A Filha dos Raios escrita por Eleanor Blake


Capítulo 28
Fome


Notas iniciais do capítulo

E finalmente voltei a ter idéias e motivação pra escrever essa fic,espero que gostem



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Fique viva.

Há quanto tempo estou aqui? Dias?Semanas?

O que é aqui?

As lembranças se embaralham diante dos meus olhos enquanto as correntes tilintam presas aos meus pulsos que gotejam sangue das feridas recém abertas.

Olhos azuis se misturam com um cheiro doce e fazem meu coração rasgar o peito em busca de ar,cabelos escuros e um sorriso de lado fazem minha cabeça girar em torno de memórias que a cada instante ficam mais distantes de mim.

De quem são?

E quebrando o silêncio ele vem.Como todos os dias, às vezes em completo silêncio, às vezes falando tanto que não ouço meus próprios pensamentos,mas sempre disposto a fazer pior.

Com suas botas amassando o cascalho,com a porta de pedra se arrastando e as gotas de água se desprendendo do teto e caindo numa cacofonia que anunciava o que aqueles dias traziam.

Fique viva.

Engoli em seco concentrando-me nos passos até que senti aquele hálito podre tocar meu nariz e a corrente queimar meu pescoço enquanto ele a puxava.

—Bom dia amada,pronta pra mais um dia?

Fique calada,por favor fique calada…

E tudo recomeçava.

O primeiro açoite vinha quente,o segundo rasgava a pele,o terceiro queimava a carne,o quarto lambia os ossos e dali em diante eu já não era mais capaz de contar.

Fique viva…

Dedos afundavam na minha carne e unhas finas roçavam meus ossos me fazendo arquear.

—O que foi querida?Não vai falar nada hoje?Trouxe algo especial pra voce,alguém pra brincar…

Aquela voz revirava meu estômago enquanto a venda caía e meu coração se transformava numa pedra pesada.

Da porta de pedra homens entravam fedendo a morte,com roupas surradas e dentes faltando num sorriso pegajoso.

Aquela criatura maldita se sentou puxando a única cadeira voltada pra mim enquanto como serpentes as correntes se esticavam até que eu ficasse suspensa com o corpo totalmente exposto.

A voz que há muito me deixara tentava sair em forma de grunhidos enquanto um dos homens se aproximava deixando seus farrapos caírem no chão e ao seu redor todos faziam o mesmo chegando cada vez mais perto e como uma chicotada a compreensão me aturdia me fazendo vomitar.

Não…

Mãos imundas tocavam meu corpo enquanto eu tentava inutilmente me esquivar ,línguas tocavam meus braços,dentes se cravavam nas minhas pernas e unhas riscavam minhas coxas.

Até que eu senti.

Dedos tocavam cada vez mais próximos de minha virilha enquanto eu me agitava o máximo que podia sentindo as correntes queimarem cada canto da minha pele.

Não

Isso não

Mais mãos me puxavam,mais grunhidos saíam de mim e mais o sorriso daquele monstro aumentava.

Não adiantavam os esforços,o som,o desespero e a dor,nunca eram o bastante,nunca o satisfaziam e só papariam quando ele se cansasse de mais um jogo.

Quem sou eu?Qual o meu nome?

Ninguém

Diante de dias de trevas eu não era ninguém,as memórias tinham se tornado um amontoado disforme,os nomes iam de apagando,flashes corriam diante de meus olhos com coisas que não mais eram minhas e a dor queimava meu peito com o silêncio que tomava minha mente.

Não sou ninguém.

Mas ali,naquele dia ali entre eles havia algo diferente,havia algo...vibrando.

Como uma energia se formando,como uma onda que fracamente se agitava como uma bandeira no vento da tarde.

No meio do caos,da dor e da agitação aquela vibração tão fraca parecia sussurrar o meu nome.

Me agitei o máximo possível sentindo as correntes queimarem e meu corpo ser tocado e ferido,mas como uma expectadora me esforcei pra achar o chamado na multidão.

Até que achei.

E como o inferno eu senti as chamas queimarem meu peito,arderem meus dedos e tomarem meu corpo preenchendo todo o silêncio com o caos.

As chamas corriam flamejantes por minhas veias.E eu deixaria queimar.

Dentro de mim abdiquei a tudo, às memórias, às dores,os medos e finalmente a mim para sentir o fogo queimando cada pedaço,apagando o que restava e deixando um rastro de destruição,queimando minha identidade que já não importava mais.

E nem que custasse a minha vida no final,eu arrancaria o coração do monstro que me prendeu aqui.

Mãos tocavam meu rosto até chegarem a minha boca,depois a força dedos imundos tocaram minha língua e olhos vazios cravados aos meus se deleitavam em minha agonia.

Com toda a força que tinha fechei os dentes naqueles dedos e puxei,como uma besta raivosa eu me agarrei me jogando o máximo que eu podia até sentir o sangue jorrar em meus lábios,os toques pararem e gritos encherem a sala enquanto dois dedos caíam de minha boca que rosnava.

Num baque seco meu corpo encontrou o chão enquanto as correntes caíam ao meu lado e as paredes eram preenchidas com gritos.

E depois os gritos se tornavam meus.

Uma barra de ferro reluzente atravessou minha coxa rasgando tudo o que via pela frente e chicotes lambiam minha pele vindos de todas as direções.

Eu sentia meus gritos fazendo as paredes tremerem,fazendo meu coração estourar em meu peito e a saliva correndo até meu queixo.

E novamente estava ali me chamando.

E depois dali não me lembro de muito.

Me lembro do fogo,lembro das pedras,lembro da dor parando,lembro de gritos rasgando o ar edas correntes indo ao chão.

Lembro de arrancar aqueles malditos olhos e da sensação de estourá-los entre os dedos e corpos cortados e de pedras dançantes enquanto meu corpo era levantado por pernas fracas.

O sangue formava uma poça aos meus pés,os gritos zuniam em meus ouvidos enquanto a terra estremecia em ondas ao meu redor.

Meu corpo emanava luz enquanto eu arrastava as correntes enrolando-as no pescoço daquele monstro,encontrando no lugar daqueles olhos arrogantes que um dia vi antes de encontrar essas paredes dois buracos vermelhos contemplando o inferno.

E não pude deixar de sorrir.

As correntes me ouviam,se enrolavam ao redor daquele corpo torcendo-se como serpentes enquanto ossos estralavam como galhos e pedras voavam pelo ar como balas.

Sentei-me olhando em volta,entorpecida com o poder abraçando meu corpo e restaurando minha carne enquanto rasgava a de meus inimigos.

As pedras rasgavam carne fazendo o sangue jorrar,me cobrindo como chuva e dentes voavam pelos ares como confetes enfeitando as paredes.

Eu não tinha mais fome,enquanto a vida se esvaía daqueles olhos,todo aquele vazio era preenchido pelas delícias da morte até que apenas o silêncio tomava o espaço.

Mas ainda faltava algo.

Eu tive desejo de carne.

Minhas unhas cavaram o corpo quase sem vida,rasgando,explorando e quebrando até sentir a carne pulsando com seus últimos fios de energia e arranquei o coração vacilante contemplando o doce momento de sua parada.

Mordi a carne dilacerando e sentindo o sangue pegajoso tomando meu rosto e meu corpo,o gosto do monstro dançando por minha língua e o som que tudo aquilo fazia tomando meu ser.

Levantei-me saciada e apoiando-me nas paredes fui tateando a escuridão até chegar à pedra de onde o monstro sempre vinha.Com toda a força que tinha ,movi a pedra sentindo os dedos ralarem em desespero pela liberdade.

A pedra finalmente rolou e caiu diante de mim trazendo uma corrente de ar frio que carregava o pesado cheiro de lodo que se misturava a podridão que cobria meu corpo.

Caminhei seguindo a corrente de ar até ouvir o pesado gotejar de água contra a pedra e quando finalmente cheguei até a água meus gritos ecoaram pela noite.

O reflexo mostrava um monstro de cabelos brancos e olhos de cristal coberto de morte e dor.O monstro olhava de volta pra mim,estava nu,com ossos a mostra e carne queimada.

O monstro era eu.

Dei passos errantes até cair por cima dos joelhos e chegar até a margem vacilando quando meus dedos tocaram a água.

Parecia...errado.

Borrões passavam diante dos meus olhos,borrões de sorrisos,de olhos azuis,de areia e sal,de lágrimas e dor.

Deixei meu corpo cair confuso no chão enquanto a pedra fria aplacava a dor que tomava minha cabeça como uma fina barra de ferro passando em brasa por minha mente.

Não tinha medida de tempo,mas eu sabia que se eu ficasse mais deles poderiam surgir e mais dor viria.

Levantei-me tentando evitar olhar para o monstro dilacerado e enchendo o peito de ar me atirei na água fria sentindo o corpo retesar de dor mas fiz o máximo para chegar até o mais fundo que conseguia.

Lembranças confusas de um passado que não era mais meu tocavam minha mente enquanto eu via numa grande passagem de pedra a luz iluminar a água.

Quando saí da água meu peito queimou com lágrimas salgadas enquanto a luz da lua brilhava sobre mim e a floresta diante de meus olhos balançava com o vento.

Lavei meu corpo o melhor que pude,tirando toda a sujeira e sangue grudados por um tempo que não mais conheço.

Enquanto o frio me consumia corri o mais rápido que pude,atravessando o final da montanha e entrei na floresta sem jamais olhar pra trás.

Não vou voltar, ninguém me fará voltar.

Corri sem parar,ouvindo pássaros voando por cima de mim,vendo feras passando ao meu lado e galhos agitados enquanto meus pés quebravam galhos no chão.

Corri até sentir os pés sangrarem e as mãos não terem mais força pra aparar a queda.

Deitei-me aos pés de um velho carvalho sentindo um cheiro conhecido de uma lembrança que não distinguia mais e adormeci não aguentando mais manter meus olhos abertos.

Horas depois eu ouvi galhos quebrando e passos se aproximando,mas sem forças e coberta de dores como estava não havia nada a fazer além de chorar.

Lágrimas queimavam meu peito enquanto a chuva começava no céu azul,como um lamento que entristecia a floresta.

Os passos cada vez mais próximos traziam consigo um ofegar pesado e um estranho cheiro de flores que marcava o ar, até trazer diante de meu corpo uma velha senhora que sem dizer uma palavra jogou a manta que cobria seus ombros por cima de meu corpo.

—Eu não sei o que aconteceu,mas você precisa de ajuda mocinha.

Sua voz era cansada,mas pacientemente suas mãos se estenderam sem a intenção de me tocar a menos que eu permitisse.

Lutando contra meu corpo,cravei as unhas no Carvalho e me levantei enquanto a velha me dava as costas e começava a caminhar.

—Se quiser vir até minha casa,tenho chá pra te aquecer e um celeiro com um bom colchão de palha pra que descanse até que queira partir. -ela disse enquanto voltava a caminhar.

Sem melhor escolha caminhei lentamente sentindo todas as dores e tentando não cair até ver uma pequena fazenda com um celeiro vermelho desbotado.

Com um aceno ela me chamou enquanto abria a velha porta e entrava.

—Voce precisa de um banho garota,suba e se lave,quando estiver pronta vá ao quarto e pegue algo que lhe caiba.Não pode andar nua por aí assim.

Agradeci com um aceno e lentamente caminhei sendo recebida por uma sala tão aconchegante como se o próprio outono morasse dentro dela.

Subi encontrando o banheiro e ignorei as dores enquanto a fumaça da água quente tocava minha pele.

Depois de um tempo incontável meu coração batia sem desespero, não havia dor, não havia nada além de um cansaço terrível que assolava meu corpo.

O sabão levava embora a sujeira e histórias que eu não queria lembrar,a água quente carregava minhas dores pra longe e algo na casa fazia meu sangue zunir em resposta.

Obediente fui até o primeiro quarto que encontrei dando de cara com um vestido azul desbotado com um lado no pescoço mangas longas e um par de botas marrons surradas.

—Vista isso e venha comer -a voz anunciou no andar debaixo.

Com alguma dificuldade eu calcei as botas e joguei o vestido por cima do corpo puxando a fita da cintura até que me servisse.

Sentei-me numa cadeira de balanço ao lado de uma velha cama e senti as lágrimas descendo enquanto via o sol brilhando contra as finas gotas de chuva que caíam.

Sem conseguir suportar deixei que o corpo se desligasse enquanto os raios de sol me aqueciam e eu adormecia.

Teria tempo pra pensar no resto depois,ou ao menos era o que eu torci pra acontecer antes que eu perdesse os sentidos.

Eu estava presa na escuridão.

Sem sonhos,sem vozes,apenas o silêncio e aquele cheiro podre e nojento do monstro.

Até que aquelas mãos vieram,mas dessa vez não havia poder, não haviam as ondas ou a terra estremecendo, não haviam correntes se movendo e eu nada poderia fazer além de gritar.

E não havia ninguém que me pudesse salvar.

Acordei aos berros e queimando em febre com aquela mulher ao meu lado passando toalhas frias pela minha testa e murmurando numa língua desconhecida.

Por dias eu queimei em delírios ,em memórias das dores,vendo meus fantasmas nas paredes e o sangue tingindo a luz da noite.

Tinha me libertado do cárcere,mas parecia longe de me ver livre do pesadelo.










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