Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 34
A carona, tudo errado, expulsa e o pagamento


Notas iniciais do capítulo

Desculpa a demora... é que to entrando em uma semaninha meio corrida ... heheh



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            Eu não estava me cobrando para lembrar-me de alguma coisa, só estava repetindo o que a voz havia me falado. Foi estranho, foi frio ouvir a voz na minha cabeça desta vez. Eu tinha que me lembrar de alguma coisa? Eu precisava fazer isso? O que eu tinha que lembrar? Eu tinha que levar em consideração o que meus pesadelos falavam? Não. Cheguei a essa conclusão sem pensar duas vezes. Segundo estudos científicos, os sonhos não passam de projeções idealizadas da mente sobre algum assunto que você viu, sobre algum desejo seu, sobre fantasias que você cria. Também são frutos de moldes baseados em algumas lembranças, mas isso não vem ao caso, já que eu nunca conversei com uma voz misteriosa sem ser em um sonho. 

             Peguei o relógio e olhei as horas. Eram quase seis. Está bem, ainda faltavam uns quarenta e cinco minutos para as seis, mas eu não poderia levá-los em consideração, pois se eu dormisse, não acordaria mais. Então resolvi ficar rolando e evitando o sono. Eu já era craque neste quesito, tanto que nem percebi a hora passar e o despertador tocar.

            Era de manhã. Finalmente. Levantei-me e arrumei - me, mesmo estando bem escuro lá fora e ninguém acordado ainda. Pensei ter exagerado um pouco no que dizia respeito ao termo ‘cedo’ escrito na mensagem de Daniel, mas visto que não demorou muito tempo depois para uma buzina tocar do lado de fora, não me arrependi de ter madrugado.

        - O que é isso Melinda? – resmungou minha mãe. Agora acordada e na cozinha, colocando o avental em torno da cintura para mais um dia de trabalho. – Onde você está indo? – perguntou com uma voz mais aguda, quando me viu pegando a bolsa de escola.

         - É o Deni mãe. Meu amigo Daniel, sabe? Ele ofereceu carona para a escola enquanto o papai não melhora. – fui a sua direção para me despedir.

         - Ahn, sei... Mas, por que você não me avisou? – sua voz era um misto de espanto e desconfiança. Com certeza, coisas de mãe.

         - Oras, nem eu me lembrava disto, só me lembrei de fato ontem à noite. Desculpe não ter avisado, mas acho que não vejo problemas em aceitar uma carona, não é?

          Antes mesmo de ela prolongar a conversa eu a cortei.

          - Mas agora me deixe ir. Não quero deixá-los lá fora plantados por muito tempo. Isso não vai ser educado. – toquei na ferida dela. O termo “não vai ser educado” fez com que ela praticamente estivesse na porta me apressando para sair.

           Dei um beijo em sua bochecha e sai sem mais embolações. Cheguei até o carro que estava estacionado bem em frente ao portão, abri a porta de trás e entrei. Levei um susto quando vi que quase me sentei no colo de Daniel. Fiquei vermelha, melhor, fiquei roxa. Tive que voltar com o corpo para dar espaço para ele se ajeitar mais para o lado. Não esperava que ele estivesse no banco de trás. Achei que ele estaria no banco da frente, ao lado de seu pai, mas logo percebi que ali estava sentada sua mãe, quem sorriu para mim a me cumprimentou. Retribui o comprimento, rezando para que ninguém mais, além de mim e do Daniel, tivesse visto o meu pequeno descuido. Depois disse um “Bom-dia” meio rouco para o Sr. Floukin e me acomodei melhor no banco.

            - Ah, quase que me esqueço! – murmurei um segundo depois do meu primeiro silêncio. – Obrigada pela carona. Não precisava...

            - Não se preocupe Melinda, Não é incomodo nenhum. – A mão de Deni se voltou para mim com um sorriso que me tranquilizou. Eu apenas retribuí com o meu melhor.          

             Até então, eu não tinha olhado para o rosto de Daniel desde a hora em que quase sentei em cima dele, mas não poderia evitá-lo para sempre, então me arrisquei lançando um olhar para os olhos azuis, que já me encaravam.

             - Trouxe? – murmurou.

             - Trouxe o quê? – deixei-me levar pelo momento de desconcentração, mas antes que ele pudesse me interromper, prossegui. – Ah, você quer dizer o... – fechei a mão, levantei o polegar e o indicador e os esfreguei.

              Daniel captou a mensagem e sorriu, esperando ainda pela minha confirmação.

              - Trouxe sim. – murmurei sorrindo.

              - Ótimo! – ele exclamou com extrema satisfação e um sorriso no rosto.

              Achei graça em todo esse interesse que ele demonstrava, mas como sempre, eu estava proibida de fazer perguntas.

              Prosseguimos quietos por todo o caminho. Já que eu não podia questionar, resolvi manter o silêncio em forma de um protesto sustentado pelo meu próprio ego e que com certeza não teria retorno algum.

              Quando chegamos à escola, saí por uma porta e percebi Deni se arrastando pelo banco traseiro para sair pela outra. Parecia uma descuidada, poderia ter um pouco de afobação no meu ato, mas eis que eu sai do carro muito rápido e bati a porta um tanto que muito forte também. A batida da porta fez com que eu desse um passo largo para trás, agindo pelo impulso do som da batida. Antes mesmo que eu pudesse raciocinar e ir até o vidro da porta da mãe de Floukin, para me desculpar, senti meu pé esmagando o de alguma pessoa inocente que passava por de trás de mim. Mais do que roxa por toda a situação, virei rápido a cabeça e deparei-me com Rafaela. Ela que havia sido a vítima do meu atropelamento.

           - Rafa! – exclamei menos tensa. – Ai, desculpa pelo seu pé... é que... é que eu me desequilibrei, foi isso! – joguei as palavras rapidamente.

           - Sem problemas Mel, hoje não estou de sandália... Ainda bem.

           Rafaela começou a rir e bem na hora que eu ia acompanhá-la nessa risada, ela parou de repente.

           - Olá Rafaela...

           Ouvi uma voz murmurando atrás de mim. Era a voz de Daniel que havia feito ela se paralisar. Infelizmente eu lembrei de todo o emaranhado de problemas que envolvia nossas três pessoas, lembrei que teria que encontrar um jeito de desfazer o nó que eu havia dado em minha própria garganta e pior ainda, lembrei que não sabia como fazer isso.

            Ela não respondeu por um instante. Daniel se aproximou mais ainda de nós e por obra de um infeliz acaso, ele colocou a mão, não sei porquê, ao redor de minha cintura. Eu gelei ao sentir o olhar cortante que Rafaela me lançara.

            Com dois passos duros ela se virou e começou a andar desenfreada. Eu olhei para o Daniel, que me encarava com a maior cara de interrogação do mundo, soltei o braço dele da minha cintura e corri atrás da Rafaela.

            - Espera Rafa, espera!

            Eu não esperava que de fato ela parasse, mas ela parou subitamente na minha frente. Tive que agir rápido para não atropelá-la novamente. Estávamos agora as duas plantadas no meio da rampa.

            - Como pode Mel!

            - Não Rafa, foi só uma carona, não é nada do que você está pensan... – parei de falar.

           Ela ficou me encarando por um segundo enquanto eu emergia nos meus pensamentos.

            Na verdade, era sim o que ela estava pensando, ou melhor dizendo. Mas não, não era, pelo menos não naquele momento, mas de certa forma era, não é? Minha cabeça tentava esclarecer as coisas, mas ela ficava só na tentativa, porque na prática não estava conseguindo muito sucesso.

            Levei a mão na testa e respirei por um segundinho a mais. Eu tinha que falar, se eu mentisse agora, novamente, tudo ficaria bem pior.

            - E então Mel, o que você tem a me falar? – ele estava falando em um tom elevadinho. Alguns olhares já nos acompanhavam e eu não estava gostando nada daquilo.

            - Calma Rafa, não precisa de tudo isso!

            - Tudo isso? TUDO ISSO? – ela falou bem alto. – Mel, você é minha amiga, como pode? Se você não soubesse seria uma coisa, mas você sabe, você me apoiou!

            - Mas eu não fiz nada! – retruquei evitando mentiras. Afinal, omitir não é mentir.

            - Como não? Vi vocês chegando junto, até mesmo vi ele te abraçando. Na minha frente Mel! – ela, além de falar alto, parecia estar quase chorando.

            Olhei para os lados e não havia tantas pessoas assim. Olhei mais para cima, no topo da rampa e vi que Daniel estava descendo. Agarrei o braço de Rafa e a puxei.

            - Precisamos conversar, mas não aqui e sem escândalos. – não pedi, ordenei.

            Arrastei-a para o banheiro. Nem olhei para seu rosto para ver se ele me encarava triste ou indignado. Só lá dentro, praticamente trancadas na cabine para deficientes que comecei.

            - Eu não estou com o Daniel Floukin. Ele apenas me ofereceu uma carona, pois meu pai esta com problemas, você sabe muito bem quais, e está incapacitado de me trazer. Ele me abraçou, pois todos os amigos se abraçam. Isso não foi e nunca será uma tentativa de te magoar, está bem? – falei tudo de uma vez. Não quis nem saber se meu tom estava ríspido de mais para a situação

            Ela só me encarou com os olhos menos vermelhos e mais arregalados. Seus lábios semi abertos acabaram me provando que eu havia falado um pouco exaltada de mais, porém acho que foi o suficiente para ela entender e parar com os chiliques de ciúmes. Rafa deu um passo na minha direção, assentiu com cabeça e me abraçou. Foi aí que eu fiquei sem reação.

             - Desculpa Mel, eu fui tão burra em pensar isso. Logo de você, minha amiga que se propôs a me ajudar. – ela suspirou. – Estou me sentindo uma idiota, de verdade.

             Ela soltou os braços do meu pescoço, visto que eu não tive reação nenhuma para retribuir o abraço. Seus olhinhos voltaram a brilhar mais e ela começou a falar perdida nos pensamentos.

             - É que eu nunca me senti assim, sabe. Eu estou gostando dele... muito. Não sei porquê, mas tudo nele é tão encantador. Isso porque nunca conversamos por muito tempo, Imagina quando isto acontecer, não vai ser um sonho Mel?... Mel?

             Ela parou de falar e obviamente estava olhando para mim. Mas nada eu podia ver, pois estava de cabeça baixa e com a mão apoiada na parede. Era apenas isto que me sustentava, uma parede. 

             - Mel, Mel! – eu juro que eu conseguia ouvir a voz dela, mas não passava disso. Minha cabeça não doía, meu corpo não doía, mas eu sentia uma dor. Não sei da onde, mas ela estava em algum lugar.

             - Mel, Mel! – tornou a gritar novamente no meu ouvido. A voz de Rafaela estava preocupada. E fico eu imaginando então, como ficou a voz dela a partir do momento em que nem a parede me sustentava mais.

             - Mel, Mel! – não era mais a Rafaela que me chamava.

             Era aquela voz.

             Eu tremia agachada em um lugar escuro. Não estava escurinho, estava escuro por completo, sem ser possível até mesmo ver se havia ou não alguma coisa posta há um palmo do meu próprio rosto. Mas ainda sim parecia um lugar amplo. Amplo o suficiente para eu me levantar e começar a correr desesperadamente. Não conseguia assimilar nem o porquê de eu estar correndo tanto. Só sei que eu estava com as mãos nos ouvidos, determinada a não ouvir voz nenhuma que me chamasse enquanto eu continuasse a correr.

              Mesmo neste estado bizarro, eu ainda conseguia ouvir a voz chamando meu nome como um zumbido continuo dentro da minha cabeça. Eu não conseguia entender, por que eu não queria ouvir a voz. Sempre fui tão curiosa quanto a isso, que fiquei confusa ao perceber que meus atos, meus movimentos, estavam sendo cuidadosamente projetados para evitar o contato com aquela voz que aveludava minha mente, pelo menos naqueles instantes de pânico que ainda me faziam correr sem rumo.

              Percebi minhas bochechas molhadas e só então me dei conta que havia lágrimas ali. Perfeito, agora eu, ou melhor, meu corpo, estava chorando por conta própria e eu nem sabia o motivo. Tudo estava confuso, tudo agia sem pedir permissão. Senti que eu era uma mera marionete do meu inconsciente e que eu não conseguia controlar nada. Só seguia o impulso que surgia de algum lugar de dentro de mim, sem fazer a mínima de onde.

               Continuei neste estado por um tempo. Eu assistia meu desespero de dentro de mim mesma. Até que a voz parou de zumbir e eu parei de correr bem a tempo de não atropelar uma pobre garotinha que estava parada na minha frente. Freei em cima dela. Fiz seus cabelos castanhos se moverem com a pequena brisa que gerei com minha parada brusca. Fixei meus olhos nos azuis dela e, mais calma, tirei as mãos dos ouvidos.            

               Esperei que ela falasse, mas ela não falou. Sorriu brevemente e levou as mãozinhas para trás do pescoço, na nuca. Fez um movimento rápido e um ‘click’ ecoou por todo o breu.

               Eu estava tão compenetrada nos seus olhinhos, que nem me dei conta do que ela havia retirado do pescoço. Quando voltei a pensar normalmente, ela já estava segurando algo na mãozinha fechada.

               Com sua roupa branquinha e um pequeno passo, chegou bem perto de mim e puxou minha mão, fazendo com que a palma ficasse estendida para cima. Colocou ali, o que tirara do pescoço e fechou com cuidado, fazendo com que minha mão esmagasse delicadamente seja lá o que estivesse lá dentro. Era frio.

               Fiquei como uma boba esperando por um movimento dela. A essa altura eu não estava mais assistindo meus atos de camarote. Eu já estava os fazendo por consciência própria. O momento “bizarro e fora do controle”, parou quando eu parei de correr. Agora eu já era eu novamente.

               Com cuidado, ela foi abrindo minha mão, e eu, ansiosa que nem uma criancinha, grudei meus olhos para finalmente ver o que eu segurava. Infelizmente, não vi nada, pois lá de dentro começou a sair uma luz tão forte, que fui forçada a fechar os olhos que se ofuscavam. A medida que ela abria mais minha mão, mais cega eu ficava.

               De repente o clarão cessou e eu abri meus olhos. Estava deitada, com o corpo todo torto bem no chão do banheiro. Em um pulo levantei com nojo, bem a tempo de parar Rafaela, que tentava girar a maçaneta da porta, mas que não conseguia concluir sua façanha com êxito, pois suas mãos tremiam mais do que vara verde.

               - Rafaela! – gritei.

               Pude ver seu coração saindo e entrando novamente pelo corpo. Ela olhou para mim, branca, pálida, transparente, quase um fantasma.           

               - Me... Mel! – sua voz custou a sair, ao mesmo tempo em que a cor voltava para seu corpo.

               - Calma, você está páli... – não consegui terminar.

               Senti um agarro no meu pescoço que quase me fez cair novamente. Rafaela pulava que nem uma doida do meu lado. Custei um segundo para tirar seus braços de volta de mim e antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ela falou.

               - Mel, você está bem? Vem rápido, preciso te levar para enfermaria!

               - O que? Não, não precisa de nada disso, eu estou ótima, pode ver. – passei a mão por todo o meu corpo e me senti um verdadeiro produto a ser exibido.

               - Não Mel, você não está bem! Acabou de desmaiar e de... – ela parou de falar subitamente, senti um tremor na sua voz.

               - Clama, é normal eu desmaiar. Sério, não é nada. Deve ter sido a pressão, mas não adianta eu ir à enfermaria se já passou.

               - Mas você ficou alguns segundos inconscientes e depois... – desta vez ela não parou de falar porque quis. Eu a interrompi.

               - Segundos? Foram só segundos?

               - É... Por quê?– murmurou sem entender porque eu estava perplexa.

               Resolvi manter essa pergunta sem resposta. Segundos? Segundos? Não foram só segundos que eu passei correndo que nem uma louca no escuro, ou então conversando pelo olhar com uma menininha. Foi bem mais do que isto. Entretanto resolvi não levar a questão em pauta novamente. Se Rafaela já estava em estados de nervos com um simples desmaio de segundos, imagine só se fosse de vários minutos.

               - Mel... Enfermaria, vamos? – repetiu ela.

               - Nem pensar Rafa. Eu estou ótima e já te expliquei que foi um desmaiozinho de nada. Preciso muito assistir a primeira aula do professor Emmanuel. Senão é bem capaz dele começar a me perseguir na segunda aula! – olhei no relógio e vi que faltavam poucos minutos para tocar o sinal.

               - Mel, me escuta. Não foi um simples desmaio, você... eu não... sentia...

               - O que Rafa?

               - Eu não ia te contar, mas e se for algum problema sério, eu fiquei preocupada!

               - Fala logo Rafa, a aula! – apontei o relógio para ela.

               Ela franziu a testa e custou um pouco para começar, mas acho que meu olhar estava tão mandão, que ela acabou cedendo.

                - Logo depois que você caiu, apoiei você naquela parede. – ela apontou a parede mais próxima da cabine de deficiente. – E ia saí para pedir ajuda. Só que você escorregou, rolou, sei lá e ficou estatelada no chão. Fui rapidamente te ajeitar, pois parecia que você estava de mau jeito. Quando peguei sua mão, senti que estava muito fria e você não se mexia e seu peito não mexia também e... Eu coloquei a mão no seu pescoço... Não senti pulsação... – ela suspirou um segundo. – Mel, eu fiquei morrendo de medo e me desesperei. Foi então que corri para a porta e não conseguia nem virar a maçaneta. Bem aí você acordou e eu me dei conta que estava sendo uma perfeita idiota imaginando coisas que não estavam acontecendo. – ela ficou um pouco vermelha.

                O sinal tocou antes que eu fosse capaz de abrir minha boca para dizer algo. No caminho para a sala, fiquei pensando no que Rafaela havia me contado e também no fato do meu sonho ter sido tão mais extenso do que a realidade. Eram fatos bobos de se pensar no momento. Coisa de médico mesmo. Então resolvi focar meus pensamentos em assuntos adolescentes e acabei encontrando na minha mente, depois de dar uma volta enorme, novamente o triângulo: “Rafaela – Deni – Mel” que se formara por minha culpa. 

                 Senti-me nos minutos passados. Eu estava com as palavras na boca e com a coragem no coração de contar tudo para a Rafaela, mesmo que doesse mais nela do que talvez em mim. Só que o momento passou, ou melhor, foi atropelado por outro momento que por hora, iria encobrir todo meu discurso a respeito do Daniel.

                  Eu precisava, ainda que difícil fosse, encontrar uma outra brecha tão boa quanto a que eu tinha perdido hoje, para contar tudo para ela. Mas parecia que seria um pouco impossível realizar tal façanha ainda naquela manhã.

                  Tive que entrar correndo na sala, pois vi o Professor Emmanuel bem perto da sala. Joguei a bolsa em qualquer lugar e me sentei. Demoraram apenas alguns segundos para eu me dar conta que estava sentada na primeira carteira, bem na frente da mesa dos professores. Que pesadelo.

                  A aula ali na frente pareceu ser muito mais extensa, ao ponto de eu não poder fazer mais nada além de ter que ficar olhando para o professor, sem ao menos poder olhar para trás, para os lados ou para os meus pensamentos. Sentada ali, eu era um alvo fácil – não que sentando no fundo eu me tornaria um alvo mais difícil – porém, embaixo do nariz dele, era tão óbvio quanto dois mais dois, que eu seria a eleita da sala para as perguntas.

                  Minhas suspeitas se consumaram durante as duas aulas. Não passou um segundo que ele não olhasse para mim, com aquele jeito arrogante, cuspindo palavrinhas e palavrões que eu nunca havia escutado.

                  - Bene... o que?

                  - Bem simples Melinda, o que é Beneplácito? – perguntou pela segunda vez, fazendo a sala inteira olhar para mim.

                  Sinceramente eu não fazia a mínima ideia. Nunca havia ouvido esta palavra super normal de se falar em uma conversa.

                  - Não sei... – murmurei em um tom normal.

                  - Não entendi...? – pude ouvir um ‘oh’ ecoando pela sala.

                  O que? Ele  não estava fazendo isso, ele não podia! Ele devia estar de brincadeira, porque eu estava a menos de um braço dele e meu tom foi bem claro. Percebi visivelmente que era um abuso de autoridade, ele queria me ridicularizar, só podia ser isso.

                   - Você ouviu. – não me contive em responder. O ‘oh’ desta vez foi três vezes mais intenso. Ninguém, inclusive eu mesma, acharia que eu fosse capaz de responder assim.

                   Por algum motivo ele sempre implicava comigo e eu nunca fazia nada além de aceitar de cabeça baixa. Mas isso tem limites, me poupe!

                   - A senhorita tem a consciência que eu tenho toda a autoridade para te tirar da sala, não é? – indagou com uma voz sarcástica e isso me deu nos nervos.

                   - Sei sim... – respondi e continuei na mesma. Eu já havia entrado na guerra, agora que eu não ia sair.

                   - Pois bem então... Melinda. – ele se afastou um pouco da minha carteira, estendeu o braço para a torta e fez um gesto como “vai, a porta está aberta”.

                   Eu nunca havia saído de aula alguma em todos os meus 16 anos. Obviamente que tudo tem sua primeira vez e que muito provavelmente, se eu tivesse que passar por isso alguma vez na vida, seria na aula do Professor Emmanuel. Eu só estava esperando o dia chegar.                  

                    Levantei-me da carteira e tive vontade de falar poucas e boas para ele. Mas minha inteligência me permitiu saber que se eu fizesse isso, não teria como argumentar ao meu favor na sala do diretor. Então, com muita superioridade, caminhei até a porta e saí.

                    Ouvi nitidamente vários murmúrios se contendo aos poucos, a mesma medida que a porta ia se fechando nas minhas costas. Com certeza ninguém esperava por essa. Mal ou bem, eu não era considerada uma menina que é convidada a se retirar da sala e isso deve ter causado um bom motivo para comentários.

                  Fui para a sala do diretor e bati na porta. Eu não sabia se era isso que eu deveria fazer, mas foi o que eu fiz.

                  - Com licença...? – murmurei abrindo um pequeno vão na porta.

                  - Melinda... Entre! – ele disse com uma cara curiosa. – O que faz aqui, o professor te pediu um favor?

                  - Bem, na verdade ele pediu sim... – eu não sabia como começar, então usei esse argumento como uma brecha. – Ele pediu para eu me retirar da sala. – comentei por fim.

                  Ele demorou alguns segundos me encarando e eu quase pude ler em sua testa um ‘excuse me?’ típico de filme.

                  - O Professor... – ele olhou rapidamente em um papel, creio que era uma ficha com os horários. – O Professor Emmanuel tirou você da aula? – sua voz era um tanto que indignada e soou engraçado. – Por quê?

               - Bem, porque eu não sabia responder a uma pergunta e cortei nitidamente uma tentativa dele de me expor para a sala. – não sei nem como consegui compor uma frase tão convincente em tão pouco tempo.

               - Pode me explicar com mais detalhe?

               Consenti e expliquei tudo o que a aconteceu na situação, exatamente igual.

               - Bem, mas se foi assim, creio que ele não teve motivos muito claros para te expulsar da sala. – concluiu por fim.

               Foi exatamente isso que eu pensei quando saí da sala. Também foi por isso que eu não respondi nenhuma frase mal criada para ele, tal como era minha imensa vontade. Sabia que tudo isso iria contar pontos positivos para mim: uma pobre aluninha que havia sido expulsa da aula sem motivos necessários.

               - Melinda, só não lhe peço para voltar para a sala, pois isto causaria um tumulto desnecessário. Também porque eu não posso tirar esse direito do professor, mas saiba que eu terei uma conversa com o Emmanuel e se tudo ocorreu exatamente como você me contou, pedirei para ele conversar com você. – ele sorriu para mim, sabia que no fundo eu era uma boa menina.

               Concordei com cada palavra que ele dissera, mas não gostei muito da idéia de ter que conversar com o professor Emmanuel, não sei porquê, mas isso não me soava muito bem.

               Precisei ficar quase uma hora esperando a segunda aula acabar. Estava me sentindo esquisita, persuasiva, não sei muito bem. Mas não me incomodei com essa idéia. Ter poder de mais é preocupante, porém creio que não faz mal nenhum ter e usar apenas um pouquinho.

               O sinal tocou e eu fui para a sala. A próxima aula era bem mais tranquila e eu consegui me sentar em um lugar mais avantajado para quem não gosta de ficar o tempo todo olhando para cima. Um bolinho de pessoas me rodeou de uma hora para outra me perguntando sobre o que havia acontecido na diretoria. Contei tudo e pude perceber vários sorrisinhos do mal quando falei que o diretor iria falar com o professor.

              - Falei, ele vai ser demitido! Onde já se viu, colocar a Mel para fora? – ouvi tudo isso de uma voz familiar. Olhei para trás e vi Francisco fazendo um discurso de apologia contra o Professor Emmanuel. – Ele sempre implica com a Mel, e não só com ela! Tenho certeza que todo mundo já passou por alguma situação desagradável com ele.

              Só faltou todos gritarem vivas e elegerem o Francisco como próximo presidente. Achei muito defensivo todos aqueles garotos e garotas revoltados com um professor de História. Será que era por eu ter sido injustiçada, por gostarem de mim ou por não gostarem do Emmanuel? Conclui que era um misto de todas as questões e só não consegui me aprofundar mais nestas averiguações, porque o próximo professor havia acabado de entrar na sala.

               Como eu já sabia, essa aula perto da passada poderia ser comparada com um paraíso. Passou tão rápida que eu nem percebi que já era intervalo.

               Mal tive tempo de me levantar da cadeira e o Daniel estava plantado ao meu lado que nem uma pilastra.

               - Vamos Mel. Não se esqueça do dinheiro! – ele foi pegando o lanche de cima da minha carteira e colocando no seu bolso. – Vamos.

              Daniel estava extremamente empolgado com essa viagem e confesso que se ele não me lembrasse a cada segundo que eu deveria pagar o passeio, eu já teria esquecido. Que cabeça avoada a minha.

                Peguei o dinheiro e fomos para tesouraria. Senti um gelinho na barriga quando passamos pela porta e a encontramos fechada. Mas logo a porta se abriu e um senhor saiu de lá cheio de papéis na mão. Não consegui identificar o que eram aqueles calhamaços de folhas, pois uma voz fina soou de dentro da sala nos chamando.   

             - Oi... - murmurei depois de Daniel ter me dado uma leve cotovelada. – Vim falar sobre o passeio do segundo ano.

             - Ah sim, para Angra? – perguntou uma moça franzina e de óculos atrás de uma mesa lotada de papéis.

             - Esse mesmo! – respondeu Daniel empolgado, antes mesmo de eu tentar abrir minha boca. - Ela veio efetuar o pagamento.

             - Claro... – ela se abaixou e pegou uma lista. – Nome, por favor?

             - Melinda. – murmurei depressa.

             - Vamos ver, vamos ver... – ela tornou a olhar para a lista. – Bem, não tem nenhuma Melinda na lista de reservas...

             - Como não? Disseram para gente que hoje daria para ela fazer o pagamento se ela estivesse com o dinheiro em mãos! – retrucou Daniel, exaltado de mais para o meu gosto.

             - Penso que isso poderia ocorrer se alguém houvesse desistido ou então mais vagas fossem abertas. Mas não ocorreu nem um nem outro, lamento...

             - Moça, deve haver um jeito de ela poder ir à viagem. Você não faz idéia de como vai ser importante... – Deni me lançou um olhar furtivo. -...para ela.

             Depois dessa eu até franzi as sobrancelhas. Ele estava extremamente empenhado a me fazer ir a essa viagem e isto estava tão nítido como se um letreiro piscasse na sua testa.

             - Ahn... Bem... Posso ver se... – ela novamente começou a reler a lista inteirinha. – Ah, está bem aqui! Acho que encontrei uma solução.

             O meu sorriso se abriu normalmente, mas o de Deni se escancarou de orelha a orelha.

              - O que você pode fazer por nós... Ou melhor, por ela? – o indagou, lavando as duas mãos sobre a mesa da tesoureira.

              - Nesta lista estão todos os nomes das reservas e dos alunos que já pagaram. Os que ainda não pagaram, deram uma data a qual alegaram que iriam efetuar o pagamento. Eis que tem um nome aqui, que fala que o pagamento deveria ter sido efetuado sexta passada, o que não ocorreu. Então, posso dar essa vaga para você, já que está com o dinheiro em mãos.

              - Ótimo, aceitamos! – vociferou Deni na minha frente.

              - Ei! – disse colocando meu braço em seu peito. – Vamos com mais calma! – meu tom foi um pouquinho bravo, mas alguém tinha que parar todo aquele poço de alegria. – Mas moça, se eu ficar com essa vaga, esse aluno aí... – apontei em vão para uma folha de papel que julguei ser a lista. - ...não vai mais poder ir no passeio? Vou roubar a vaga dele?

              Daniel me encarou com a pior cara do mundo. Penso que milhares de sinônimos para “louca” quiseram sair da sua boca.

              - Você não estará roubando vaga de ninguém. Você tem o direito de pegar este lugar, pois a pessoa não cumpriu com o combinado de fazer o pagamento na data estimada.   

             Demorei um segundo raciocinando. Mesmo assim achava que estaria roubando a vaga de alguém. Mas Daniel não me deu tempo de pensar muito além, pois logo percebi uma mão pegando um pacotinho entre meus dedos.

             - Ela vai ficar com a vaga. – disse ele dando o envelope com o dinheiro para a tesoureira. – Pode marcar aí, Melinda Dupon.

             A voz dele estava séria, sem tom algum de brincadeira. Parecia que alguém havia tocado em alguma ferida sua.

             - Você tem a autorização? – perguntou a mocinha, agora olhando para mim.

             E eu estava tão absorta na reação de Daniel, que agi mecanicamente, tirando um papelzinho dobrado de dentro do meu bolso e entregando para a moça.

             - Uhn... – murmurou ela olhando para nós. – Está tudo certo então Melinda. Agora é só esperar qualquer outro aviso da escola e aproveitar a viagem.

             Eu apenas assenti com a cabeça e agradeci. Daniel fez algo parecido e nós saímos da sala.

              - Você só podia estar brincando, não é? – não demorou nem dois segundos depois de termos saído da sala para Daniel me parar no corredor. – Ou você realmente iria deixar de ir à viagem por causa daquele detalhe?

               Eu não gostei muito do tom da conversa, então logo quis colocar um ponto final.

               - Espera aí, Daniel. – comecei. – Não era apenas um detalhe. Só quis me informar melhor se realmente a vaga seria minha porque de fato ela estava ali, ou então porque a moça ficou perplexa com sua vontade de me fazer ir nesta viagem que pegou a vaga de qualquer coitado e liberou para mim! – falei tudo de uma vez e antes mesmo dele ter tempo para me cortar, continuei. – Assim que vi que a vaga poderia ser ocupada, mesmo com o coração doendo, pois alguém que também gostaria de ir não poderia ir mais, eu ia aceitar a proposta, mas alguém não me deu tempo e já foi agindo por mim, sabe?  

               - Agindo por você? Eu só tornei as coisas mais ágeis! – retrucou um pouco inconformado. – Se você ia mesmo aceitar, não há motivo para você estar brava comigo!

               - Só gostaria de saber por que tanto você quer que eu vá nesta viagem? Só isso! – resmunguei cruzando os braços.

               - Oras... Você é a pessoa que eu mais converso em toda a escola... Achei legal que você fosse!

               - É só isso? – pressionei sem me contentar.

               - É!

               - Ótimo então... – murmurei e apertei minha passada.

               - Ótimo... – resmungou ele no mesmo tom, me alcançando e ficando em silêncio.

               Ficamos assim por quase todo o intervalo. Eu estava um pouco brava, pois nem a coisa mais simples do mundo ele queria me contar direito. Também sei que isso não era motivo para meu azedume e nem para o dele, mas acabamos o dia com poucas palavras, até o ônibus estar chegando perto de meu ponto.

               - Acho que já deu, não é? – começou ele do meu lado.

               - Já deu... O que? – fiz-me desentendida.

               - Essa briguinha idiota por nada! Vai, já está chegando na sua parada. Esquece essas besteiras, vai ser melhor. Amanhã eu passo na sua casa de novo.

               Eu não queria aceitar simplesmente ignorar os fatos, mas também não estava nem um pouco a fim de continuar naquele clima. Então me rendi com um sorriso.

               - Está bem... Está bem... – resmunguei. – Até amanhã então! – acenei e desci do ônibus.

              

                


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Notas finais do capítulo

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