Se Eu Quiser Falar com Deus escrita por daghda


Capítulo 1
O que eu pensava encontrar?


Notas iniciais do capítulo

O Caminho só existe quando se decide por seguí-lo. E a chegada é sempre o ponto onde se decide repousar. E depois, quando se retoma a caminhada, nada mais é do que um novo caminho.



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Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós

Ficar a sós? Como?

Há que, antes de tentar ficar a sós, ter a consciência de que nunca realmente o estamos. Dividimos nosso espaço, nossa casa, nosso ar, até mesmo nosso corpo com seres que sequer consideramos existir. Tua casa é mais tua do que da aranha que tece sua teia no teto?

Se credes em algo que se possa denominar outro mundo, outra dimensão, outro reino, outras formas de existências, de vida, há que saber que todos eles nos rodeiam. Ficar a sós? Como?

Se eu quiser, tenho que alcançar a solidão, a impossível solidão. Como? Através de que meios? E enfim, pra quê? Deus, ele próprio, está presente em suas multidões de existências, atendendo por suas infinidades de nomes, erguendo suas incontáveis mãos. Ficar a sós? Diante dele nunca estaremos sós.

Tenho que ficar a sós no em mim mesmo. Estar a sós ainda que multidões estejam a me rodear. Vede? Para acessar a mente do Divino tenho que saber me blindar do que está a espreita. Tenho que conhecer meios de me desligar do que me acompanha. Tenho que conhecer o em mim.

Devastar o universo em busca da solidão nunca levará ninguém a alcançá-la. Abismos ou alturas, vácuo, em todos esses lugares estaremos acompanhados por um inumerável de companhias, o inumerável de seres que vivem em nós mesmo.

Somente ao encontrar o Em Mim, puro, único, só ali encontra-se o a sós.

A sós é estar em mim.


Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz

Há outra forma de pronunciar a língua de Deus? Qualquer outra voz que se emite, que não a voz do silêncio, não supera a tenacidade do gemido de um bebê.

Claro que a mãe o reconhece, mas em verdade, não seria necessário que o bebê emitisse seus incompreensíveis sons para que a mãe o compreendesse.

Há alguma luz que possa iluminar Deus? Que luz seria capaz de ofuscar os olhos de Deus?

Pra quê apresentar a Deus aquilo que lhe seria inútil? E se puder me apresente algo que se possa oferecer a Deus que possa ser-lhe útil. Ele já não domina todas as utilidades apenas por Ser?

Sim. Preciso abster-me daquilo de que me sirvo, preciso abster-me de meus instrumentos, pois de nenhuma utilidade eles estariam imbuídos diante do Supremo.

Pra se conseguir falar com Deus é necessário o silêncio, é necessário não desejar falar-lhe nada. O que se poderia comunicar a Deus que se lhe faça útil? O que falar a ele que ele já não saiba? O que mostrar que ele ainda não tenha visto, e que ele não conheça por detalhes?


Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios

Encontrar a paz.

Há quem diga que só se há como encontrar a paz em Deus. Também há quem abra mão dela pelo dito Deus a que serve. Há ainda quem se infernize tanto por achar que a paz é obrigação que jamais chegou sequer ao longínquo fragor que ela exala infinitamente.

Não. A paz não está em Deus. Sim, ele a tem, é dono dela, e se quisesse a daria gratuitamente a todos e a qualquer um fartamente, mas ele não quer. 

Ela na verdade está toda espalhada e distribuída de maneira igualitária em cada partícula elementar que forma toda e qualquer existência, mas como todo e qualquer fruto garboso e suculento, há que ser colhida dos mais altos galhos. Foi lá que Deus a depositou, e a disponibilizou.

Sim, é um empreendimento e tanto sair à ceifa da paz. Há que não esmorecer, há que nunca desistir, há que se munir de ferramentas úteis para a empreitada, há que escalar todas as montanhas do mundo para chegar aos pés da frondosa árvore de onde nascem todas as partículas elementares que formam a existência, e lá, escalar também a árvore, subir seus galhos, e não se pode ter pressa para fazê-lo, porque assim, tê-la-á perdido mesmo antes de tê-la em mãos, e quando as mãos a tocarem, ela se desmanchará de madura ao extremo.

Uma vez colhida, perceber-se-á que ela não passa de um ovo a ser chocado. Chocadas as expectativas de quem atrás dela ergueu marcha, não terá outra escolha além de buscar entendê-la, e assim fazer com que ela medre a casca e nasça para a existência.

Para isso, há que se despir, há que se arrancar as vestes, os calçados, os grilhões e os próprios cabelos, e nessas condições, aqueçê-lo com o próprio corpo padecendo o frio que não poderá nunca acometer o ovo.

E uma vez o ovo rompido e a paz nascida, ela se abrigará no seu íntimo, tão arraigado, que sequer se fará possível vislumbrá-la por uma fração de segundos, mas ela será sua, genuinamente, autenticamente, e se te fizeste capaz, e merecedor, de tê-la habitando as cavernas escuras de sua alma, então será merecedor de se apresentar diante do Imenso.


Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Quanto tempo leva galgar as estradas que rumam ao Reino Sagrado? E uma vez no Reino Sagrado, quanto tempo mais até conseguir acesso à sala do Trono? E uma vez ali, quanto tempo mais até que o rei se apresente misericordioso diante do plebeu? Sois um plebeu? Sois o Filho do Monarca? Quantos quilômetros foram percorridos até ali? Quantos passos dados na marcha rumo ao nobre destino?

O que se pode oferecer diante do Rei Potente? O que vestir para estar à altura de sua majestade?

Todos esses esforços se mostrariam inúteis, porque quando ele decide se mostrar, o que não é raro, ele sempre se apresenta em sua imutável forma, aquela que é idêntica à tua forma, estando aparentemente igual a ti, te fazendo crer estar diante de um perfeito espelho, mas ele sempre é mais, se mostra sempre com a imagem do que você poderia ser se nele estivesse.

E a viagem que se tem que engendrar rumo aos palácios divinos é a mais longa e distante que se possa almejar: aquela que dura apenas uma fração de segundo e que te desloca do seu lugar uma fração de milímetro, e ainda assim te leva ao local mais ermo de sua existência e que dura por todas as muitas vidas que se vive enquanto se existe.

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou

Quando minha vontade me guia até Deus? Quando que a necessidade de Deus se mostra mais translúcida ao espírito?

A felicidade é uma opção, e uma vez se havendo optado por ela, perdê-la é desleixo. Deixar que a levem é permitir o mais ultrajante dos roubos. É desmazelo. Mas a dor não. Ela não é opção. Ela é incondicional. Apresenta-se diante de nós irreversivelmente. E é a melhor amiga que se pode conquistar na vida. E também a pior inimiga. Sois vós que decidis como recebê-la em seu lar.

A felicidade, ao contrário do que se pensa, não é oposta á tristeza. A alegria sim é seu oposto. A felicidade nunca se desfalece. É fonte e riacho que não seca.

Mazelas de vida e de prumos não são algo que se possa simplesmente recusar. E se eu quiser me fazer capaz e merecedor de contemplar o Rosto Sublime, preciso saber me portar diante da visita da dor, assim como diante do amor, da rosa o mais doce fragor, dos espinhos e dos espólios, de igual maneira, sempre cordial a todos. Amar a vida, e tudo que dela advir.

Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho

Deus não gosta dos escrúpulos, nem dos arrependimentos. Gosta da coragem e das transparências. Ele jamais fará questão de que se lhe aproxime o homem cheio de cordialidades. Ele não espera ser cumprimentado com ‘bom dia’ ou ‘boa noite’.

Ele espera que aquele que o busca, o faça com o próprio sangue, se tornando capaz de tudo por um único momento com ele. Ele espera que aquele que lhe deseja falar, suporte provações, humilhações, sofrimentos acima e além de tudo o imaginado pela mente humana, deseja que seja um indivíduo sonhador, repleto dos sonhos de suas vidas inteiras, e que seja capaz de abdicar de todos, um por um, dando-os em tributo e libação. E que com isso não perca nem uma gota de seu precioso sumo de alegria e confiança em si mesmo e Nele.

Mas no momento que esse homem, essa mulher se dispõe a isso tudo e muito mais para ter com ele, imediatamente ele percebe a intenção e a sinceridade do coração desse filho querido e desiste de exigir tudo, e se oferece gratuitamente como som, luz e alimento.

Ele se transfere inteiro e irreversivelmente para o ser daquele ser, e isso acontece sempre e inadiavelmente no momento do nascimento de cada ser.


Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Há que se ter medo de Deus? Penso que a maior das imprudências do homem é ter medo. O medo surge para o ser quando ele não compreende aquilo com que se depara, e enfim temo o confronto, e sem o confronto não há o contato.

E que lógica tem temer o que não se compreende se a maior dádiva que se pode garimpar nos solos da existência é a compreensão?

O homem, ser sublime, em que todas as potencialidades latejam, se dilacera, porque seu invólucro não suporta conter o que tem em seu interior. E cede ao estufamento que se gera nesse embate entre o invólucro que teima em cultivar rigidez e o conteúdo que teima expandir.

Isso o desfigura, dilacera, e em qualquer circunstância, ao se apresentar diante do Eterno, estará medonho, feio, destituído da beleza primordial. E a única coisa que terá para apresentar a Ele é o Mal Tamanho. Contudo, o coração se alegrará, e emergirá no meio de todo o mar de acanhamento em que se afogou quase até a morte.


Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar

Sair em busca de um encontro com Deus é algo inusitado. Há quem diga que é coisa de maluco, que não se deve ter esse tipo de pretensão, que é ter uma atitude arrogante. E preferem clamar, clamar, como se paralíticos fossem, incapazes de buscar qualquer que seja a coisa pela qual anseia seus corações.

Eu digo o contrario. É uma aventura, é um desafio, e acima e antes de tudo é necessário aceitá-lo como tal e galgar nesse rumo. Não se podem medir esforços e não se pode achar que algo é impossível, ou que possa vir a não valer à pena. Tem que se estar disposto a ir onde for necessário, dar o que for necessário, fazer o que for necessário, há que se estar em pleno estado de convicção.


Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar
em nada
Nada, nada, nada, nada

Porque, acima de tudo, é uma aventura da qual se pode nunca mais voltar. Pode-se perder a vida, como em um safári a mais perigosa entre as selvas, uma excursão ao mais seco e quente deserto, ou a frias geleiras. Só uma certeza eu posso ter, e a ofereço a quem quiser galgar tamanho perigo para si. Deus há de se deixar encontrar. E será possível falar com Deus, mediante a tudo isso, ou a bem mais do que isso. Ou talvez, nada disso se faça necessário. Seja como for essa certeza é imperecível, incorruptível. Deus se mostrará e falará com quem assim o desejar.

Esse é um caminho incerto, mas precisa ser percorrido. Sem que se percorra esse caminho, nada garante que o homem que não se dispôs realmente nasceu. O homem que não se dispõe a percorrê-lo está na verdade ainda em fase embrionária, e ainda está no ventre aguardando o seu próprio parto. Está galgando os caminhos que sua mãe percorre, e não caminha por caminho nenhum com as próprias pernas.

No fundo, quem percorre o caminho, sabe.

Ele não vai levar a lugar nenhum, e não requer que se saia do lugar.

Ele não vai dar em lugar nenhum, além daquele que sempre esteve aí, a uma fração de milímetros de seus pés. Ele leva ao ‘em mim’.

Ele não vai dar em nada.


Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar


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Notas finais do capítulo

O que eu pensava encontrar?



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