A Cidade das Sombras escrita por srt-K


Capítulo 3
Esconde-esconde




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Já se passara mais de uma semana desde que pensei em ikuto, mas no momento em que o vi no Cemitério de Mármore, fiquei fascinada mais uma vez. Acho que algumas pessoas podem confundir o encontro com coincidência. Mas eu há muito tempo suspeitava de que poucas coisas no mundo são verdadeiras coincidências. Alguma coisa - ou alguém - estava no reunindo.


Pela primeira vez na minha vida, fiquei impaciente para que o inverno terminasse. Na esperança de que uma de minhas colegas de turma me desse as informações relativas ào misterioso ikuto, eu até cheguei cedo no primeiro dia de volta às aulas e só o que descobri foi que duas semanas de presentes e festas apagaram as lembranças que elas tinham de todo mundo. Não tive alternativa a não ser esperar que a aula começasse, sem tirar o meu olho treinado da carteira de ikuto no fundo da sala.


Segundos antes do sinal tocar, eu o vi. Ele estava ainda maior do que eu me lembrava - parecia mais uma criatura mítica do que um ser humano. Estava vestido inteiramente de preto e, embora eu tivesse ouvido falar que seu cabelo era preto, a verdade era que tinha uma cor azul-marinha.uma pele clara e quase cadavérica. Embora minha descrição possa parecer vampiresca, posso lhe garantir que, no todo, o pacote era surpreendentemente atraente.

Fiquei olhando, julgando-me despercebida, enquanto ele pegava um caderno (preto) e uma caneta (preta) de dentro de uma mochila de couro (preto). Ele passou um momento arrumando estes objetos na cadeira e, exatamente quando terminou, seus olhos se ergueram de repente e pegaram os meus. Pude sentir meu rosto quente de tão vermelho, porque ele parecia estar examinando cada detalhezinho de minha aparência. Seus olhos azul-marinhos - tão escuros que eram quase cor da noite- não se desviaram. Sua boca não sorria, nem se retorcia, não fazia um esgar nem uma careta. Por fim, ele ergueu uma sobrancelha e a manteve arqueada por um momento antes de deixá-la cair. Eu me virei para a frente da sala, me rosto ardendo de humilhação. Jurei a mim mesmo que não seria apanhada novamente.


* * *



Por dois meses, diz o máximo para ficar fora de vista enquanto perseguia ikuto entre as estantes da biblioteca e fui sua sombra na floresta de armários do vestiário da educação física no porão da escola. Mas embora eu tentasse ser discreta, a vigilância era uma habilidade que não me era natural. Quase estraguei minha tocaia numa tarde na biblioteca, quando tropecei em uma aluna do jardim-da-infância que espremia uma sanduíche de pasta de amendoim entre dois exemplares de Oliver Twist. E tive certeza de que ouvi alguém rir no dia em que fiquei encharcada ao me esconder no boxe no vestiário da educação física.


Deixando de lado meu dever de casa, eu passava as tardes inventando métodos infalíveis de espionar ele. Cheguei a colar um espelho por dentro de um de meus livros para poder vê-lo no fundo da sala de aula. Mas tudo o que eu via o fazia parecer ainda mais estranho. ikuto não falava nada durante as aulas e nossas professoras nunca chamavam seu nome. Na verdade, ele era tão bem-sucedido em se misturar que todo mundo parecia olhar através dele.

Depois de várias semanas observando-o, comecei a me perguntar se ikuto podia estar observando mais alguém. Ele não demonstrava interesse em fazer amigos mas, em várias ocasiões, eu a vi estudando um grupo de alunas da sétima série como um cientista acompanhando um bando de gorilas. Seguindo seu exemplo, fiz minha própria lista de observações.

1. Ikuto sempre vestia preto.

2. Ele levava o caderno preto a toda parte, mas nunca anotava nada durante as aulas.

3. Ele não era visto em lugar nenhum na hora do almoço.

4. Ninguém parecia saber que ele existia.

5. Ele possuía a capacidade extraordinária de desaparecer quando bem entendia.


Esta última observação - ou a falta dela - foi o principal motivo para minha lista ser tão curta. Por incontáveis vezes em incontáveis dias, eu seguia ikuto por um dos corredores, virava uma esquina e me via perseguindo o menino errado.


Em março, comecei a ficar frustrada. Tinha me decidido a seguir ikuto até a casa dele, esperando descobrir seus segredos de uma vez por todas. Será que havia cortinas floridas nas janelas? A mãe dele o recebia na porta com um forte abraço? Será que havia outros pequenos tsukyomi correndo por lá? Eu esperava que não. A possibilidade de que ikuto fosse um menino comum me enchia de pavor.


Eu não teria admitido isso, mas ele me deu um fiapo de esperança. Até a chegada dele à Escola Atalanta, eu me resignara a uma existência solitária. Ninguém me passava bilhetes nem me convidava para festas. No que dizia respeito a minhas colegas de turma, eu nem estava ali.ele era invisível também, mas ela parecia gostar de ser assim. Não estava interessado em ser popular. Por algum motivo que eu ainda ia descobrir, ele preferia ser perigoso. Mais do que qualquer coisa, eu queria aprender o segredo dele. E se ikuto acabasse por se revelar outro desajustado social, eu ficaria arrasada. Mas esse era um risco que eu estava disposta a correr.

Imagino que você esteja pensando que eu podia ter perguntado a ele mas, se for assim, você não está entendendo bem. Um menino que anuncia que quer ser perigoso não é uma fonte confiável de informação. Eu não estava interessada no que ele queria que eu soubesse nem no que ele estava disposta a me dizer. Eu queria a verdade e precisava de uma maneira de descobrir por mim mesma.



* * *



No dia em que decidi seguir ikuto até a casa dele, matei minha última aula e me preparei para me esconder do lado de fora da escola e esperar que ela aparecesse. Foi só quando abri a porta da frente que percebi que tinha deixado de verificar a previsão do tempo. Os degraus estavam cobertos de neve e temi que minhas pegadas me entregassem. Mas eu estava curiosa demais para adiar meus planos. Enrolei um cachecol bege na cabeça para me camuflar e procurei um esconderijo.


Não tive que procurar por muito tempo. O exterior da Escola Atalanta era crivado de incontáveis cantos e gretas com tamanho suficiente para esconder uma menina - embora poucas meninas quisessem usá-los. Sabíamos da história do menino que se escondera em uma das fendas na época em que a enorme estrutura gótica era um lar para crianças geniosas. Antes que o menino conseguisse escapar, um pingente de gelo em forma de adaga caiu do peitoril de uma janela e cravou-se no peito dele. Todo inverno, pelo menos uma garota histérica afirmaria ter visto o fantasma dele vagando pelos corredores, o gelo derretido deixando um rastro de água.


Sempre achei esta história absurda, mas quando olhei para cima do prédio naquela tarde, pude ver montes de pingentes de gelo se formando debaixo de cada janela. Mantive uma distância segura e me agachei na sombra de um arbusto, perto da única saída da escola - um portão de ferro que dava para a calçada.

Logo depois do sinal das três da tarde, ikuto surgiu do prédio e andou animadamente pelo caminho.Mais importante, como estava toda de preto, ele se destacava na neve. Pelo menos desta vez, pensei, ele não teria onde se esconder.


Graças ao tempo, as ruas estavam vazias e, pelos primeiros quarteirões, pode seguir ikuto a uma distância segura. Da escola, ele foi para oeste, na rua 68. Não havia nenhum carro esperando por ele na esquina da Lexington Avenue e ele passou pelas duas estações de metrô e pelos pontos de ônibus sem sequer olhar. Depois de passar pelo Madison Avenue, vi as árvores do Central Park se estendendo acima das mansões que ladeavam a quadra. À medida que me aproximava do parque, a cidade parecia chegar ao fim. Dois ou três carros avançavam lentamente pela Quinta Avenida, as rodas deixando trilhas de gelo que desapareciam rapidamente enquanto a neve retomava a rua. Poças escuras e amareladas de luz cercavam dois postes de rua e os olhos de uma estátua espiavam de sob um espesso manto branco.


ele parou na beira do parque, a mão enluvada apoiada em um muro de pedra. Contra o fundo branquíssimo do parque, ele parecia ainda maior, e as pedras e árvores presas pelo muro ameaçavam engoli-lo vivo. Fiquei olhando do outro lado da rua, esperando que ele não pretendesse atravessar o parque. A luz da tarde já estava começando a diminuir. Às quatro horas ficaria escuro, e o Central Park não é um lugar onde você queira estar à noite. Mesmo durante o dia, pode ser difícil se orientar lá dentro. Seus caminhos arborizados se torcem, viram e voltam a si mesmos. O parque mais parece um labirinto gigante - um labirinto construído para levar os moradores da cidade a acreditar que deixaram a civilização para trás, quando na realidade nunca se afastam mais do que algumas centenas de metros de uma Starbucks.

Quando o sol está brilhando e o parque está tranqüilo, pode ser um prazer se perder ali. À noite, porém, o labirinto guarda sua parcelo de monstros. Nas semanas antes de me vir seguindo ikuto, o noticiário local estava cheio de histórias de bandos de delinqüentes juvenis que começaram a se reunir no parque assim que o sol se punha. Usando roupas escuras, suas identidades ocultas por camadas de pintura de guerra, eles se deleitavam em emboscar as pessoas que eram tolas o bastante para vagar por seu domínio. Um executivo, atravessando o parque a caminho da casa numa noite, foi obrigado a nadar meio dúzia de voltas nas águas congelantes e poluídas do Central Park Lake. Não muito tempo depois, uma mulher e a filha foram descobertas numa manhã, abandonadas na jaula dos macacos no zoológico do parque. Com o clima gelado de Nova York, elas podiam ter encontrada um destino menos divertido se os macaco não tivessem pena e se aconchegassem com elas para se aquecer durante a noite.


Como você pode imaginar, eu não estava animada com a perspectiva de enfrentar cara a cara os bandidos que habitavam o Central Park. E no entanto, quando ikuto subiu no muro e pulou para o bosque, eu a segui sem hesitar.

Ele manobrou pelo parque congelado como uma xerpa aclimatada. Tentei ficar fora de vista enquanto ele contornava arbustos, lagos e pedras, mas a neve aos poucos começou a se acumular em seu casaco e ele não aparecia mais com a nitidez de antes. Fui obrigada a me aproximar cada vez mais para vê-la contra as árvores. Quando chegamos ao Great Lawn - um vasto trecho de campina no meio do parque - meus olhos lutaram para enxergar através da nevasca. A cada passo, ikuto, agora coberto de neve da cabeça aos pés, começava a desaparecer.

Desesperada para não perdê-lo de vista, comecei a correr, ciente de que podia ser descoberta a qualquer momento. Meus pés, congelados pela neve que se acumulara em meus calçados inadequados, recusavam-se a cooperar. Eu escorreguei e caí de quatro, e enquanto lutava para me colocar de pé, vi uma figura borrada entrando sorrateiramente no bosque. Eu me vi parada sozinha no meio de uma campina vazia, afundada na neve e me perguntando se eu tinha sido destruída pelo clima ou se ikuto me passara a perna.


Entrei em alguns caminhos errados ao tentar sair do parque e o sol desapareceu antes de eu chegar à segurança da Quinta Avenida. Preparando-me para a longa viagem para casa, eu me apoiei numa árvore para tomar fôlego e sacudir a neve de meus sapatos. Três jovens usando roupa de camuflagem surgiram de uma mansão a leste da avenida. Uns sujeitos grandalhões e bem-nutridos, com botas caras e o cabelo cuidadosamente despenteado, se arrastavam pela rua, indo em direção ao parque. Imaginando que o que iam aprontar não era bom, eu me espremi na árvore e rezei para não ser percebida.


- A coisa não vai escapar hoje à noite - ouvi um rapaz dizer. - A cabeça dela está a prêmio.


- Você acha mesmo que ela via voltar? - perguntou outro, nervoso.


- Aposto minha vida nisso.


- Está apostando mesmo, considerando o que ela fez com o Julian. Viu a cara dele? Ele quebrou o nariz dele - disse um dos garotos com uma risadinha.


- Olha, o Julian foi pego de guarda baixa. Isso não vai acontecer de novo. Trouxe os telefones?


- Trouxe.


- Se um de nós a vir, vamos ligar para os outros. Não vamos dar nenhuma chance, tá legal? O que quer que seja, deve ser meio alto. Se ficarmos juntos, vamos poder pegá-lo antes que machuque mais alguém.

Espiando com cuidado de trás da árvore, vi o trio parar perto do muro de pedra do parque o olhar furtivamente os dois lados da rua. Depois que um táxi que vinha do sul desapareceu de vista, eles saltaram o muro e sumiram entre as árvores. Se eu estivesse menos preocupada em perder os dedos dos pés de tão congelados, teria seguido os três. A conversa deles despertou meu interesse. O medo da "COISA" misteriosa fez com que a voz dele tremesse de uma forma que não era natural, e eu me perguntei o que poderia estar inspirando essa agitação em três arruaceiros parrudos.


Quando cheguei ao saguão do meu prédio, meu corpo estava entorpecido e o calor úmido da escada fez minha pele pinicar de dor. Incrivelmente, sobrevivi com todos os meus dedos, dos pés e das mãos, intactos, embora os pés levassem horas para descongelar. Naquela noite, enquanto me preparava para dormir, uma parte do noticiário da noite chamar minha atenção.



Dois adolescentes de famílias abastadas de Nova York receberam alta do Hospital Beth Israel esta tarde e forma imediatamente presos sobre a acusação de assalto e danos criminosos originados de um estranho incidente no Central Park. Thomar Vandervoort e Jacob Harcott são acusados de atacar um corredor perto da Literary Walk. De acordo com as autoridades, eles espancaram cruelmente o homem, um executivo de publicidade aposentado, e depois o obrigaram a vestir um tutu rosa. Os rapazes, membros de uma gangue que vem aterrorizando o Central Park há meses, estavam se preparando para amarrar o corredor a uma estátua de Shakespeare quando foram surpreendidos pelo que foi descrito como um elfo grande ou um duende azul.


Nem Vandervoort nem Harcott deram sua versão dos acontecimentos, mas o corredor, que admite que se sentia tonto naquele momento.

Pela manhã, os jornais deram muito espaço ao corredor, que ofereceu uma recompensa de 10 mil dólares por qualquer informação relacionada com o elfo azul que salvara sua vida.


Uma matéria no New York Post mostrava uma foto borrada do duende do ceral Lucky Charms junto com uma legenda que dizia:


Procurado: O Vingador do Central Park

Recompensa: Um pote de ouro


A idéia de pegar a recompensa passou por minha cabeça uma ou duas vezes. Na verdade, nada teria me agradado mais do que contar ao mundo que o misterioso duende que combatia o crime era só um menino de 14 anos. Mas os segredos de ikuto valiam muito mais do que um pote de ouro. E eu não ia desistir antes de descobrir todos eles.



* * *



No dia seguinte, fui à livraria de Verushka, na Segunda Avenida, na esperança de que o Cemitério de Mármore me desse uma pista para identificar ikuto. Quando cheguei, encontrei a loja escura e deserta. A vitrine tinha sido alterada a mostrava uma coletânea de contos de fadas dos irmãos Grimm. Onde antes estava o mapa do Cemitério de Mármore, agora havia um livro grosso com uma imagem da Princesa Aurora na capa, o dedo delicado suspenso acima de uma roca. Uma placa desbotada presa na porta da loja dizia: "Fechada até segunda ordem". Eu estava prestes a ir embora quando vi um envelope vermelho enfiado na lateral da porta. Meu nome estava escrito na frente dele.


Abri o envelope e peguei o bilhete que continha.


Você não é muito boa em seguir pessoas, dizia em uma caligrafia apertada e controlada. Se quer saber alguma coisa, talvez deva perguntar. Estava assinado tsukiomy ikuto.


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