A Confusão Mora ao Lado escrita por FrannieF


Capítulo 1
Parte 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/150711/chapter/1

Tudo parecia estar na sua mais perfeita ordem. O tempo visto da janela emperrada do quarto de Dougie mostrava um céu cadenciado de laranja e azul, típico de final de tarde, limpo. Sem qualquer nuvem, apenas calmaria e tranquilidade. O ar não estava carregado nem abafado (e Dougie agradecia em mente por isso), mas, ao mesmo tempo, sem também vento algum. A única expressão que o garoto poderia usar para descrever o que via da sua janela seria... “De uma beleza incomparável, sem explicações e precedentes”.

– De uma beleza incomparável e... O quê? – Danny indagou confuso, arqueando as sobrancelhas e olhando para seu amigo como se houvesse crescido uma terceira cabeça sobre seu pescoço. – Dougs, de que diabos você está falando?

Dougie simplesmente piscou os olhos, saindo de seu transe momentâneo para revirar o olhar na direção de Danny, o encontrando estirado sobre a cadeira de rodinhas ao lado de seu computador. Aquele que raramente era usado, já que Dougie nunca tivera a chance de fato de aprender a mexer na máquina sem que ela não travasse a cada cinco minutos ou desligasse sozinha (maldita tecnologia avançada demais para os seus pobres neurônios!).

Eh?

– Você precisa parar de sonhar acordado. – Danny lhe disse, ainda de sobrancelhas arqueadas, uma expressão divertida se espalhando aos poucos por seu rosto sardento. Logo um sorriso cheio de dentes anormalmente grandes e brancos invadiu seu rosto e ele, erguendo uma das mãos para sinalizar com o indicador um dos cantos da boca, continuou a dizer. – Posso até ver a baba escorrendo.

– Eu não estava sonhando acordado! – Dougie protestou com voz fraca, revirando os olhos mais uma vez, em uma ação claramente de desprezo. Os seus olhos se focalizaram no teto do quarto sobre a sua cabeça e ele os espremeu minimamente. – Só estava fazendo um comentário sobre o tempo.

– De beleza incomparável e “oh, pensando melhor, acho que sou uma garotinha”? – Danny continuou, ainda sorrindo de uma maneira ordinária. – Quando foi a última vez que checou dentro das suas calças mesmo?

– Daniel, por que você não bate a cabeça no monitor do computador até matar os seus míseros cinco neurônios e ter uma síncope logo de uma vez?

– Oh, uau. – Danny gargalhou e girou ainda sentado sobre a cadeira de rodinhas de volta para frente do computador de Dougie. Os seus dedos logo subiram para o teclado da máquina e, em menos de cinco segundos, o quarto se encheu de vários “tec-tec’s” repetitivos e ligeiramente irritantes. – Ficou pensando nessa durante quanto tempo? Dez minutos?

Dougie soltou uma risada nasalada antes se erguer pelos cotovelos de sua cama, fazendo com que ela gemesse ruidosa e cedesse um pouco com o seu peso. O garoto então saltou em pé e caminhou até o amigo de uma maneira felina, como se o ruivo nem ao menos estivesse prestando atenção em seus movimentos – afinal, qualquer coisa que ele mexia no computador, parecia estar realmente interessante – antes de dar o bote. Com um grito agudo de guerra (desde quando a sua voz podia alcançar uma oitava acima de seu tom normal mesmo?), Dougie atacou Danny pelo pescoço, enroscando seus braços em torno dos ombros do outro, o chacoalhando de um lado para o outro.

– Eu aposto que você nem sabe o que é “síncope”. – ele protestou antes de erguer a cabeça, ao lado da do amigo, e os olhos para a tela do computador à sua frente. Logo as suas sobrancelhas se franziram, em uma expressão puramente confusa, e Dougie nem ao menos processou direito o que constatou em seguida, com a voz aguda e engraçada. – E você está vendo sites pornôs no meu computador.

– Hey! – Danny se remexeu desconfortável, cutucando os braços do amigo para fazê-los se afastarem de alguma forma. – Eles podem ser educativos também!

– Se você quiser saber como fazer sexo com um... Pepino? – Dougie espremeu os olhos mais uma vez e aproximou o rosto da tela do computador, um tom claramente confuso em sua voz enquanto ele tentava em vão descobrir o objeto verde usado pela garota no vídeo pornográfico. – Hey, Danny, ou isso é mesmo um pepino ou é algum tipo de versão alienígena de um pê–

Dougie não demorou a se privar de falar qualquer outra coisa no mesmo instante em que, em uma intervenção celestial, o volume do vídeo simplesmente pareceu aumentar sozinho, preenchendo o ar do quarto com gemidos, ofegos e “pop’s” obscenos – além de outras onomatopéias embaraçosas. Dougie se engasgou em sua própria saliva e afastou o rosto, corado de vergonha, da tela do computador, subindo as mãos até a sua visão enquanto murmurava repetidamente algo muito parecido como “a minha inocência foi traumatizada para sempre”, se arrastando molemente de um lado para o outro. Danny se permitiu apenas rir – aquela mesma risada escandalosa e alta demais – enquanto sem sucesso arranjava um jeito de abaixar o volume do vídeo.

Depois de alguns xingamentos (contundentes, da parte de Dougie, e divertidos, da parte de Danny), tudo pareceu cair novamente em sua mais perfeita ordem. Os dois caíram então em um silêncio confortável, um continuando a sua caça por pornografia de graça na internet e o outro espalhando diversas folhas de papel avulsas sobre a sua cama, entre rabiscos e letras inacabadas de músicas que nunca seriam feitas propriamente dito.

O que Danny e Dougie não esperavam, no entanto, fora o barulho absurdamente alto que reverberou pelo corredor do 13° andar do prédio, fazendo com que os dois afastassem a atenção daquilo que faziam há poucos minutos. Dougie arqueou as sobrancelhas antes de encaixar a caneta Bic na dobra de uma das suas orelhas e se erguer mais uma vez da cama enquanto Danny simplesmente girou sentado sobre a cadeira de rodinhas, curioso.

– Não fui só eu que ouvi isso, certo? Ou então você está tendo sérios problemas de audição.

– Cale a boca, dentuço. – chiou Dougie, escapando pelo vão da porta de seu quarto e avançando pelo corredor em direção da sala de sua casa, por algum motivo se movendo nas pontas dos pés, tão curioso quanto Danny. O seu coração deu um salto contra a sua caixa toráxica quando outro ruído, tão alto quanto o primeiro, ecoou pelo 13° andar novamente, imponente. Ele, receoso, se permitiu apenas murmurar, entre dentes. – Que merda está acontecendo aí fora?

Sem que Dougie percebesse, Danny o alcançou em uma rapidez impressionante, agarrando um de seus braços para puxá-lo para trás em um impulso grosseiro. O corpo do garoto, por reflexo, se curvou para trás e os seus pés se embolaram um no outro, o fazendo tropeçar de volta até Danny, a caneta encaixada na dobra da sua orelha caindo no chão com um barulhinho surdo. Dougie ergueu o olhar irritado até o amigo e agitou as mãos bobamente ao lado da sua cabeça, em uma pergunta muda sobre o que diabos o ruivo estava pretendendo fazer. Aproximando o rosto sardento com algum receio, Danny cochichou para o amigo, completamente sério:

– E se for algum ladrão tentando invadir o apartamento ao lado? Os seus vizinhos são novos, não são?

– E o que isso tem a ver? – Dougie lhe cochichou de volta, ainda irritado, fazendo força para soltar o braço do apertão de Danny. – Um ladrão nem iria conseguir entrar no prédio sem ser notado ao menos pelo porteiro!

Danny automaticamente caiu em silêncio. Ele olhou para os lados, os olhos azuis escaneando toda a área da sala da casa de Dougie antes de finalmente lhe soltar o braço com um suspiro derrotado. Dougie agradeceu quietamente, apesar do tom ainda irritadiço em sua voz, massageando o braço machucado com as pontas dos dedos.

– Então você acha que é o quê?

– Eu estava tentando descobrir isso agora, sabe. – Dougie revirou os olhos antes de crepitar pela porta de entrada de sua casa, a entreabrindo com um ruído arrastado enquanto ignorava as súplicas patéticas de Danny sobre “tomar cuidado com o ladrão” ou coisa parecida (Dougie não se preocupou em escutar muito bem ao amigo).

A sua segunda surpresa viera quando ele avistou, parado ao lado de fora da porta do apartamento adjacente ao seu, um garoto com mais aparência de mendigo do que ladrão. Dougie não se conteve, obviamente, em analisar o estranho desde as pontas de seus pés até o final da sua cabeça, recaindo seu olhar curioso sobre a figura à sua frente. O estranho vestia calças jeans sujas e rasgadas na região dos joelhos, deixando quase um palmo das suas roupas íntimas à mostra – fazendo Dougie desviar envergonhado seu olhar e se concentrar em qualquer outro aspecto do desconhecido. O moletom que vestia estava tão sujo quanto as suas calças, as listras pretas e brancas da peça de roupa de uma cor encardida e amarelada. O capuz listrado escondia de Dougie qualquer expressão facial do estranho, o que só fazia com que o garoto se enfezasse cada vez mais com a silhueta desconhecida parada à sua frente.

Virado de perfil para Dougie, o estranho calmamente ergueu uma das pernas de jeans rasgados para chutar a porta do apartamento ao lado com um baque surdo. Ele agia de uma maneira tão natural que Dougie chegou a se convencer por um momento de que sair por aí chutando portas das casas dos outros não era nada fora do normal.

Um quarto baque se procedeu. E um quinto. E um sexto.

Um eco contínuo e arrastado aos poucos foi se espalhando pelo corredor do 13° andar, em um tom sempre altivo e quase ensurdecedor. Dougie pôde ouvir, perdido no fundo da sua mente, um insulto vago vindo de algum dos apartamentos de andares abaixo do seu, mas a sua atenção em momento algum se desviou do desconhecido. Por algum motivo, ele simplesmente não conseguia desviar o olhar.

O estranho então desistiu de tentar arrombar a porta do apartamento depois da sétima ou oitava tentativa. Silêncio. Os ecos aos poucos foram se perdendo no vazio do corredor. Tudo pareceu congelar – como se alguém tivesse apertado o “pause” daquela cena.

Então o estranho estava o olhando de volta. Os seus olhos estreitos e penetrantes pareciam analisar Dougie de uma maneira ameaçadora e extremamente tranquila ao mesmo tempo. E aquilo só fez com que o garoto se sentisse desconfortável, incômodo, incerto. Amedrontado.

– Hey, Doug, o que é que–

Danny cortou sua própria frase no instante em que pisou no corredor do andar, passando o olhar abobado de Dougie para o desconhecido e de volta para Dougie em seguida. Algo na sua expressão facial pareceu mudar subitamente e ele, agitado, se voltou para Dougie, erguendo as mãos para os ombros do amigo de uma forma protetora.

– Eu te disse que era um ladrão! E ainda por cima um mendigo! Ele vai querer nos matar, mas eu vou tentar distrair o cara e aí você corre! – murmurou o ruivo, ainda muito agitado.

Dougie simplesmente rolou os olhos antes de apontar um dedo longo para o desconhecido, que já havia desviado a atenção para os bolsos da sua calça, aparentemente à procura de algo.

– Eu não acho exatamente que ele é um ladrão, Danny. – Dougie murmurou de volta, soando aborrecido. – Eu quero dizer, se fosse, ele já teria feito alguma coisa comigo, não?

Danny partiu os lábios para protestar mais uma vez, mas uma nova voz ecoou pelo corredor, fazendo com que Dougie e Danny instintivamente levantassem o olhar até o desconhecido.

– Eu estou aqui em frente de casa. O quê? Quatro horas até você chegar? – o estranho perguntou em uma entonação baixa e irritada de voz, pressionando o telefone celular contra uma das suas orelhas; as juntas dos seus dedos se tornando brancas aos poucos. – No inferno que eu vou passar quatro horas aqui te esperando, plantado feito um babaca.

Danny, sem muita reação, levou o olhar até o de Dougie. O loiro, quietamente, simplesmente retribuiu ao olhar, com receio de dizer qualquer outra coisa que pudesse irritar ainda mais o desconhecido – agora não mais tão desconhecido assim, já que aparentemente o garoto era seu vizinho. Mas aquilo simplesmente incomodava Dougie. Como ele nunca havia visto o estranho pelo prédio antes?

– Eu não tenho culpa se cheguei antes. O que você quer dizer com “se você não fosse um vagabundo, estaria fazendo algo”? – a voz do desconhecido ecoou aos poucos pelo ar agora carregado do corredor. Danny e Dougie ainda continuavam imóveis. – Eu não vou discutir isso com você de novo. Já te disse o que vou cursar e nem você nem mais ninguém vão me mudar de ideia. Entendido? Agora eu preciso da porra de uma chave para entrar na porra da minha casa e dormir na porra da minha cama.

Dougie estremeceu. Os pêlos dos seus braços se eriçaram. Ele nunca havia escutado uma voz parecida como aquela. De um tom baixo, mas ao mesmo tempo impositiva e ameaçadora. Dominante e rouca. Arrastada – talvez o estranho estivesse drogado ou alcoolizado – e intimidante.

Danny cutucou o amigo nas costelas com o cotovelo, quietamente. Ele fez um sinal mínimo com as mãos antes de puxar Dougie pelo braço mais uma vez, fazendo menção em voltar para o apartamento do loiro, mas Dougie não conseguia se mover.

– É, claro, como se você se importasse muito, mãe. – continuou o desconhecido, totalmente alheio a Dougie e Danny. Ele lhes deu às costas sem cerimônias, apertando um pouco mais os dedos em torno do celular, parecendo realmente irritado. – Olha só, eu vou esperar aqui, ‘tá certo? Pare de gritar comigo, caralho, eu não sou a porra de um–

E então o estranho simplesmente parou de falar. Danny, sem sucesso, ainda tentava puxar agitado Dougie de volta para o seu apartamento, mas o amigo parecia não estar em nenhuma condição de ajudar.

– Filha de uma puta, desligou na minha cara... – resmungou o desconhecido antes de se atirar sentado para perto da porta de seu apartamento. Subitamente reparando não estar sozinho no meio do corredor, ele ergueu o olhar para Dougie e Danny, abrindo um sorriso ordinário logo em seguida. – E o que as duas moças então fazendo plantadas aí?

Dougie estremeceu novamente. Aquela voz rouca e aquele olhar... Aquele olhar penetrante, com um toque de diversão... Ele simplesmente não conseguia lidar com aquilo.

– Hey, Doug, vamos entrar... – Danny soou aborrecido, o puxando tão forte pelo braço que Dougie chegou a tropeçar e quase cair no chão ao lado do amigo.

O estranho continuava a observá-los, parecendo se divertir muito com a cena. O seu rosto estava de uma aparência encovada e cansada e somente depois que esse pensamento passou pela mente de Dougie que ele percebeu o quão magro o garoto sentado à sua frente era. Apenas um bocado de carne e ossos. Talvez, se não fosse pelo olhar intimidador e o sorriso sarcástico, o desconhecido poderia aparentar ser um garoto de fato. Mas aquela pessoa... Simplesmente não era. Não somente pela sua plástica facial, mas o modo de agir, o modo de falar e o modo de tratar os outros... Dougie viu refletida no estranho a imagem de alguém amargurado, azedo, solitário.

E ele sentiu pena. Uma dor aguda no coração e pena.

– Dougie! – Danny o sacudiu. – Vamos embora!

– É, Dougie, ouça seu amigo. – o seu nome rolou pelos lábios do estranho de uma forma suja e simplesmente errada. Aquilo fez com que Dougie sentisse todo o almoço triturado no seu estômago querer subir de volta para a sua garganta.

O loiro tossiu e então desviou o olhar, enjoado, arrastando Danny para dentro de seu apartamento em uma velocidade impressionante. Com um ruído mínimo, o garoto encostou a porta do seu apartamento e a trancou – mais por precaução do que por receio de fato. Ali, encostado à porta de madeira de sua casa, com Danny lhe enchendo preocupado de perguntas, Dougie só queria que aquele calafrio e aquela sensação de vômito passassem o mais rápido possível.

Ele não fazia a mínima noção de quem era o garoto sentado à sola do apartamento ao lado, mas de uma coisa Dougie tinha certeza: ele não tinha nenhuma pretensão em conhecê-lo.

TBC.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Confusão Mora ao Lado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.