Mirer escrita por Petit Ange


Capítulo 1
Capítulo 00


Notas iniciais do capítulo

Dedido solenemente essa fic para a Srta. Syn, que graças à "Frostnätter" (a qual vocês deviam ler, nota -q) me fez voltar a me apaixonar por SuFin. Obrigada, meninë~ (L)


NOTA: Prólogo-pseudo-capítulo-00 pra vocês. Para dar o gosto angst do que será "Mirer". Espero que gostem. ^-^



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/146590/chapter/1

“All of the lies are falling away,

We're totally exposed.”

“I Don’t Feel the Same”, Thomas Godoj.

Capítulo 00.

Este, provavelmente, foi seu maior erro.

O de não ter dito o que queria ter dito desde o começo.

O momento no qual reconhecera a figura loira foi o ponto de partida. Foi a linha pintada no chão. O que acontecesse depois daquilo podia ser tanto bom quanto ruim; podia ser ou mesmo nem ser. Dependia dele.

E ele fez a sua escolha.

A pior possível. A mais errada.

A mais impensada. A mais idiota.

E, mesmo assim, foi sua escolha. Foi a sua decisão após a linha.

Uma decisão que mudou o futuro de forma drástica.

Se tivesse sido um pouco mais sincero, se tivesse apenas cumprido a promessa, sem flores e arco-íris, ele provavelmente estaria mais feliz.

Ou, talvez, não estivesse.

Ou, talvez...

Talvez.

Ele não sabia. Não podia retroceder para aquela linha.

A linha era uma só e ele já havia a ultrapassado.

Poderia ter sido só uma história sem drama.

“Eu gostaria de entregar uma coisa.”

E então, Entregaria. Diria.

Destroçaria seu coração – o seu, o dele, o de todos os envolvidos. Não seria bonito. Não teriam flores nem arco-íris.

Nenhum pôr-do-sol, nenhum sorriso ou enfeite.

Algo perfeitamente adulto e normal.

Algo normal.

Mas não foi isso que fizera.

O medo e seu próprio desejo de fazer o melhor

(um desejo primitivo e seu maior nêmesis, visto que todos os seus erros, desde a infância, começaram com aquela simples vontade de fazer o melhor)

 – um desejo misturado com afeição, gratidão, pânico, desconhecimento, tensão, curiosidade e tantos outros sentimentos que ele não sabia nomear, mas que pesavam em sua garganta quando trocaram as primeiras palavras.

Ou não seriam as primeiras?

Afinal, eles “já se conheciam antes”, não?

Era nisso que quis acreditar.

Foi nisso que apostou todas as fichas.

Foi nisso que quis fazê-lo acreditar.

Era seu conto-de-fadas especial.

Não... Era o conto dela.

Ela o desejou e embalou-o, com sua voz aveludada, nas noites onde eles podiam passar tempos conversando até Morfeu envolvê-los em um abraço feito de aguda escuridão.

Mas ele acalentou aquele desejo infantil tanto quanto.

Era um sonho feito de uma cidade verde e de uma mente que nunca conheceu a violência ou a podridão do mundo.

Um sonho inocente. Vindo de uma pessoa inocente.

Era bonito.

Era algo que ele queria ter tido. Algo que invejou, no fundo.

Ele quis ter aquele sonho também.

E, por isso, fizera aquela escolha.

A escolha errada que o faria perder tantas noites em claro.

Porque este, provavelmente, foi seu maior erro.

---- # I # ----

Às vezes, ele ouvia seu nome no silêncio da chuva.

Enquanto o mundo coloria-se de cinza e cores mortas lá fora, seus olhos vasculhavam cada pequena gota em busca da pessoa que ele sentia que nunca mais retornaria. Um reflexo tolo o fazia perder o tempo que prometera curar suas feridas, alternando entre os nomes que a casa sussurrava e o resto do mundo – do seu mundo – também.

A casa era espaçosa. Espaçosa demais, em verdade. Nunca achou que ela fosse ser tão espaçosa, mesmo quando o lugar havia sido construído para abrigar duas pessoas, que em tese não deveriam ser tão importantes.

Tudo era tão morto quanto a paisagem. Como numa eterna noite chuvosa.

Era bobo. Era tão bobo quanto sincero – e talvez tivesse sido exatamente esta sensação que a teria agradado.

Ou, quem sabe, fosse exatamente isso que a deixaria triste.

O que não fazia sentido, visto que ele quem fora abandonado.

Uma gota de chuva caiu na janela, deslizando pela superfície vítrea como uma lágrima cristalina. Ele tocou-a.

Estava frio e solitário.

Estava perfeito.

Em suas costas, o crepitar do fogo na lareira continuava. Porque a vida também continuaria, com ou sem sua presença.

As vozes que pareciam chamá-lo das paredes – paredes estas que não guardavam mais nenhuma lembrança – também continuavam.

Berwald fechou os olhos.

O som da chuva aumentou.

---- # I # ----

Fora ideia dela a de virem morar em Halmstad.[1]

Eram jovens e apaixonados. Um lugar verde e tranquilo parecia, em meio aquela atmosfera de sonhos e promessas, um paraíso na Terra. Halmstad não era uma cidade pequena – pelo contrário, era grande e só tinha a crescer mais. Entretanto, seus subúrbios eram calmos como a superfície de uma lagoa.

Assentira diante de seu “Berwald, vai ser bom. Halmstad é um excelente lugar”. Ele assentira sempre para tudo que vinha dela.

Não havia, afinal, como Anika estar errada.

Ela nunca esteve.

Talvez por confiar tão cegamente nela é que simplesmente não entendia como aquilo havia acontecido. Como Anika Oxenstierna poderia estar certa em, um dia, anunciar que estava indo embora.

Não parecia certa aquela solidão. Não era certa.

E, como ele apenas assentia para tudo o que ela dizia, também teve de assentir para aquilo. Para o seu adeus.

Haviam se conhecido na recepção dos calouros, na faculdade, há alguns anos. Cursavam ambos o mesmo curso, apenas em salas diferentes. No terceiro semestre, tiveram duas cadeiras juntos. Berwald Oxenstierna não era um homem de muitas palavras – em verdade, quase não falava – porém, ao lado de Anika, seus olhos falavam por ele como nunca. E ela os entendia.

Pouco mais de seis meses depois, quando ela lhe daria o primeiro de outros tantos beijos, Anika diria que havia se apaixonado por aqueles olhos tão expressivos escondidos por óculos discretos desde o primeiro dia, naquela recepção tão cheia de estudantes sonhadores.

Ao fim da faculdade, já estavam noivos.

Berwald não tinha pais – ambos haviam morrido em um acidente quando ele era pouco mais que um pré-adolescente e, desde então, havia dividido a casa com um tio ocupado. Crescera sozinho e, portanto, não precisou apresentar sua noiva a ninguém. Anika também não tinha pais – morava com a avó, já em idade bastante avançada, que veio a morrer dois dias após o casamento deles.

O sonho da esposa não era ter crianças – também não era sua meta. Seu sonho era Berwald. O loiro apreciaria, um dia, ter pequeninos correndo pela casa que compraram juntos, mas não naquele momento. Ela aceitou esperar pela “fatídica conversa” e, enquanto isso, concentrou-se em viver ao seu lado. Enquanto ele decidira seguir a carreira de professor, a esposa cursou outra especialização para seguir o rumo das pesquisas.

Foram anos calmos e belos

(e Berwald visitou-os diversas vezes após a separação deles, procurando alguma pista, alguma coisa – qualquer coisa – que indicasse que foi ali, bem ali, que começaram a errar, que Anika começou a pensar em abandoná-lo)

e cheios de sonhos.

E, então, um dia, ela estava com um sorriso no rosto – um sorriso congelado, nem triste e nem feliz – e com uma mala ao seu lado, próxima à porta do que fora até então o ninho deles.

Desculpe”, teria falado. “Eu preciso ir.

Ele quis ter perguntado – não com seus olhos, mas em voz alta – para onde, mas esteve parado perto dela, confuso demais para tal.

Desculpe”, Anika repetiu.

Ela repetira aquelas desculpas diversas vezes, como uma despedida.

O que não fazia sentido e, ao mesmo tempo, fazia, visto que desde então Berwald Oxenstierna nunca mais vira sua ex-esposa.

Anika deixara para trás a cafeteira que sempre usava para fazer café para os dois, enquanto Berwald lia na sala esquentada pela lareira. Deixou para trás seus livros de Biologia, os livros nos quais ela havia rabiscado lembretes para a hora dos testes – também deixou o caderno faltando algumas folhas, onde eles trocaram os primeiros bilhetes no meio das aulas. Deixou para trás os livros de receita, nos quais ela e o marido debruçavam-se e tentavam aprender; os dois eram péssimos cozinheiros no começo.

E, principalmente, deixara o marido para trás junto com tudo aquilo.

---- # I # ----

A verdade era: ele não sabia se conseguiria superar aquela perda.

No fundo, não sabia sequer se queria de fato recuperar-se. Isso implicaria em esquecer várias das coisas que ele e a esposa fizeram juntos. Não sabia se queria esquecer. Ou mesmo deixar para trás.

A verdade era: de uma forma ou de outra, ele sabia que seguiria em frente.

Estava lutando exatamente contra isso. Contra o tempo.

E enquanto isso, perguntava-se se não era exatamente este tipo de atitude patética que acabou por afastar Anika de si.

Dormira naquela noite chuvosa ao som de memórias. O pior som que podia imaginar.

---- # I # ----

Ele poderia ter deixado tudo aquilo de lado, se fosse inteligente de fato.

A questão era: ele não era.

Atrás de sonhos que nem pareciam seus – sonhos inocentes demais para sua mente cheia de memórias de sangue –, cruzara um mar de solidão e dor.

Era a dor do que estava prestes a fazer?

Não era muito diferente de um ladrão; um ladrão de sonhos.

Também não era muito diferente de um estuprador; estava sendo desprezível e desrespeitoso como um.

E, mesmo assim, seu coração sentia como se já houvesse vivido tudo aquilo de fato. Sentia saudades de uma terra verde cujas memórias montaram-se e coloriram-se durante aquelas noites preenchidas de lamentos.

Uma única figura movia-se naquela mistura de verde e sonhos.

Ela também se movia agora, abrindo o portão de um paraíso perdido que pareceu ter sido sempre seu.

Sua respiração parou.

A linha do destino...

Estava sendo traçada bem ali, na sua frente – era impossível não ver. Uma nova linha.

Não. A verdadeira linha.

O primeiro contato é sempre o mais importante.

Não podia arrepender-se depois dele.

Não teria mais esse luxo.

---- # I # ----

Berwald conheceu seu destino, pela primeira vez, numa festa de calouros.

A segunda vez, ela em frente à sua casa, de uma forma tão inesperada que o fez perder o ar.

O sol – que não havia sido suficiente, de novo, para aquecer aquele dia tão frio – já se escondia por detrás das casas, lentamente, quando ele finalmente pensou em levar o lixo para fora, depois de um domingo preparando as provas de seus alunos.

Suspirando enquanto fechava a porta da casa atrás de si, os olhos azuis – sempre escondidos por detrás de seus óculos – do loiro fixaram-se no céu, distraídos. O céu estava estranhamente melancólico naquela tarde. Nostálgico. Quase como um sonho ruim.

Berwald arrumou os óculos, meneando a cabeça diante dos pensamentos que teimavam em rondar sua cabeça.

Ao invés daqueles, preferiu assuntos mais importantes – como pensar em quando levaria as roupas sujas para a lavanderia. Precisaria ser amanhã, possivelmente; a semana de provas estava já na cabeça de muitos colegas de trabalho (e ele podia imaginar o rosto choroso de metade de seus alunos, que tanto amavam sua matéria e sua fama de ser um dos piores professores quando se tratava de provas aplicadas).

Deixando os sacos de lixo em frente à sua casa – e rezando para que o caminhão não demorasse, já que da última vez tiveram um atraso de nove minutos, ele virou-se, a sensação de uma missão cumprida fazendo os ombros pesarem um pouco menos.

Tirou o chaveiro – simples, sem adornos ou cores, muito digno de Berwald – do bolso e procurou a chave de sua casa. Tinha vários chaveiros, desde os com chaves de seu trabalho até o com as chaves relativas a sua casa, mas todos, a olhares não treinados, iriam parecer a mesma coisa.

Estava para girá-la na fechadura, a mente já ocupada com assuntos deveras preocupantes além das provas, lavanderia e atrasos de serviço público, quando ouviu uma voz atrás de si.

Não era nada que ele reconhecesse, mas de alguma forma, o que a voz dissera chamou-lhe muito mais a atenção.

– Eu bem senti que você continuaria nessa casa.

Algo tão simples e, ainda assim, tão significativo.

Ele parou, a chave ainda ali, a um passo de ter sido girada.

– Olá de novo, Berwald.

Virando-se, o loiro desejou, quando pôs os olhos azuis na figura que o chamou, apenas que nada denunciasse sua surpresa.

Do outro lado do portão, um rapaz de feições delicadas sorria.

O professor achou que estivesse tendo um sonho.

Os olhos de alfazema não necessariamente sorriam com os lábios delicados, mas eram gentis da mesma forma. A pele era pálida como as nuvens. O rapazinho vestia-se como quem não se importava muito com o frio, com uma camisa branca e jeans. Era bastante informal, diria.

Mas, mais do que todos esses detalhes, Berwald não conseguia deixar de olhar seu rosto.

Os cabelos loiros eram curtos – um corte tipicamente masculino –, mas eram loiros e sedosos. Eram iguais aos dela.

Os olhos eram cor-de-lavanda – uma alfazema pura – e extremamente dóceis. Igualmente semelhantes ao dela.

Berwald Oxenstierna achou, por mais um instante, estar diante da esposa, apenas para em seguida afastar aquela sensação porque se tratava sem dúvidas de um homem, não de Anika. Mas a semelhança era absurda. Tão absurda que ele não conseguia desfazer-se daquele contato visual.

– Sou eu. Não me reconhece?

Ele desejou dizer “não”. E desejou ouvir o rapaz mais; ao mesmo tempo em que não desejou.

Teve uma sensação de que sabia o que ele falaria.

– Sou sua esposa. Anika. Não me reconhece?

Não.”

Não quando, do outro lado daquela porta, ainda havia o cheiro de solidão e o fogo crepitando igualmente sozinho todas as noites.

As lembranças estavam ainda tão frescas em sua mente – frescas até demais, diria – e todas elas não faziam menção ao rapazinho. A semelhança física era incrível, mas acabava aí a surpresa do mais velho.

Tal frase fê-lo acordar daquele transe, e ele virou-se, ignorando a presença do outro.

Seja lá quem havia mandado fazer aquilo – se é que havia um mandante –, foi algo de extremo mau gosto. Mas Berwald não tinha tempo para perder com aquelas trivialidades. Mais do que obedecer a vontade de empurrá-lo para longe ou chamar a polícia, o melhor seria simplesmente ignorar. Sim, ignorar.

E, quando chegasse a cozinha, respirar fundo e tentar não tremer quando fosse se servir de um pouco de café.

– Não vai me deixar entrar? – ele surpreendeu-se.

– Vá embora – respondeu, lacônico.

– Mas eu...

Não, a voz não era a mesma. A voz de Anika era feminina; a daquele rapaz, obviamente masculina, apesar da aparência andrógena dele. Mesmo assim, havia uma semelhança...

A maneira que ele falava. As palavras que escolhia. A ex-esposa costumava também falar daquele jeito. Não sabia descrevê-lo com palavras exatas – ele nunca fora bom com as mesmas, mesmo ironicamente sendo um professor –, mas sabia dizer que era “meigo”. Sempre achou “meigo” o tom tão polido e correto usado por ela.

Ele não conseguiu achar o mesmo daquele rapaz que imitava o mesmo estilo de fala. Só achou... Terrível.

Outra vez, de um mau gosto terrível.

– Vá.

Um silêncio fez o som da chave girando e abrindo a porta parecer mais alto do que todas as outras vezes.

Berwald quase se ouvia implorar para que o outro fosse embora. Mas não ouviu um passo sequer que indicasse que ele obedecera.

– Vai deixar sua esposa aqui fora?

– Você não é.

– Sou sim.

Berwald suspirou.

Em nenhum momento ele voltou a fazer contato visual com o rapazinho loiro, mas tentava imaginar que tipo de expressão estaria fazendo.

Assustadoramente, somente imagens de Anika Oxenstierna passavam por sua mente enquanto tentava. Ainda estava surpreso com aquela semelhança tão desnecessária.

– Se eu não fosse sua esposa, Berwald... Como eu saberia o seu nome?

Ele parou de novo.

– Como eu saberia também que você tem uma cicatriz de queimadura em seu peito, adquirida quando tentávamos fazer köttsoppa[2]?

Desta vez, sua respiração também parou com ele.

– Ou que, à noite, você costuma roubar minhas cobertas enquanto dorme? Ou... Ou mesmo que o primeiro “eu te amo” que você me disse foi em um bilhete durante a aula de Neurofisiologia II?

Ele fizera de propósito.

Aquilo estava além de qualquer conhecimento stalker. Aquele último item, principalmente.

Eram coisas que só ele e Anika sabiam.

Não era tolo de acreditar que sua esposa era aquela pessoa obviamente masculina (também não era tolo de cogitar reencarnações) – mas...

A surpresa...

A surpresa o fazia pensar em tantas coisas que achou que jamais cogitaria que ele não sabia sequer por onde devia começar a escolher. Tudo somente não fazia sentido algum.

– Quem...

– Eu já disse, Berwald – o loiro repetiu, meneando a cabeça. O sorriso congelado ainda lá. – Sou eu. Sua esposa.

E a mão tocou no portão, hesitante.

– Então... Posso entrar?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

[1] Uma das cidades da província de Halland, na Suécia. É famosa no país por ser uma espécie de “cidade acadêmica”, com várias universidades e escolas proeminentes situadas na região.

[2] Uma iguaria bastante apreciada na Suécia. Consiste em uma sopa de bife e vegetais requentados, servida com Klimp, um tradicional bolinho de massa cozido do país.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mirer" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.