Mas pensei muito nisso depois, e me dei conta que ela esperava que vocês a proibissem de ir embora com a vovó.

Frank e Natalie trocaram olhares culpados.

—Nós... tivemos medo — ele tentou se explicar — Vocês sabem como é a sua avó, Ben. É difícil ela aceitar um não.

— Como a sua sogra — Kevin acrescentou — É brabo ter duas avós querendo encaixar a gente em moldes diferentes. Mas o mais triste é nunca poder contar com os próprios pais.

— Espere um pouco — Frank perdeu a paciência — Nós erramos, mas não admito que nos acuse de negligência. Nós deixamos que ela trabalhasse com você e Ben, embora...

— Deixaram, é — Kevin repetiu com sarcasmo, e bateu umas palminhas — Palmas pra sua bondade! Vocês deixaram porque sabiam que ela não ia ter paz se deixasse eu e o Ben correndo perigo, mas impuseram um monte de condições. Nada de nota baixa e ela ainda tinha que fazer qualquer serviço que a mãe inventasse, mesmo quando não tinha tempo nem pra se coçar! Que nem aquela vez que a sua filha teve que escrever cem convites, quando o Doutor Animal ia fritar Bellwood, se lembra? Mas quando ela quebrou a perna no shopping, vocês não foram capazes de arrumar tempo pra vê-la no hospital! E alguma vez já viram ela lutar karatê? Sua mulher adora exibir a faixa preta da filha pras titias, mas nunca se deu ao trabalho de ver a Gwen numa competição! E ela ainda tem o topete de falar em sacrifício!

Frank “meteu a viola no saco”. Ele se lembrava muito bem da história dos convites, porque ficara irritado com a falta de simancol de Lily – exigir um trabalho daqueles justo num dia em que a filha tinha prova?! Também se lembrava que fora Kevin que telefonara para eles do pronto-socorro avisando sobre o acidente. Fora ele quem levara Gwen para casa. Frank agradecera (ou achava que sim), depois havia esquecido, voltando a esperar que sua filha um dia tomasse juízo o bastante para romper seu namoro com o arruaceiro cabeludo...  Como seus sogros haviam esperado que Natalie rompesse com ele. Olhou para a esposa: ela chorava em silêncio, envergonhadíssima por levar bronca de um rapaz que nunca tinham levado a sério e que agora se mostrava muito mais adulto que eles. Mas, conhecendo Lily, ela ainda devia acreditar que estava certa.

    Da sala de controle, Kevin fitava o casal com desprezo. Nem acreditava que já tivera medo deles. Quando prosseguiu, seu tom era calmo e triste:

— A senhora quer saber o que é sacrifício de verdade? O meu pai morreu salvando a Terra! Ele era encanador e um bandido matou ele porque meu pai o impediu de drenar a energia do Sol. Ele se sacrificou pra que gente metida a besta como você pudesse continuar tendo seu “dia-a-dia monótono e sem sobressaltos”. Pra que os seus sagrados parentes pudessem vir na sua casa tomar chazinho e caluniar o filho dele. A minha mãe sofreu muito, ela tem mais motivos que qualquer um pra não querer que o filho seja encanador... e, assim mesmo, ela sempre me deu a maior força.

    Natalie virou-se e saiu do escritório. Kevin também se virou, e olhou por cima do ombro:

— Tô pregado, Ben. Não esquece de desligar o computador quando sair.

—Kevin... — Frank chamou.

   O mecânico olhou-o como se visse um saco de lixo podre esquecido no canto da cozinha:

— Quase esqueci: quero reembolso pela gasolina e pelos lanchinhos que a gente teve que gastar com os empata-fodas da sua mulher. Vou mandar amanhã os scans das notas fiscais, com os nomes anotadinhos; se alguém não quiser pagar, bote na conta da Natalie! — e andou como um rei até a saída. Sobrinho e tio ainda o ouviram resmungar alto sobre a quantidade de energia gasta pelo computador com aquela “conversa inútil”. “E meus filhos ainda me acham pão-duro,” pensou o advogado, ainda trêmulo do sermão.

— Fiuu! Ele nem chegou a recarregar — Ben brincou.

—Nunca acreditei quando Gwen e seu avô diziam que o Kevin era inteligente... devo desculpas aos três. Mas por que ele tentou diminuir a nossa culpa, se nos odeia tanto? — Frank indagou.

—Acho que fez isso pela Gwen. Pra ela se sentir um pouquinho melhor — Ben teorizou (ele mesmo não havia entendido) — Mas ele nunca vai perdoar o que vocês fizeram.

—Eu também não perdoaria — o advogado admitiu, suspirando — Quando vocês voltam?

—Não temos como saber. Os criminosos estão num lugar de difícil acesso. Podemos levar um dia, ou semanas. — Ben hesitou, depois decidiu perguntar o que vinha queimando sua garganta — Por que o senhor disse que contava com Kevin pra tomar conta da Gwen? Nunca tinha feito um elogio pra ele antes.

—Achei que, por uma vez na vida, deveria ser justo com ele. — Frank suspirou profundamente — E também... porque me dei conta que minha antipatia por ele era causada principalmente por ciúmes.

—Ciúmes?

— Kevin sempre esteve ao lado de Gwen quando ela precisava e eu não, incluindo aquela vez em que vocês três enfrentaram sua avó. Ele a compreende de um jeito que sua tia e eu jamais conseguimos. É verdade que o pai de Kevin foi encanador?

    O rosto de Ben se iluminou num sorriso:

— Devin Levin era parceiro do Vô Max. Pergunte os detalhes pro vovô — ele se divertiu com a surpresa do tio, depois ficou sério de novo — O senhor e tia Natalie saberiam disso e de muitas outras coisas sobre o Kevin, se não estivessem tão preocupados com o que os outros iam pensar de vocês por terem um genro como ele.

Desligou.

     Gwen enxugou os olhos e pronunciou a palavra que cancelava o feitiço de audição. A confissão de seu pai fizera uma lágrima correr por seu rosto. E ela achando que não choraria mais, depois da sua explosão de há pouco...

   Deitada na larga cama do único quarto existente na nave, refletia no que acabara de ouvir. Sua intenção inicial, quando Kevin a despachou, fora realmente de descansar, com uma toalhinha úmida sobre a testa. Mas logo ficou claro que não conseguiria relaxar se não soubesse o que estava acontecendo na sala de controle. Assim, voltou e escondeu-se atrás da porta, usando o mesmo feitiço que a ajudara a descobrir o que sua mãe realmente pensava de Kevin.  Quando este anunciou sua retirada, ela se teleportou de volta ao quarto, mas esqueceu de cancelar o feitiço. Não esperava que funcionasse a essa distância!

   Sentou-se na cama, tentando entender as emoções que se debatiam dentro dela. Estava emocionada com o arrependimento de seu pai, aliviada porque nem ele nem sua mãe tinham sido responsáveis pelas maldades de seus parentes Wilkes, mas também revoltada com a traição. Era muito conveniente que seu primo tivesse uma missão para eles, logo agora... porque ia custar muito, muito mesmo para ela querer ver de novo a cara de algum parente, com exceção de Ben e do Vô Max.

    E de Kevin, é claro. Não importava o que os outros achassem, ele era muito mais família dela do que qualquer pessoa naquela casa. Fora o único (além do Ben) que realmente se preocupara com seus sentimentos e necessidades, durante todas aquelas semanas. Era só por causa dele que não se sentia totalmente arrasada, depois de ouvir a discussão.


   “
Ela é uma pessoa maravilhosa, uma feiticeira fantástica, uma encanadora tão incrível quanto o avô e um dia vai ser uma anodita mais poderosa do que a Verdona! Mas ela sempre se sentiu culpada de ser todas essas coisas, porque decepcionou vocês... porque a única Gwen que os pais valorizam é a princesinha comportada que só pensava em estudar!

 

   Ele havia enfiado o dedo na ferida, bem no centro da infecção. Enquanto Gwen sempre se orgulhara em ser anodita, para seus pais fora um duro golpe saber que sua filha exemplar puxara à avó. Seu pai lhe dissera que não a proibiria de praticar seus poderes, era um direito dela; mas que procurasse não fazê-lo perto da mãe. Já a licença para trabalhar de encanadora lhe fora dada de má vontade, com as restrições apontadas por Kevin e depois de muitas súplicas e negociações da parte dela. Na época, Gwen até achara justo; afinal de contas, quantas vezes ela fizera os pais acreditarem que estudava com amigas depois da escola, quando na verdade estava batendo em DNAliens?  Mas, com o passar dos meses, frequentemente a garota se pegava invejando seus companheiros de batalha. Kevin recebia liberdade total da mãe (apesar das bobagens que fizera no passado e ainda fazia) e Ben tinha até licença especial para faltar às aulas! Sem falar que os dois tinham computadores quase novos e andavam por aí em carros irados. Gwen tinha que fazer suas pesquisas num laptop velhíssimo e só depois, durante a faculdade, conseguira comprar um carrinho de segunda mão, embora seus pais ganhassem muito mais do que Carl e Sandra. Não duvidara nunca do amor deles, mas às vezes bem que se ressentia contra a criação espartana que recebera. Consolava-se pensando que pelo menos eles ainda se orgulhavam por ela ser boa filha e excelente aluna. Por isso mesmo, sempre se empenhava em tudo que fazia, na escola, em casa e como agente da lei. Nunca decepcionaria ninguém.


   Mas e os outros, podiam decepcioná-la à vontade?


“...Quando ela quebrou a perna no shopping, vocês não foram capazes de arrumar tempo pra vê-la no hospital!”

Sua mulher adora exibir a faixa preta da filha pras titias, mas nunca se deu ao trabalho de ver a Gwen numa competição!”

 

“Ela concordou com todas as suas exigências para o casamento porque ama vocês!”

   Sempre desculpara os pais porque eles eram ocupados e ela sabia como era não ter tempo para nada. Sempre fora tolerante com a repulsa de sua mãe por anoditas e por alienígenas em geral. Sempre tentara compensar suas partes anodita e encanadora continuando a ser uma filha impecável em outras áreas. Não fora o suficiente. Agora que era adulta, queriam que ela abrisse mão de tudo o que amava para levar adiante os planos traçados na infância – um bom doutorado e uma carreira num laboratório ou universidade. Uma vida que não lhe servia mais, como suas roupas de criança. Sem mais aventuras. Possivelmente com um marido normal, daqueles que já saem da faculdade com emprego garantido pelos pais, pra deixar Vovó Grace bem contente. Alguém que nunca a entenderia, como Kevin... de quem provavelmente teria que esconder seus poderes e que, depois de alguns anos, começaria a voltar tarde do escritório, borrado de batom. E sua mãe ainda acusava Ben de arruinar a vida dela...

Kevin interrompeu seus pensamentos amargos. Não com uma palavra ou entrando de repente; foi sua assinatura de mana, ficando cada vez mais forte, que alertou Gwen que ele estava se aproximando. Deitou-se rápido, com a toalhinha sobre o rosto; alguns minutos mais tarde, o suave murmúrio da porta se erguendo assinou a entrada do noivo. Seu mana tão perto dela foi como uma brisa morna varrendo suas mágoas, fazendo-a relaxar. Queria muito conversar com ele agora, abraçá-lo, fazer amor. Queria...  o que ele estava fazendo parado ali?

Sentiu um peso afundar a beira da cama e ouviu um barulho semelhante a duas pedras jogadas no chão: deviam ser as botas dele. O peso se levantou e Gwen ouviu barulho de água correndo; obviamente ele tinha ido ao banheirinho pegado ao quarto. O banheiro era um ovo de codorna; dava-se dois passos da frente da cama e já se estava dentro dele, mas Kevin tinha um orgulho infantil daquele puxadinho: “Tem até chuveiro pra dois!” e piscava o olho, malicioso. Gwen tirou a toalha do rosto e sentou-se. Kevin estava de costas para ela barbeando-se, vestido só com a calça. O cabelo solto chegava ao meio das costas, mas não escondia inteiramente as omoplatas poderosas. Vê-lo distraído numa atividade tão trivial deu a ela uma saudade intensa dos momentos de intimidade que haviam partilhado antes do noivado, nos intervalos entre aulas e caças a alienígenas. Kevin ficou se olhando por alguns segundos, acariciando o queixo escanhoado. De repente, tocou a moldura do espelho. Sua mão transformou-se numa tesoura.

— Não!! — Gwen precipitou-se para evitar a tragédia.

Kevin deu um pulo e se virou, ao mesmo tempo em que fazia a mão voltar ao normal:

— Você fingiu que tava dormindo? — perguntou, num misto de surpresa e censura.

Ela brincou com os dedos:

— Eu... é, bem...  Desculpe, achei que você não queria ser perturbado. Mas não faça isso com seu cabelo, por favor. Se mamãe disse alguma coisa...

Kevin fitou-a, por alguns segundos. Depois sorriu:

— Nem que ela me chamasse de Rapunzel eu ia cortar o meu rico cabelinho! Não ia me fazer ganhar pontos com a vovó Wilkes, mesmo.

— Não digo pra tentar agradá-las. É que eu pensei que, depois das coisas que ela disse, você estivesse tão arrasado que ia descontar nele... se é que me entende.

Ele continuou sorrindo:

— Relaxa, eu só ia aparar um pouco. Enjoei de ter que amarrar ele pra não parecer a Samara Morgan.

Gwen sorriu também, sabendo que a piadinha boba era só para fazê-la sentir-se melhor:

— Primeiro Rapunzel, depois a Samara... Também existem homens de cabelo comprido no cinema, Aragorn. Se tiver uma tesoura, eu corto.

Tinha. Mas não havia onde Kevin pudesse sentar, a não ser em cima da cama, por isso decidiram cortar no banheiro. Gwen produziu um degrau de mana para ficar um pouco acima dos ombros dele.

— Quanto você escutou? — ele largou, de repente.

Gwen quase caiu do degrau:

— Como sabe que escutei?  

Teria sido alguma coisa que ela dissera, ou a sua expressão?

—Sei agora — ele riu, satisfeito de ter conseguido fazê-la se trair. Gwen teve vontade de lhe dar um tapa:

—Você esperava que eu ouvisse escondida? — apertou a tesoura na mão. Censurou-se: não tinha nada que ficar brava se Kevin a julgava mexeriqueira.

— Depois que a gente prova o gostinho de quebrar regras, sempre vai ter cosquinhas pra fazer de novo — Kevin filosofou, agora sério— E também, quando você quis saber se sua mãe tinha insultado meu cabelo, a sua voz tremeu e seus olhos se desviaram. Você não tá acostumada a mentir.

— Cheguei pouco antes de você chamar mamãe de “vaca”. — Gwen confessou, sentindo-se como se tivesse dez anos.

Ele se encolheu:

—Desculpa.

—Esquece. Se ela ouvisse uns xingamentos de vez em quando, talvez pensasse mais no que diz pros outros. 

Seu tom amargo doeu mais em Kevin do que se se ela o censurasse. Devia estar profundamente magoada com aquela frase horrível que Natalie havia dito. “Nem parece a minha filha!”  Kevin sabia que ELE se sentiria péssimo se ouvisse uma coisa dessas da própria mãe, pois durantes anos achara que ela pensava assim. No entanto, a doce senhora Levin nunca o renegara, nem mesmo quando Kevin se transformara numa mistura hedionda de madeira, metal e pedra, enquanto aquela bruxa mesquinha não dava valor à sua filha maravilhosa. “Gwen tá se fazendo de forte, como sempre...  e eu só piorei as coisas.”   Tirando algumas instruções dele, só se ouviu o tic-tic da tesoura durante o resto do corte. Os ombros musculosos pareciam esculpidos em pedra. Kevin sentia os fios cortados caindo dentro da calça e picando sua pele, mas não se queixava. Evitava encontrar os olhos dela no espelho. A pedido dele, Gwen cortou-lhe o cabelo no velho mullet que o osmosiano usara a maior parte de sua vida.

— Pronto! — disse, com animação exagerada — Está seis anos mais jovem. Quer que eu junte o cabelo pra você vender num salão? Tá meio sujo, mas deve render uma boa grana.

— Valeu, mas não. Pode botar fora — Kevin espanou o corpo com as mãos, tentando parecer indiferente.

— Kevin...

Ele imediatamente se empertigou e desviou os olhos, como se esperasse uma bofetada.

— Por favor, não fique bravo comigo — Gwen implorou num fio de voz.

Ele arregalou os olhos:

—Quê?

Foi a vez dela se espantar:

—Você não está bravo porque eu ouvi toda a conversa?

—Não! Achei que você é que tivesse com raiva de mim, porque eu disse aqueles lances pra sua mãe. Mas quando ela falou aquelas coisas horríveis, eu não consegui me segurar! — num impulso, segurou os ombros dela — A sua mãe não falou sério quando disse que você nem parece filha dela quando usa seus poderes! Ela disse aquilo porque tem medo de perder você! Eu sei porque sinto isso o tempo todo!

Gwen estava boquiaberta.

—Kevin, você...  depois de tudo que meus pais fizeram, do que mamãe fez pra separar a gente, você... você os perdoou?  Foi por isso que você os defendeu das acusações do Ben?

— É claro que não perdoei! Quem você acha que eu virei, São Kevin? Mas não quero que você corte relações com a sua família por minha causa.

Sentou-se, ou melhor, caiu sentado na cama, diante da mulher atônita:

— Eu fugi da minha mãe e do meu padrasto quando era criança, porque pensei que eles me odiavam... porque a eletricidade fritou meus miolos. Tem noção do que é rolar por aí durante anos, sem ter nenhuma ligação de verdade com ninguém, nem raízes em lugar nenhum? Eu nem acreditei quando minha mãe veio atrás de mim, me implorando pra voltar pra ela, e mesmo assim a gente demorou muito pra se entender...  não quero que você passe por isso também com seus pais! Você ia se arrepender depois e acabar me detestan...

CHUAC!

O beijo estalado na bochecha teria feito Kevin cair para trás, se Gwen não estivesse abraçando seus ombros.

— Como é que alguém consegue ser tão sábio e tão bobinho? — ela murmurou, mais para si mesma do que para ele.

—Como é que é? — Kevin esfregou o rosto, entre contente e ofendido.

Gwen sentou-se ao seu lado. Sentia-se leve, de repente, quase animada, mas procurou se manter bem séria.

— Há um velho ditado na Terra que diz que não se pode escolher a família. Tipo o Argit, não é? Mesmo sendo um rato mesquinho e traiçoeiro, ele foi o mais próximo que você tinha de uma família, antes de você fazer as pazes com sua mãe.

Aquele papo incomodou Kevin, porque era verdade:

— Vá direto ao ponto. Que isso tem a ver com...

— Você está com o mesmo medo da minha mãe: que a minha família corte relações comigo se eu me casar com você. Os dois acham que família é família, mesmo quando esta tenta controlar a vida da gente. Mas há a “família”, como o lado Wilkes — Gwen enfatizou fazendo aspas com os dedos — e a família que realmente importa. Sua mãe, seu padrasto, o Ben, tio Carl, tia Sandra e o Vovô Max;  todos eles estão do nosso lado. E o Ken – você não disse aquele negócio sobre ele ter defendido você só pra me consolar, disse?

—Falei a verdade — Kevin respondeu distraído, ruminando o que ela dizia. Realmente, não havia pensado por esse lado.

—E a Vovó Verdona... não vou dizer que ela é sua fã, mas ela acha que você é o marido perfeito pra mim. Antes da gente vir pra cá, contei pra ela do nosso noivado (não tive tempo de contar depois). Vovó me contou que o maior motivo dela ter me deixado ficar na Terra foi porque, quando te viu tentando me proteger dela a fez se lembrar de como o vovô arriscou a vida para salvá-la, quando eles se conheceram.


  A boca de Kevin se curvou num leve sorriso. Para ele, ser comparado a Max Tennyson era uma grande honra. Depois, ficou triste de novo:

— Mas seus pais nunca mais vão me deixar entrar na casa deles.

— Mamãe, talvez não. Mas papai vai deixar.

 Kevin se levantou:

— Ele tava puxando o meu saco, pra eu convencer você a falar com ele! — explodiu, sem conseguir disfarçar a mágoa. Apesar de ainda ter raiva dos pais dela, tentara convencer Gwen a não sentir o mesmo; ela não sabia se isso era encantador ou hipócrita.

— Meu pai nunca puxa o saco de ninguém! — levantou-se também — Ben não te contou o que ele disse, depois que você saiu?

Kevin olhou para outro lado, coçando a nuca, como sempre fazia quando ficava sem jeito:

— Me escondi no mato até que vi o carro dele sair. Eu ia surtar de novo, se o Ben tentasse me alegrar com aqueles papinhos edificantes dele.

Ela balançou a cabeça, compreensiva. Por mais que amassem seu primo, às vezes ele era bem chatinho.

— Não desejaria isso nem pro Estrela Sombria. Mas desta vez teria valido a pena ouvir o Ben. Ele conversou mais um pouquinho com meu pai, depois que você saiu. Papai está arrependido de ter tomado parte no complô, Kevin. A sua bronca fez ele perceber que sentia ciúmes... porque você sempre ficou comigo e me deu apoio quando ele não podia - inclusive contra a vovó Verdona. 

— Eu levei uma surra dela — Kevin lembrou, mas sua voz saiu incerta, perturbada.

— E papai ficou só olhando. Ele estava tão assustado que não podia nem pedir pra ela parar, e olhe que Verdona é a mãe dele! Quando olhava pra você, ele sempre se sentia... fraco (Gwen não conseguiu usar a palavra “covarde”). Disse que fez aquele elogio porque lamentava ter sido injusto com você, todos esses anos.

As emoções nos olhos de Kevin se misturavam, enquanto ouvia aquilo. Era doloroso para Gwen olhar, mas ela se manteve firme, até que o noivo se virou e cobriu o rosto com a mão. Nos músculos retesados de suas costas, podia-se ler o que ele lutava para não mostrar. “Então, ser aceito por minha família... pelo meu pai... é assim tão importante pra ele?!”  Gwen queria acariciar suas costas, abraçá-lo, mas sabia que, naquele momento, Kevin estava tentando se recompor. Já tivera uma explosão emocional quase uma hora antes e ainda estava envergonhado; preferia arrebentar a desabar de vez. Depois de alguns instantes, a moça ouviu um soluço. Kevin respirou fundo e expirou o ar, uma, duas vezes, como ela lhe ensinara há muito tempo, para se acalmar. Gwen aproximou-se de mansinho e estendeu a mão para tocá-lo, mas hesitou, não querendo ser invasiva. Finalmente, ele se virou; seus olhos estavam secos, procurando ansiosos por ela. Abriu os braços e Gwen atirou-se neles. Beijaram-se furiosamente, seus corpos o mais colados que as roupas permitiam, agarrados um ao outro com a mesma aflição de alguém que abraça um ente querido recém-resgatado das mãos de sequestradores; o amor misturado à alegria incrédula de não ter perdido o ser amado para sempre, mais o medo de que isso acontecesse. Kevin enterrou o rosto na curva do pescoço dela, beijando até onde o recatado decote da blusa deixava. Gwen enterrou os dedos no cabelo dele e sentiu alguma coisa picando suas mãos:

— Você ainda está cheio de cabelo cortado! Não tá com coceira?

— Tô me comichando todo! Minha calça tá cheia de cabelo.


  Kevin não se surpreendeu quando sentiu o zíper de seu jeans se abrir e as calças deslizaram perna abaixo, embora as mãos de Gwen estivessem bem mais em cima. Mas quando sua cueca começou a descer também, ele se lembrou de algo importante:

 
— Peraí... a minha barra de silicone tá no armário do banheiro.

  Um tentáculo de mana apressadamente lhe passou o objeto. Kevin riu e apertou o nariz, fazendo uma voz de locutor de tevê:

— “As camisinhas Levin são mais resistentes, mais confortáveis e não tem perfumes enjoativos. Satisfação garantida ou um pacote de fraldas.”

  Enquanto ele se preparava, Gwen aproveitou para se despir também. Foi aí que se lembrou de uma coisa que a fez dar um largo sorriso malicioso:

—Nudus— murmurou. Suas roupas atravessaram seu corpo, como se ela fosse feita de ar.

   Kevin havia acabado de colocar a proteção, quando Gwen o abraçou por trás. A barra de silicone caiu de sua mão. Ele engoliu ar, surpreso, depois soltou um suspiro, sentindo o corpo macio se esfregando contra sua própria pele nua, as mãozinhas tocando seus mamilos e os músculos do ventre, nos pontos onde ela sabia serem mais sensíveis.

—Ah, Gwen! Eu queria tanto isso... — ele gemeu.

Quando ela fez uma carícia mais atrevida, Kevin não aguentou mais. Deu um passo para se soltar e se virou. Seus olhos escuros deixaram bem claro que gostavam do que viam, mas Gwen sentia-se magra demais, por causa do regime forçado.

— Estou parecendo uma tábua. — reclamou, cobrindo os seios. A resposta foi um beijo no rosto:


—A tábua mais gostosa que já vi na vida. E depois de uns dias comendo a comida típica de Cassiopéia, vai ter tudo de volta e talvez mais um pouco. — o sorriso dele era tão sincero, tão doce, que Gwen esqueceu qualquer insegurança que ainda sentia. Não queria pensar em mais nada agora, além do próprio prazer – e o da pessoa que o proporcionava, é claro.  

Amaram-se em pé, apoiados a uma parede, porque a cama parecia longe demais. Não durou tanto quanto queriam, mas dizer que foi satisfatório seria pouco; foi intenso. Foi fulminante! Quando Gwen deu acordo de si, percebeu que havia sido colocada sobre na cama. Kevin saiu do banheiro e parou na frente do leito, apreciando a visão.

— O que a vovó Grace diria se te visse assim, peladinha em cima da cama? — provocou.

— Nada. Ela teria um enfarte. Achava todas as minhas camisolas curtas demais e não me deixava usar pijama porque não é “feminino”. Tive que pagar um maço de cigarros pra Rachel me emprestar um dos camisetões dela, senão eu ia ter que dormir de camisola de flanela, até os tornozelos.

Kevin deitou-se também.


—Ela devia tá querendo te proteger dos farelos — sorriu quando ela o olhou interrogativamente — Eu sei que ela come bolachas na cama. Seus priminhos zoavam muito como você devia sofrer por causa disso. Toda a sua família tem segredinhos interessantes, se a gente se dá ao trabalho de prestar atenção — deslizou um dedo pelo rosto dela, e foi lentamente descendo pescoço abaixo.

Gwen estava quase se entregando, mas a palavra “segredinho” lembrou-a de um assunto ainda não discutido:


—Kevin, eu... Eu devia ter te contado antes sobre as fofocas da Rachel.

Kevin tirou o rosto do ombro dela. Justo agora Gwen tinha que pensar nessa m...?


— Não sei como foi que ela descobriu. — resmungou, apoiando a cabeça na palma da mão — Eu só fui na casa da Emily uma vez, depois que a gente voltou pra cá, e de noite! E só porque pais dela insistiram. Algum dos seus primos, ou dos amiguinhos da Rachel devia tá na cidade e me viu.

— Ou ela mesma. Eu acho que antes disso a Rachel já sabia  — Gwen acrescentou, pensativa — porque logo, no primeiro dia, ela veio pra mim com umas insinuações. Eu disse pra ela... que seria melhor pra todo mundo se não ficasse espalhando acusações sem provas — seus olhos emitiram um rápido brilho magenta, pra enfatizar como havia silenciado a prima — Não quis te chatear com isso porque ninguém mais tocou no assunto...

—E de qualquer jeito a gente nunca mais conseguiu ter uma conversa particular — Kevin lembrou.

— ...até que vovó acusou você, lá na loja. Pelo jeito, a vontade da Rachel de criar caso foi mais forte que o medo.

Kevin envolveu-a com o braço:

—Deixa pra pensar nisso amanhã. Melhor, pensa daqui a uma semana. O seu pessoal já ficou tempo demais entre a gente. — olhou bem nos olhos dela e forçou um sorriso — Já que estamos nos castigando, eu também não consegui te avisar da armadilha que suas priminhas aprontaram pra esta noite. Se você não tivesse tido aquele piti na loja, amanhã a internet estaria cheia de fotos suas sendo agarrada por um cara pelado com quepe de policial!

Como esperava, sua noiva ficou furiosa ao saber da despedida de solteira. Mas não por muito tempo... pois, como Kevin observou sabiamente, de qualquer jeito ela estava sendo agarrada por outro peladão agora, só que com o seu consentimento. 

 

 

 


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Notas finais do capítulo

- Enfim Kevin e Gwen tiveram um refresco, depois de tudo que passaram! Muita gente observou – com razão – que os dois tiveram paciência demais com os parentes dela (valeu, pessoal!), e agora vocês estão vendo porquê. O próximo capítulo vai demorar um pouquinho, porque agora vou tentar destravar Indomado e A Ovelha e o Porco-Espinho; mas não se preocupem, que não pretendo levar outros quatro anos pra atualizar! O capítulo vai ter um pouquinho de ação e vou tentar reduzir o blablablá. Espero também que as cenas eróticas não tenham ficado muito sem graça, mas é que eu não queria aumentar a censura da fic. Imagino que boa parte dos leitores tenha menos de 18 e aí não iam mais poder acompanhar. Realmente, gostaria muito de ter botado mais pimenta aqui, mas acho que dei bastante material pra imaginação. (e pra quem acha que essa fic deveria ter uma censura maior, eu e minhas colegas de ensino médio líamos coisas muito mais fortes quando tínhamos quatorze, quinze anos, e nenhuma de nós teve problemas por causa disso)


Alguns esclarecimentos:


— Verdona realmente aprova o Kevin. Dwayne McDuffie confirmou isso em seu fórum, quando era vivo. Os pais do Ben... bom, em Alien Force eles não aprovavam, mas com o tempo imagino que eles possam ter mudado de ideia, afinal Kevin salvou a vida do filho deles tantas vezes, e os dois não são tão caretas quanto Frank e Natalie.

— Em Lembranças de Um Techadon, Gwen desabafa com o primo que “todo mundo tem um carro, menos ela”, e bem mais tarde diz: “Ter uma espaçonave, sem problema; mas pedir um carro ao papai, ‘talvez só na formatura’”. Sem falar que o seu laptop é igualzinho ao da série clássica, enquanto Ben e Kevin tem desktops enormes. Curioso, já que os roteiristas confirmaram que Frank ganhava muito melhor que os pais de Ben, e a única explicação que me ocorreu é que fazia parte da educação que davam pros filhos – ou, especificamente, pra Gwen (sabem como é, a marcação em cima das filhas sempre é maior). Outra coisa que me chamou muito a atenção – me irritou, na verdade – é que, quando Gwen quebra a perna (no episódio A Namorada Perfeita), seus pais não aparecem no pronto-socorro, nem nas cenas dela em casa. Talvez por economia de animação, mas não fui a única a estranhar. Alguém observou no fórum que eu frequentava que os pais de Gwen deveriam ter mais carinho pela filha em vez de empurrar suas expectativas nela, e claro que isso foi uma das minhas inspirações para esta fic.



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