Além da Sedução escrita por forsyth


Capítulo 3
Capítulo 3




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Hoffmann  &  Kauffmann Associados

Foi com muito controle e força de vontade que me impedi de ligar ontem.  Minha segunda tenebrosa no escritório de ações começava mal. O mau humor  dos diretores, o desempenho da empresa, o mercado instável do outro lado do mundo logo pela manhã e minha falta de sexo no final de semana eram motivos suficientes para acabar comigo.

Norberto entrou em minha sala reclamando dos prazos e do acúmulo de funções. Jogou desanimado pastas com  currículos dos futuros estágiários na empresa. Isso sim me deixou rir a toa, não precisava fazer isso. Entrevistar era uma merda. Tedioso.  Ele pediu para ajudá-lo pegando ao menos um nome dos três. Neguei e continuei tomando meu café e vendo as noticias na CNN. 

— Ah cara, qual é? Você ajudou Fagundes na semana anterior. Custa nada me ajudar hoje.

 — Tá bom, eu ajudo — disse com pena do rapaz. Norberto era legal e bom de cama, merecia uma ajudinha. — Fico com apenas um ok? Ele ficou feliz e deixou tudo para eu ver e escolher saindo em seguida.

Olhei as pastas em cima da mesa e não mexi. Quando ele retornasse pegaria qualquer uma e pronto.  Fiquei encarando o telefone e pensando se ligaria ou não. Já era quase hora do almoço, quem sabe ele iria comigo? Liguei e  esperei. Esperei mais e quando a linha parecia que cairia na caixa postal uma voz sonolenta e rouca dizia um "alô" acompanhado de um bocejo.  Uma voz ao fundo se fez ouvir e talvez fosse do tal Denis, o que me provocou uma raiva imediata.

— Ligou só para ouvir minha voz ou é algo relevante? Alias quem é?

— O cara que você insiste em esnobar ligando para te convidar para almoçar. Aceita?

O silêncio na linha era esperado por mim. Talvez ele pensasse de quem se tratava mas então ele lançou uma pergunta preocupada. 

— Almoçar? Que horas são? — perguntou retoricamente claro, porque depois voltou rapidamente a falar — Não acredito nisso... Não sei quem é mas valeu por ligar.

E desligou assim sem mais nem menos. O que ele queria dizer com "valeu por ligar?".  Tentei canalizar minha raiva absurda para o candidato que entrevistaria. Coitado não tem culpa mas descontarei minha fúria mesmo assim.  Comecei a selecionar as pastas e na terceira minha boca se abriu e fechou de tanto espanto, para logo um sorriso surgir.

— Ahá... Carlos Eduardo M.  O'Donnell, estudante do último ano de economia.  Ficha impecável,  grande chances de entrar mas meu lado vingativo ameaçava surgir. — Entrevista agendada dentro de.. — olhei meu relogio — ..uma hora e meia. Que interessante.

Norberto retornou e devolvi as outras pastas dizendo com quem ficaria  e ele todo satisfeito agradeceu anotando para a recepção. Eu também estava satisfeito.

***

A porta de minha sala se abriu e ele entrou.  Preciso acrescentar o quanto ele estava gostoso naquele terno? Segurei  a muito custo o impulso de levantar e ir até ele, o jogar  em cima da minha mesa e arrancar suas roupas.  Só de imaginar a cena fiquei tenso.

— Não é possível... — ele murmurou com cara de poucos amigos — ...você?  Minha entrevista seria feita pelo senhor Norberto Cirelli.

— Mudança de planos. Mas se não quer  o estágio a porta é serventia da casa. Então?

Falei o mais fria e profissionalmente possível diante das circunstâncias e do meu desejo  de atacá-lo.  Ele considerou por instantes e então fechou a porta. Boa escolha.

— Como sabia que eu por acaso não sou o Norberto? Não há nomes na porta.

Ele sorriu e sentou de frente para mim.  Inclinou ligeiramente para a frente antes de responder olhando fixamente com aquele mar azul que me deixava mais tenso ainda e com vontade de beijar aquela boca.

— Eu conheço o Norberto. Se é que compreende...

Sim, eu compreendi e não gostei.  "PORRA garoto me diga com quem ainda não dormiu é mais fácil. Ah sim, sou o único excluído da lista", pensei controlando a raiva.  Meus amigos, agora meu colega. Quem mais falta aparecer? Ele pareceu notar meu estado e seu sorriso permaneceu um pouco mais. Recuperei minha calma interior e reiniciei a conversa.

— Pena ele não poder te ajudar então. 

— Não preciso de ajuda dele, sei que sou capaz caso seja aceito.

— Ótimo — respondi enquanto abria sua pasta  — Tem bons referenciais, boa faculdade, último ano e aluno exemplar mas.. — fechei a pasta e o encarei sério, da maneira que tratava qualquer concorrente  — Me convença do porquê deveria contratá-lo, visto que existem muitos com as mesmas qualificações que você e apenas uma vaga.

Seu sorriso sumiu e deu lugar a uma expressão fria de jogador de pôquer. Gostei da mudança, ele era apto a se adaptar a situações de negócios.

— Tenho interesse nos mercados de futuro, a Hoffmann e associados é grande no ramo apesar da crise atual além do que estudei o histórico da companhia e sei dos seus defeitos e virtudes. Meu interesse não é em qualquer empresa de ações mas especificamente esta porque em breve haverá fusões e isto é interessante.

 "Ok, garoto esperto.." pensei admirado. Além de bonito era inteligente e sabia ser profissional.  O massacrei com umas perguntas capciosas e ele se saiu bem. Provou que conhecia sobre o que discursava o que é algo raro, muitos candidatos fingem mas  ele não. Confesso que gostei e muito dele. O contrataria sem nenhum motivo escuso além da sua extraordinária capacidade. No fim, minha conduta profissional se sobrepôs a qualquer exigência de meu ego. O dispensei dizendo que a resposta sairia em breve mas antes precisei fazê-lo descobrir outra coisa.

— Fez bem em dispensar o almoço mesmo sem saber de quem se tratava.

Ele franziu a testa e depois ficou surpreso e iria fazer uma pergunta mas fechei a porta indicando a recepção e desejando boa sorte. Não acho que precisaria ir mais a lugar nenhum além do trabalho para ter a vantagem de ficar perto dele e isso me deixava com idéias.

***

— Adivinha quem é o...

— Novo estagiário? O'Donnell — respondi sem hesitar.

— Já viu ele no departamento? — Marcelo perguntava inconformado.

— Eu o entrevistei.

Meu amigo jogou-se no sofá ao lado da minha mesa e desandou a fazer perguntas. Não respondi nem a metade.

— Isso faz três dias e você não disse nada?

 — Desde quando falo de trabalho contigo?

— E desde quando ele é assunto de trabalho?

— Desde que entrou para a empresa. Agora dá licença que tenho mais o que fazer.

"E como tenho", meu sorriso denunciou minhas intenções porque Marcelo começou a rir sozinho estirado no sofá. Saí da sala e fui a procura do departamento onde enfiaram o estagiário gostoso.  Tarefas ingratas e sem graça são impostas a estes coitados e com "irlandês" não foi diferente.

— E ai? Se divertindo muito?

—  Até aqui vai me perseguir? Me esquece! —  falou mau humorado, empilhando um monte de pastas empoeiradas nas estantes.

Ele estava tão bonito e sexy com aquela gravata afrouxada, cabelos meio desarrumados pelo esforço que fazia ao ajeitar as caixas na mesa, com a camisa arregaçada até os cotovelos e o rosto vermelho pelo calor. Uma visão altamente excitante.

 —  Parece que você vai levar anos para terminar isto —  provoquei com meu melhor sorriso arrogante.

—  Não, eu já acabei —  ele respondeu com um sorriso mais arrogante ainda e ar satisfeito —  Agora dá licença que tenho mais o que fazer do que ficar conversando com você. —  disse pegando seu paletó e indo para a porta.

—  É verdade, tem mesmo.

O peguei pela cintura e tranquei a porta que se abria  prensando seu corpo nela e  beijando aquela boca macia evitando que pensasse demais e saísse dali.  Fazia três dias que me segurava para não agarra-lo pelos corredores durante o trabalho mas não aguentei mais esperar o final da semana. Era torturante ter ele tão perto de mim e não poder tocar.

—   Chega, se afaste! —   ele resmugou comigo ainda um pouco surpreso  pela minha atitude —   Isso é assédio sexual sabia?

—   Aham —   e voltei a segurar seu corpo de encontro ao meu e beijei novamente com mais vontade e ele cedeu.

Foi muito bom sentir de novo o gosto dele e suas mãos em meus cabelos nos aproximando mais e meu desejo era arrancar as roupas dele mas não podia fazer isso ali, o que me deixava frustrado e com tesão ainda maior pois ele começou a se esfregar em mim enquanto me beijava, fazendo eu ficar duro com beijos, gemidos e o contato rápido de seu corpo. Estava prestes a mandar a merda a discrição profissional e jogar ele no chão para realizar minhas fantasias quando parou de me beijar e sorrindo, olhou para baixo e viu meu estado

. —    Nossa, você tem um problema aí.. —    disse murmurando no meu ouvido e passando a mão o que me fez quase pular em cima dele — Mas não posso te ajudar. Você recusou a unica noite.

E dizendo isso saiu rapidamente dos meus braços, me empurrou de lado e saiu rindo. Eu queria matar aquele garoto.  Como pode fazer isso comigo? Nem minha raiva imensa foi capaz de me fazer broxar, tive que apelar para o metodo antigo e famoso "cinco contra um".  Eu iria me vingar dele.   

 ***

 — Nossa que humor!

Cruzei com o Marcelo pelos corredores para chegar na minha sala e ignorei seus comentários que eram acompanhados de risos e "você consegue" que quase me fizeram matar o infeliz. Para piorar, vi um acumulado de ações e contratos para assinar e revisar que eliminou de vez meu humor. Ficaria preso no escritório nas intermináveis horas extras para deixar tudo arrumado para amanhã.  Me deixei cair derrotado em minha cadeira, olhando a pilha de papéis sem a mínima vontade de mover um dedo quando idéias se formaram.

— Ah, garoto..

Mais que depressa levantei  e fui atrás do supervisor dos novatos. Expliquei o que precisava e ele disse somente um : "sem  problemas chefe". Voltei para minha sala e esperei. A vingança seria ótima. Já terminava de rever meus contratos e o relógio marcava 21:00 quando minha porta se abriu bruscamente e um O'Donnell furioso entrava com pastas e um humor assassino. Adorei.

—  Isso é culpa sua né?

—  O que?

 Fingi de inocente e ele surtou comigo. Jogou as pastas em cima da mesa e se debruçou, apoiando as mãos na borda e aproximou seu rosto do meu com os olhos faiscando de raiva. Ficava lindo furioso.

—  Me fez ficar para hora extra até agora, preso em um monte de papéis inúteis mas que precisava arquivar ou seria expulso do estágio.

—  Não sei do que fala, porém fez um belo serviço —  olhei admirado a organização e assoviei o que o irritou mais ainda e ri  —  Ora, serviços subalternos faz parte do trato. Acostume-se.

Ele saiu da sala pisando duro e fechando a porta com estrondo e fui atrás. Já tinha terminado tudo e o encontrei esmagando o botão do elevador. Fiquei do seu lado e ele bufou de raiva e puxei assunto.

—  Veja pelo lado bom. Você não ficou sozinho até agora, ainda estou aqui também.

—  É, estou vendo. E deu um jeito de me deixar junto.

 Comecei a rir e entrei  com ele apesar de sua fúria e sua tentativa de me deixar de fora. Infantil. Mas eu achei engraçado.  Cruzou os braços e se encostou na parede longe de mim e minha vontade de agarrar ele ali dentro aumentou mas com as câmeras ligadas ficava dificil. Maldita era Big Brother. O elevador deu um solavanco inesperado assustando nós dois e de repente as luzes se apagaram para acender segundos depois a iluminação de emergência. Estávamos presos no trigésimo andar.

 — Não acredito nisso! — ele surtou e tentou o celular mas não tinha sinal.

— O meu também não dá sinal — falei desanimado.

— O que fazemos?

— Esperamos. Você não é claustrofóbico é? — perguntei preocupado com sua cara de pânico e ele acenou um "não" pouco convincente. — Ok, se acalme.

Tentei o botão de emergência para falar com a manutenção. A voz que atendeu disse que o blackout era talvez por conta da chuva. Os geradores não tinham energia suficiente para os elevadores portanto precisaríamos esperar.

— Posso tentar os bombeiros.— o homem que atendeu dizia com tédio na voz — Mas acho que vai demorar do mesmo jeito.

Desliguei e vi ele sentado no chão, com a cabeça apoiada entre os joelhos. Sério que estava passando mal?  Me ajoelhei de frente para ele e toquei em seus cabelos, o fazendo erguer o rosto para me encarar. É, ele não estava bem.

— O cara da manutenção vai ligar para os bombeiros, talvez eles cheguem antes da luz. De qualquer maneira precisamos esperar. Você tá bem?

 — Não muito. Não sou exatamente claustrofóbico mas lugares mínimos me deixam nervoso. — dizia com as mãos trêmulas e o suor escorrendo na testa.

Falhou na tentativa de afrouxar e retirar a gravata e fiz isso por ele que fechou os olhos e encostou a cabeça na parede.  Retirei meu paletó também porque estava quente ali com o ar condicionado ligado no mínimo por causa das luzes emergenciais.  Sentei do lado dele e procurei distraí-lo.

— Então como está sendo estagiar aqui? Gostou?

— Fora o fato de você me perseguir pelos corredores, me agarrar  quando tem oportunidade e se vingar depois acho que está tudo ok — respondeu  se ajeitando melhor e colocando o paletó embolado como travesseiro atrás da cabeça.

 — Desculpe, não pude evitar.

— Sei...— disse distraído e fechando os olhos novamente.

O elevador deu mais um solovanco forte e parecia estar deslizando para baixo devagar mas parou tudo depois de uns segundos. Ficamos calados, olhando um para o outro e vi o pânico de novo nos olhos dele e sua respiração ficar ofegante.

 — O que foi isso?

— Não sei. Os freios devem estar com sobrecarga, vai saber?

Comentei pensando no desastre que seria e me arrependi em seguida porque ele ficou mais asssustado com a possibilidade remota da gente se espatifar no ultimo andar lá embaixo. Apesar da pouca luminosidade do ambiente era possível ver sua expressão de medo e o abracei. Ele não resmungou ou afastou, somente encostou em mim e fechei meus braços ao seu redor.

— Logo as luzes voltarão e a gente saí daqui — dizia mais para acalmar ele do que acreditando nisso — E você poderá me xingar a vontade por ter deixado você preso comigo.

Ele ficou em silêncio e  suas mãos se fecharam em minha camisa.  Fiquei quieto acariciando seus cabelos e mesmo nesta situação ruim, vi o lado bom. Pude ficar perto dele e sentir seu perfume, não queria admitir mas começava a apreciar cada minuto que pudesse ter a chance de tocar nele. Uma das luzes se apagou deixando o local mais escuro e ele se remexeu nos meus braços. Ergueu o rosto para olhar ao redor e depois me encarou com expressão angustiada. Queria muito poder tirá-lo  e acabar com isso mas não podia. Pela primeira vez na vida desejava algo que não era para mim e parecia que não seria atendido.

—  A luz apagou —  ele disse numa voz sumida que me fez ter vontade de abraçar mais forte para proteger —  Vamos ficar no escuro?

—  Não, acho que não. O sistema daqui economiza ao máximo para atividades essenciais então devem ter apagado uma para funcionar por mais tempo o restante.

—  Como sabe disso?

—  Todos os executivos são treinados para situações assim. Esta companhia tem um rígido sistema contra atos terroristas por ser multinacional alvo de ações extremistas  lá fora. Caso tenha atividades estranhas, como queda de energia,  as saídas e elevadores param como agora.  Achei que sabia tudo sobre a Kauffmann.

 —  Sou temporário, isto eles não divulgam ao público.

Seu tom familiar de irritação surgiu o que me provocou um sorriso idiota. Ele esqueceu por instantes onde estava e isso era bom. Afastou-se de mim e deixei, lamentando mas deixei. Remexeu nervosamente nos cabelos os bagunçando mais ainda e respirou fundo.

—  Está melhor?

—  Defina o melhor.

 —  Está ótimo, já voltou a ficar mau humorado comigo.

Ele sorriu, não da maneira sarcástica usual que mostrava comigo e fiquei feliz. Essa paz aparente durou pouco porque contrariando minhas expectativas e conhecimentos, o elevador moveu mais do que anteriormente.

—  Diga que isso é previsto —  ele pediu preocupado.

Não disse nada e ele fechou os olhos apoiando a cabeça nos joelhos. O solavanco maldito aumentou de intensidade e até eu fiquei preocupado em virar patê. A luz que deveria permanecer acesa se apagou e ficamos no breu quase total, somente as pequenas luzes vermelhas no teto ficaram ligadas. A nossa descida parecia ter aumentado a velocidade ou era meu medo que aumentava as coisas mas a cabine voltou a tremer  e estendi minha mão para ele que a pegou e o puxei para perto de mim. O abracei e ficamos juntos, sua respiração falha próxima do meu ouvido mostrava o quanto estava assustado com tudo. O negócio parou novamente de repente e respirei aliviado.

— Será que agora vai parar?

— Não sei  — sussurei em resposta, sendo honesto.

Quando nos afastamos um pouco o movimento recomeçou e ele surtou de vez, respirando com dificuldade.

— Vamos morrer esmagados.

— Não vamos, pare com isso!

Disse tão assustado quanto ele mas sem admitir.  Um de nós deveria manter a calma então que fosse eu né?  O deslizamento parecia continuar e continuar, e o som dos freios se fez ouvir alto dessa vez desesperando ele que segurou em minha camisa.

— O que tá acontecendo?

— Não sei.

— Meu deus, meu Deus... — disse mumurando —... não aguento isso..

 — Calma. O elevador vai parar.

— Não vai e não consigo parar de pensar nisso. Estamos ferrados.

Ele estava pirando com a situação e eu não sbaia mais o que fazer para ele parar de sofrer de crise de pânico. Fiz então a única coisa que podia para fazê-lo esquecer que estávamos caindo, ou parecia que caíamos.

— Esqueça, se acalme.

 — Não consigo.

— Vou te fazer esquecer da única maneira que funciona comigo.

— Qual? — perguntou prestando atenção em mim pela primeira vez desde que começamos a deslizar devagar para o poço lá embaixo.

O peguei pela nuca e o beijei forte o abraçando. Ele resistiu um pouco mas depois se envolveu e colocou seus braços em meu pescoço e correspondeu. Apesar de tudo, beijá-lo era a única coisa que me faria esquecer onde estava ou o que nos esperava caso algo desse errado. A mesma sensação de desligamento que experimentei na boate quando o beijei pela primeira vez retornou mais forte. Assim como antes, era como se apenas nós dois existíssemos, o resto ficava irrelevante. 

 A cabine tremia e descia mais rápido. Eu o abracei mais forte nos mantendo unidos durante o beijo enquanto as coisas pareciam desmoronar em nosssa volta. Um golpe brusco balançou o elevador sob nossos pés e então tudo parou de repente, apenas um alto zunido dos freios lá fora se fez ouvir e depois o silêncio.  Abrimos os olhos e vi ainda vestígios de medo naqueles orbes azuis. Seus lábios se separam dos meus lentamente e as fracas luzes piscaram para logo em seguida inundar o ambiente de luz. O tranco suave da cabine indicava que o elevador voltava a seu curso normal. Um alívio percorreu meu corpo e notei os indicadores dos andares que anunciavam que descemos em quase queda livre uns 20 andares restando somente 10 para o final.

—  Vamos  descer no próximo andar e ir pelas escadas. A energia pode acabar novamente.

—  Ok —  disse ainda abraçado comigo.

As portas de abriram e o ajudei a sair, peguei  minha maleta e o puxando pela mão andamos até  o acesso as escadarias  de incêndio.  Nisso as  luzes piscaram para outra vez se apagarem, restando somente os sinalizadores de emergência.

—  Droga —  ele resmungou e apertou minha mão.

—  Só mais um pouco e estaremos no estacionamento.

Abri a porta e a suave luz do luar filtrava-se pela janela do patamar do lance de escadas. Cheguei perto para observar o mundo lá fora na escuridão, salvo uns pontos luminosos correspondentes aos outros prédios comerciais, tudo até mesmo ao longe era completamente escuro.

—  Pelo menos a chuva parou.

Eu disse refletindo em voz alta, preocupado com o caos que seria o trânsito a esta hora. As mãos dele pousaram em meus ombros e desviei a vista da janela para ver seu rosto.  Parecia envergonhado por demonstrar medo.

 —  Obrigado —  disse ficando com o rosto rosado.

Mesmo naquele momento, era possível notar sua súbita timidez. Nem o blackout foi capaz de esconder isso. Como nada falei, ele ficou mais vermelho

. —  Pelo que?

 —  Por me fazer esquecer e não deixar eu surtar mais do que o necessário lá dentro.

 —  Funcionou?

 Ele acenou um sim indeciso e minhas mãos ganharam vida própria . Quando notei já estava o beijando de novo e ele me abraçava. Acho que nunca consideraria a coisa mais normal do mundo o que eu experimentava  quando o beijava. Seria algo assim que sentia os que se apaixonavam? De qualquer maneira era algo diferente, estranho e bom. E também dava medo.

— Acho que devemos continuar a sair daqui .. — ele disse me afastando um pouco e eu voltei a beijá-lo  — Sério, precisamos ir embora — ele riu e parou de me beijar saindo dos meus braços.

Frustrado com a interrupção mas querendo manter entre nós a paz conquistada com o incidente do elevador, o guiei pelas escadas segurando em sua mão e caminhamos em silêncio.  No térreo havia mais luzes acesas e o estacionamento tinha vários blocos, porém a parte mais afastada onde os estagiários geralmente usavam tudo estava bloqueado pela água sendo perigoso se aproximar.

 — Não acredito!

— A chuva estava forte hoje.

O funcionário responsável saiu de seu posto e veio até nós, olhando na direção dos carros abandonados lá longe. Meu querido estagiário rogava pragas a São Pedro ainda inconformado.

— Venha, eu te levo.

— Você teve sorte, a sua vaga foi a única que se salvou  — o senhor comentava admirado.— Amanhã o guincho vai ter muito trabalho aqui.

Olhei e realmente, o meu carro estava lindo, brilhante e seco do jeito que o deixei pela manhã. Por instantes meu coração se apertou só de imaginar ele nadando como os outros. Tenho uma séria ligação emocional com ele ok?

Resisti ao impulso de fazer como o Dean Winchester, que beijava o capô de seu amado impala. O "irlandês" ainda resmungava bravo com sua sorte. Liguei o carro e vi que já era tarde mesmo, ficamos presos quase duas horas e agora o relógio marcava  23: 30.  Eu queria rir da reação nervosa dele que o deixava mais sexy porém meu instinto de auto preservação gritava para ficar calado. E meu estômago dava sinal de vida.

— Está com fome também? — perguntei e ele desviou os olhos da janela.

— Por quê?

— Porque conheço um local aberto 24 horas, faça chuva, sol ou tenha blackout e poderemos comer alguma coisa ótima.

Como quem cala consente, nos levei para um local que costumava ir quando queria pensar ou somente ficar sozinho e inacessível a amigos abelhudos do tipo Marcelo. Além de eventualmente jogar conversa fora com  Sócrates o dono da cantina que costumava frequentar. 

 —  Mercado Municipal, sério? —  ele perguntava incrédulo ao olhar para o caminho que eu fazia.

 —  Tem um ótimo espaço gourmet, vai gostar.

Chegamos e fui logo aos boxes onde ficavam a ala gourmet, o lado mais refinado que tinha a cantina mais espetacular que havia conhecido por acaso e se tornou um dos meus lugares preferidos desde adolescente.

—  Me trouxe para um sanduíche de mortadela? —  ele perguntou sorrindo e andando do meu lado.

—  Não, mas se quiser pedir um fique a vontade. Só espere para ver as opções do Sócrates.

—  Quem?

Não tive tempo de responder porque o senhor de cabelos grisalhos e bem animado já vinha nos recepcionar com seu típico jeito italiano de ser. Ele me abraçou efusivo e cumprimentou o loiro. 

—  Preso no trabalho até agora hein? Viciado.

—  Não, hoje foi sem querer.

Ele riu e contei o que nos aconteceu omitindo detalhes desnecessários mas que acredito, ele pescou com sua intuição pois olhava para mim com um meio sorriso maroto e uma ou outra vez, direcionando um "uhum" ao observar o loiro que manuseava o menu a procura do que pedir.  Após escolher,  o telefone dele tocou e levantou para atender .

— O que te fez trazê-lo para cá, seu refúgio secreto? — o velhote perguntava com aquele riso nos olhos indicando que suspeitava. — Nunca trouxe nenhuma das suas companhias.

—Ele não é minha companhia.

— Então é algo sério?

— Da onde tirou isso? — disse  bebendo meu refrigerante para ocultar meu desconforto com suas perguntas.

— Do jeito que você olha para ele. Acredite, este olha para você da mesma maneira. Tem sorte, sabia? — disse sério dessa vez me encarando — Não faça as merdas que costumam resultar em você aqui, sozinho.

— Acho que está errado e vendo coisas onde não existem. Iria dizer mais só que ele retornou para o balcão meio estranho. Parecia chateado com o telefonema. Começou a mastigar quieto, sem parar para conversar como antes.

— Algum problema?

— Sim, se importa da gente ir embora agora? — perguntou largando tudo e pegando a carteira — Preciso ir.

— Era ele? — perguntei o obtive como resposta seu silêncio — Ok, era ele!

Não o deixei pagar e voltamos rápido para o carro. Em nenhum momento ele abriu a boca para falar, somente mostrava-se pensativo e até meio triste. Não gostei de vê-lo assim mas não poderia também ficar fazendo perguntas demais. Eu mesmo odeio pessoas intrometidas. Talvez se eu soubesse com certeza que era o tal Denilson que causava isso nele as coisas não ficariam melhores. O trânsito caótico após a chuva fez o percurso ficar demorado. Ele apenas olhava pela janela, ignorando minha presença e depois de uns instantes fechou os olhos mas sei que não dormia e nem mesmo fingia dormir. Somente os fechou e o vinco de preocupação em sua testa sugeria que pensava demais em algo que o desagradava.

 — Não quer conversar?

— Só quero chegar em casa, estou cansado — respondeu abrindo os olhos — Amanhã ainda é sexta, caso tenha esquecido. Hoje na verdade — corrigiu-se olhando o relogio.

— E ele te ligou para lembrar disso?

— Não, ligou para lembrar outra coisa — disse com um traço de raiva na voz — Dá para dirigir calado? Por favor?

"Ok, agora você sabe que ele tem algo a mais com o tal, satisfeito? ", minha consciência gritava comigo e  ainda estava indeciso se considerava a informação boa ou ruim. Estacionei em frente ao prédio dele, com a rua toda as escuras. O telefone  tocou e ele só fechou sem atender dessa vez. Pegou o paletó  e estava prestes a sair quando o impedi.

 — Vai embora assim?

— Assim como?

 — Sem isso...

O puxei para beijá-lo, segurando seu rosto entre minhas mãos e ele resistiu por reflexo mas depois o senti nos aproximando mais e o abracei, inclinando seu banco  e ficando um pouco em cima dele que se sobressaltou quando o telefone tocou novamente.

— Estou chegando — disse meio ofegante e desligando em seguida —  Tchau.

Rapidamente se livrou de mim e saiu do carro correndo para a calçada do outro lado. Ainda pude ver  um pouco de sua silhueta entrando no prédio e uma raiva cresceu dentro de mim. Ele estava indo ao encontro do outro que o esperava em casa. Como posso competir com isso? A resposta obvia era: não podia. E isso começava a me deixar incomodado.


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