A Estrada para o Céu escrita por Marcela


Capítulo 1
Capítulo Único




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Há uma estrada de pedra. Sim, há. Está perto daquela casinha. Você consegue vê-la? É... Ela está meio fora de foco, mas eu acho que se você apertar bem os olhos, consegue ver melhor. Isso, assim mesmo. Conseguiu? Ótimo.


Eu ainda insisto na dolorosa vontade de querer caminhar por entre as árvores secas e opacas que rodeiam a região. E não, eu não estou calçando meus sapatos velhos e surrados que costumava usar antigamente, quando decidia sair para passear junto dele.


Ah, ele! Você se lembra? Sim, aquele rapaz de cabelos escuros e olhos tão azuis que, quando o sol os iluminava, pareciam ser transparentes. Ele vinha caminhar comigo quase todos os dias. E eu sempre me pegava observando seu sorriso e a maneira como seus cílios pestanejavam lentamente sobre os olhos. Pena que esqueci o nome dele...


Agora, cá estou eu, andando sozinha. Quer dizer, eu ainda tenho você, não tenho? Pelo menos até você decidir ir embora (e espero que esse dia nunca chegue).


Enfim, que tal andarmos até aquela árvore grande, ao longe? Legal.


Lembro-me de como esse lugar era colorido e cheio de vida. O cheiro da comida ainda paira pelo ar. Hum... Posso sentir o gosto da macarronada em minha boca e ver mamãe sorrir ao servir o almoço. Ela era linda. Dizem que tenho os olhos dela. Você acha que é verdade? Olhe bem e não minta pra mim. Ok... Eu paro de piscar. Perdoe-me essa minha mania de piscar várias vezes, mas eu faço isso quando estou nervosa, ansiosa ou triste.


Se eu estou nervosa agora? Não, nervosa não. Nem ansiosa. Acho que estou é triste. E não me pergunte o por quê.


Ta bom vai, eu falo.


É que toda vez que eu venho andar aqui, sinto um vento gostoso tocar meu corpo, e desta vez não estou sentindo nada. Queria saber o motivo do vento também ter sumido. Ele parou de balançar as árvores, parou de sussurrar assustadoramente em meus ouvidos e, por mais que suas palavras me dêem arrepios, eu gostava de ouvi-lo sempre.


O quê? Você pode senti-lo? Ah não... Não me diga para não fazer esse beicinho que sempre faço quando fico chateada com alguma coisa. E tire suas mãos dos meus cabelos. Quero que me responda uma coisa: como é que você sempre consegue fazer coisas que eu não consigo? Digo, você pode sentir o vento. Não vá me falar que você também vê esse lugar colorido. Sério? As árvores são verdes? E aquela bicicleta encostada na parede? Que cor ela tem? Vermelha, é? Interessante.


E eu vejo tudo em preto e branco, como àquelas velhas fotografias de família, sabe? Vou confessar que sinto uma enorme inveja de você por isso. Mas é uma inveja boa, ta? Só queria poder ver tudo colorido novamente... Ei! Ei, volte aqui! Aonde você pensa que vai?


Não, não quero saber. Não fuja mais de mim. Ah, você não estava fugindo? Sei...


Olha, eu acho melhor você não entrar aí... Minha casa? Como esse lugar pode ser a minha casa se eu não lembro de ter morado aqui? Não estou ficando louca, estou? Escuta aqui, eu acho que...


Por que está tudo tão velho assim? Veja essas paredes caindo aos pedaços! Essa mesa está toda coberta de pó, o teto todo rachado... Tem até uma poça de água. Não consigo tocá-la. A água não está vibrando com meu toque. E eu também não consigo ver o meu reflexo nela. Estranho...


Ta, ta, já sei... Você pode, você consegue. Já entendi. Agora pare de me chatear com isso.


Não, eu não estou brava com você.


Acho que vou voltar lá do lado de fora. Estava menos assustador, embora estivesse feio também, assim como essa casa.


A grama está parecendo bastante convidativa; se eu deitar sobre ela um pouco não vai me fazer mal. E eu também não vou senti-la. Mesmo que pareça que estou deitada em uma cama de concreto, irei continuar aqui. Nada do que você me diga vai me fazer levantar.


Nada.


Talvez se você preparar um cafezinho pra gente... O que acha? Não? Então vou continuar aqui. Ahá! Descobri uma coisa que eu consigo fazer. Posso ouvir sua voz, mesmo você estando longe de mim. Enquanto estou aqui fora, você está aí dentro e ainda sim consigo te ouvir. Não ouse sussurrar, posso escutar do mesmo jeito. Ei! Eu ouvi isso!


Deixe-me te contar uma coisa.


Você se lembra de quando eu te falei sobre aquele rapaz de lindos olhos azuis? Então, eu me recordo do último dia que o vi.


Ele estava sentado nos degraus em frente à porta da frente dessa casa, a qual você diz ser minha. Tinha o rosto enterrado nas mãos e parecia estar chorando. Quando viu que eu me aproximava, enxugou as lágrimas e forçou um sorriso que saiu muito feio, confesso. Ele tinha um rosto bonito sim, mas aquele sorriso trazia uma grande tristeza e angustia. Entrava em contraste com a cor desse lugar.


Fazia um dia lindo. O sol ardia em minha pele e o vento estava presente. Então eu me sentei ao seu lado e passei meu braço pelo seu corpo, puxando-o para mais perto. O problema foi que ele não se moveu. Parecia que estava mais pesado do que nunca. Depois que ele se levantou foi que eu percebi que ele não secara as lágrimas porque tinha me visto, mas porque tinha visto um homem mais velho, com barba e pequenos olhos azuis.


— Precisamos ir. — o mais velho disse, fingindo uma voz dura.


O menino não disse nada, apenas fungou alto, engolindo outras lágrimas e andou até o carro que parecia ser bem velho. Dentro dele, havia também uma mulher, mas não consegui vê-la muito bem. Só me lembro de ter sentido um cheiro forte de macarrão.


Você acha que estou ficando louca? O quê? Por que você quer que eu lembre de algumas horas antes do rapaz ir embora? Tem certeza? Eu não sei se consigo.


Ok, vou tentar.


O dia continua lindo. Hum... Tem um lago. Ah, eu havia decidido pegar o bote de madeira e remar um pouco. Depois não consigo me lembrar de mais nada.


O quê? Isso é impossível! Eu não posso estar morta! Não faz sentido! Eu morri afogada? Mas eu me lembraria de ter caído na água! A gente não se lembra da própria morte? É isso que você está querendo dizer?


Mas...


E você? O que você é? Um fantasma, como eu? Ah... Você é um anjo. Muito bem então, anjo. Por que não me contou antes sobre isso? Não, eu não vou parar de te encher de perguntas até saber sobre tudo.


O que você está trazendo aí? O que é isso? Um caderno? Meu? Tem certeza? Olha só... É a minha letra. São as minhas histórias. Ei! Eu me lembro de escrever histórias, de criar personagens, inventar mundos e voltar em outras épocas.


Por que você está segurando um espelho agora? E vem cá, de onde é que ele apareceu? Eu não vou me olhar; não preciso. Sei que tenho cabelos... Cabelos... Meus olhos são...


Olha como estou bonita! Não me lembrava de ser assim. Não me lembrava também desse vestido. Olha só anjo! As coisas estão ganhando cores novamente. A casa já não está tão feia e posso sentir o vento beijar minha pele. Está sentido também? Pare de sorrir! A luz do sol está refletindo em seus dentes!


Espera aí, agora eu lembro de tudo! Aquele rapaz dos olhos azuis era meu irmão! E aquele senhor, meu pai e a mulher no carro, minha mãe! Por isso o cheiro de macarrão! Não estou ficando louca.


Ei anjo, quando foi que o sol ficou dez vezes maior? Que luz forte é essa? O quê? Eu não posso ir para lá, quer dizer, não agora que eu me lembro, agora que estou em minha casa. Mas vem cá... Lá é o céu? Ah, sim... Vou ter que descobrir sozinha.


Tudo bem então. Obrigada pela companhia. Posso ficar com o caderno?


Então é isso.


Você promete não se esquecer de mim?


Beleza. Vejo você por aí.


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