Depois da aula dos pequeninos, a turma das crianças de cinco a sete anos se preparava para encerrar as atividades. Como a aula fora bastante produtiva sem as costumeiras trapalhadas e brigas que aconteciam, Phillip tinha ainda meia hora até dar o horário em que as crianças seriam liberadas. Apesar da pouca idade que aparentava, lá seus vinte anos de idade, nunca se vira um lutador faixa preta que lutasse tão bem quanto ele na academia. Apenas Michelle era pário para ele. Ela também era faixa preta e também era tão nova quanto Phillip, mas os dois já eram mestres dos pequeninos que faziam a iniciação ao esporte relativamente bastante cedo.

- Bom, crianças, por hoje é só. Ainda temos algum tempo, alguém tem alguma sugestão? – falou Phillip, dirigindo-se à turma mista que o olhava, alguns rostos bastante vermelhos, outros nem tanto pela atividade do dia.

Como sempre, Misha Nariki foi a primeira a levantar a mão. Surgiram algumas observações maldosas dos colegas, já que sempre que o mestre perguntava algo, a menina era a primeira a se candidatar para a resposta. Phillip estendeu a mão em sua direção, indicando que ela poderia dar sua sugestão.

- Por que o senhor não conta pra gente a Lenda de Yant, o guerreiro amaldiçoado?

Surgiram várias vozes infantis no que pareceu ao homem um murmúrio de concordância. Phillip gostava de contar aos alunos algumas das principais lendas do Kung Fu quando a aula terminava mais cedo. Porém, naquele dia, as crianças pareciam estar particularmente interessadas na lenda de Yant. Aliás, não naquele dia, mas desde que, há uma semana, um homem velho adentrara à sala dos pequeninos e dissera-lhes que, se não conheciam a lenda do Guerreiro Amaldiçoado, não conheciam absolutamente nada sobre aquela academia. Michelle, que já vinha com seus alunos, já que também tinham terminado as tarefas mais cedo, sorriu marota para o amigo, que, conformado, sentou-se no chão de frente a todas aquelas crianças para que pudessem lhe ouvir.

- Bom, vamos lá então. – começou o mestre. – Yant era um garoto que, assim como todos vocês, também começou a lutar aqui nessa academia. – ouviu-se algumas exclamações no meio das crianças e Phillip continuou. – Yant era diferente de todas as outras crianças porém, porque via-se no modo como ele lutava que o garoto tinha o dom do Kung Fu. Tinha nascido para isso. Então, um dia, um garoto que já era faixa verde resolveu convida-lo para uma luta, com todas as regras e segundo mandava o bom Kung Fu. Mas Yant ainda era faixa branca, e não aceitou o desafio proposto. Então começaram a chama-lo de covarde e medroso, dizendo que ele não tinha talento nenhum, a não ser se vangloriar por uma qualidade que nem lhe pertencia.

“Yant não suportou aquela humilhação. Porém, não via saída: ou lutava e perdia feio, perdendo toda a moral que conquistara, ou desistia do desafio, sendo tratado como covarde para o resto da vida. Então decidiu que, se fosse para cair, cairia lutando. Chamou o garoto que o havia desafiado e disse-lhe que aceitava lutar.” Ouviu-se novamente exclamações e gritinhos surpresos, mas Phillip não se deixou interromper e continuou. “Foi uma grande luta. Os dois tinham muito talento e habilidade, mas apesar de toda experiência que o mais velho tinha, Yant conseguiu vence-lo. Todos se surpreenderam com o que acontecera, inclusive o garoto. Enquanto comemorava, juntamente com todos os seus amigos, Yant não percebeu quando o mais velho se aproximou por trás e deu-lhe um golpe na base do crânio, e o garoto caiu desacordado na mesma hora.” Mais gritinhos foram ouvidos, dessa vez em tom de protesto e desaprovação. “Vendo o adversário caído e sem ter como se defender, o garoto lançou-lhe uma maldição, dizendo que jamais conseguiria pegar a faixa verde.”

Phillip parou por alguns segundos, deixando o suspense no ar e a história pairando sobre as cabeças dos pequeninos.

- E aí? – perguntou curioso Alan McGrew, um dos garotos mais talentosos e levados da turma de Michelle, que ainda observava tudo encostada no portal, a uns 10 metros de onde estavam Phillip e as crianças.

- Bom, aí a maldição pegou, e por mais que tentasse, e ele morreu tentando, Yant jamais conseguiu apanhar a faixa verde. Porém, ele também não deixou barato. Ao tentar pela última vez e ver que realmente jamais deixaria a faixa amarela, convocou os Dragões de Fogo. – Phillip parou mais uma vez para ver o efeito que a declaração causaria nas crianças. Ao vê-los olhando com cara de quem não faz idéia do que estão falando, o homem deixou cair os ombros, revelando-se extremamente desapontado pela falta de reação.

- O que são Dragões de Fogo? – perguntou Mathew Brown, lá da parte de trás de onde os garotos estavam.

- Dragões de Fogo são criaturas terríveis, extremamente perigosas, que se alimentam da raiva, do rancor e do sentimento de vingança das pessoas. – disse Michelle, se aproximando e sentando-se ao lado de Phillip.

- Pois é, ele convocou esses Dragões – continuou o homem, visivelmente reanimado. -, dizendo a eles para que, em todos os exames de faixa verde, eles tomassem providências para que nenhum dos alunos conseguisse passar nessa academia. – novos gritinhos foram ouvidos e Phillip aproveitou a oportunidade e continuou. - E o sentimento de raiva e rancor de Yant era tão grande que ele conseguiu que os Dragões prometessem a ele que o fariam para sempre. – finalizou o homem, vendo as expressões de espanto em cada um dos rostos das crianças, menos Misha.

- Mas, professor? – disse a menina, levantando a mão.

- Diga, Misha, o que há de errado? – perguntou Phillip, sorrindo por prever que aquilo, em algum momento, aconteceria.

- Esse Yant amaldiçoou essa academia em que estamos agora? – perguntou a menina.

- Sim. – respondeu Felipe, prontamente.

- E isso aconteceu a muito tempo? – continuou a menina, parecendo confusa e curiosa ao mesmo tempo.

- Sim, claro, há séculos, a academia tinha praticamente acabado de ser fundada.

- E vocês dois se formaram aqui, não é? – perguntou novamente Misha, indicando os mestres.

Antes que Phillip pudesse dizer novamente Sim, foi interrompido por Alan, que se sentara ao lado de Misha e agora se dirigia a ela.

- Sabe, ainda bem que somos de turmas diferente, porque se eu tivesse que te agüentar tagarelando desse jeito todas as tardes, acho que me mataria!

- Ah, é? – respondeu a menina, com cara de descrença. – Então por que se sentou do meu lado, hein? – perguntou, enquanto via o menino corar.

- Ei, ei, sem brigas, pessoal. – interrompeu Michelle, encerrando a discussão. – Sim, Misha, nós nos formamos aqui. Mas por que a pergunta?

- Por que, se essa história do Yant fosse mesmo verdade, vocês não poderiam ter pegado a faixa verde, certo? – perguntou a menina com ar de vitória.

- É aí que você se engana, Misha, pois é aí que entra a Lenda da Guardiã. – disse Phillip, animado, enquanto via a expressão da garota passar de vitoriosa para total êxtase.

Alan olhou-a desconfiado, quando viu que o queixo da garota se abrira e ela batia palmas, os olhos brilhando, completamente excitada com a história que nem havia começado.

- Mas que lenda é essa afinal? – perguntou Alan, visivelmente frustrado por não saber algo que Misha conhecia.

No momento em que Phillip ia começar a contar mais uma história, a sirene soou, anunciando que era hora de ir pra casa. Entre murmúrios de lamentos e reclamações, o homem anunciou à turma:

- Bom, gente, hora de ir pra casa, amanhã, se vocês se comportarem, eu conto a Lenda da Guardiã para vocês, ta? – disse, enquanto Michelle revirava os olhos com uma expressão de deboche que ninguém conseguiu entender. - Até mais, galerinha, até amanhã.

Alan afastou-se do grupo em direção à sua mochila bastante contrariado enquanto via Misha saltitar alegremente até a bolsa cor-de-rosa que continha suas coisas e se dirigir ao vestiário feminino. O que diabos contava essa lenda afinal?