A Filha dos Raios escrita por Eleanor Blake


Capítulo 20
Pesadelos e imprudências




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A tensão tinha dobrado no campo.

Meus braços arrepiavam e eu sentia os trovões crepitando no céu.

A noite caía junto com a chuva fria que refrescava nossos corpos cansados depois de tantas provas.

Mas ainda não era o fim.

Por mais dez quilômetros o terreno se estendia antes de chegarmos a montanha onde estava a bandeira que flamulava no cume.

—Como você está?

A pergunta de Lucius me arrancou de minhas abstrações.

Passei a mão pelo rosto e sorri de lado enquanto olhava em volta e via exatos vinte e cinco times correndo.

Dez estavam atrás da vitória e éramos um deles junto com Annabeth e Percy enquanto os outros quinze pareciam apenas querer saírem vivos da corrida ou com o mínimo de ferimentos possíveis.

—O que vem agora?

Murmurei segurando a lança com mais firmeza e sentindo o clima pesado daquela área.

Tinha algo errado ali.

O cheiro ali era estranho,era de areia molhada e meus sentidos pareciam entorpecidos.

Eu estava sozinha ali.

Chamei por Lucius e ninguém me respondeu,procurei por Percy e meu coração se enregelou quando não o vi perto de mim.

Continuei correndo mas a sensação era de quase não sair do lugar,olhava em volta,gritava mas o som era abafado.

Até que eu a vi.

E era igual ao pesadelo que por anos me assombrou.

Com uma camisola branca esfarrapada, pés descalços e olhos vazios ela se aproximava com um sorriso coberto de sangue seco.

O ar me faltava,o chão já não me apoiava enquanto ela vinha pra perto sorrindo.

Me esforcei com o que restava das minhas forças e corri em disparada.

Aquela música ecoando dos lábios dela.

Eu me lembrava de um campo de flores brancas,uma grande casa de pedra,do cheiro do mar e das toalhas cobertas de sangue dentro da bacia de bronze.

Minha consciência ia e vinha enquanto eu tentava afastá-la com a lança.

Eu não conseguia matá-la.

Não de novo.

—Mãe?

Chamei engolindo a palavra em meio a lágrimas.

Seu sorriso se fechou e ela finalmente veio.

Com um cheiro pútrido sua mão fria me acertou me jogando pra longe.

Não era real, não poderia ser real.

Mas era como se fosse.

Eu sentia meu rosto arranhado,tentava conjurar os raios mas era como se eu estivesse numa bolha onde eles não podiam me alcançar.

Eu tinha que sair dali.

Me apoiei na lança bem a tempo de me esquivar.

Numa lufada de ar ela se impulsionou com unhas afiadas que reluziam na noite azul.

Não era humano, não era minha mãe.

Era algo pior.

Comecei a desviar e a lançá-la pra longe com a lança enquanto tentava raciocinar pra achar com o que eu estava lidando.

—Vem brincar Annie,venha minha estrelinha.

Ela chamava com a mão pingando sangue seco,os dentes quebrados,os olhos vidrados presos em mim.

Aquilo era uma provação fora do controle.

Meu corpo estava cansado,minha mente não conseguia chegar a conclusão nenhuma por que ver meu maior pesadelo da infância na minha frente tirava todo o meu foco.

Era isso!

Segurando minha respiração eu ataquei com tudo o que tinha.

Minha lança girava e golpeava fazendo um rio de sangue pútrido jorrar diante de mim,meus movimentos ganhando velocidade e precisão a cada ataque.

Até que eu finalmente acertei.

E meus deuses,como me arrependi por isso.

A figura desapareceu na noite como névoa.

E reaparecia pronta pra me matar.

Eu sentia garras tentando perfurar minha armadura,batendo contra meu escudo,me arremessado no chão enquanto patas invisíveis batiam contra o chão de terra e voltavam a desaparecer.

Eu precisava dar um jeito antes de acabar morta.

Até que finalmente me lembrei de algo que Annabeth fez comigo.

Quando ela me capturou no mercado de peixes ela parou, simplesmente parou.Seus olhos ficaram parados no horizonte e ela parecia procurar não pela imagem mas sim pela energia.

Ela estava rastreando e eu precisava fazer o mesmo.

Aliviei o peso do pé direito pra que ele ficasse sensível a qualquer movimento,fechei meus olhos e aguardei.

O curso do vento parecia alterado,eu sentia pouco cheiro mas sentia a presença da criatura cada vez mais perto.

Girei me impulsionando pra frente e desferi um corte como se empunhasse uma foice.

Uma pata de burro caiu diante de mim.

Com urros que cortavam a noite a criatura era engolida por uma nuvem negra de névoa espessa que parecia distorcer o ar a sua volta.

Eu tinha que acabar com isso de uma vez.

Avancei com o escudo na mão e a lança apontada pra névoa pronta pra atacar, sentido a energia da lança começar a crepitar em meus dedos.

E no segundo seguinte eu estava de joelhos.

Percy estava ali.

Com uma espada atravessando seu peito enquanto ele se contorcia diante de mim.

Até que nossos olhos se encontraram.

Eles estavam desesperados,seus gritos de dor saíam afogados pelo sangue que corria por seus lábios.

Eu estava em colapso.

Diante de mim ele agonizava,eu não conseguia me aproximar,meu corpo tremia,minhas pernas não se moviam enquanto ele rastejava até mim.

—Por que?Por que me deixou

Seus sussurros eram cada vez mais fracos enquanto seus dedos frios tocavam minha bota.

—Percy não...

Seu cabelo estava empapado por lama e sangue,a mancha vermelha saindo de sua armadura cada vez maior enquanto eu ouvia gritos que cortavam a noite.

Percebi que eram meus.

—Annie…

Me encolhi no chão molhado tapando os ouvidos enquanto aqueles olhos encaravam os meus,cada vez mais perto.Até que seus dedos se fecharam em volta do meu pescoço.

Pesavam muito mais do que eu poderia suportar.Suas mãos frias se fechavam no meu pescoço e eu começava a sentir tontura e o ar parava de entrar pelos meus pulmões.

Tentei lutar mas o peso sobre mim era imenso, tentei gritar mas eu não tinha ar.

Pelas mãos frias de Percy eu receberia meu fim.

Tentei meu melhor pra sorrir enquanto relaxava o corpo e fixava meu olhar em seus olhos de mar.

Tudo estava ficando escuro quando uma onda me atingiu.

Em desespero eu me pus sentada buscando desesperadamente por ar enquanto a água levava Percy e o atirava contra as pedras do chão.

—Não!Pare!Vai matá-lo!

Gritei me pondo em pé e sentindo energia crepitando ao meu redor.

Avancei na esperança de salvá-lo e garras de ferro me prenderam no lugar.

Numa trava sufocante eu tentava me libertar sentindo descargas elétricas cada vez mais poderosas emanando de mim.

Eu morreria sem energia mas eu o salvaria.

—Annie volta!Para com isso!É uma ilusão!

As palavras começavam a ficar mais altas,a força das garras ficavam mais fracas enquanto Percy caía de joelhos estendendo sua mão pra mim.

No segundo seguinte uma espada arrancava seu braço.

O grito não veio,apenas uma rajada elétrica que iluminou o chão e fez tudo tremer.

Meu coração sangrava,minhas lágrimas corriam enquanto eu girava minha lança golpeando as garras que se aproximavam de mim.

Cada figura de névoa negra se aproximava de mim,meus gritos ecoavam pela noite enquanto vocês familiares falavam coisas que não faziam sentido.

Até que aconteceu.

Como um martelo gigante de água congelada eu fui forçada a ficar no chão.

Tudo ao meu redor fez um som ensurdecedor de vidro se quebrando,o frio da água entorpecia meus sentidos mas um par de olhos reluzentes estava ali.

Percy estava ali.

Gritei e me pus em pé apontando minha lança e sentindo os raios estourando ao meu redor,cavando buracos no chão.

E ele me abraçou.

Suas mãos frias me envolveram e seu coração batia frenético em seu peito arfante.

—Eu tô aqui,Annie volta pra mim!Abre os olhos!

Os meus encontraram os dele enquanto eu começava a ouvir mais claramente,suas mãos me chacoalhavam enquanto sua testa se crispava em preocupação.

—Annie acorda agora!

Como se eu tivesse sido arrancada de um transe Lucius berrou em meu ouvido e eu voltei.

Tudo ao meu redor fumegava coberto por raios, Percy me abraçava preocupado e eu ouvia o barulho de patas se aproximando.

Arfei voltando a minha consciência e me soltei dos braços de Percy me colocando atrás de Lucius.

—Estamos enfrentando uma Empusa!Ela cria ilusões com nossos maiores medos e vai nos matar se não sairmos logo daqui!

Olhei pro lado e ela estava ali.

Com garras afiadas,uma mistura de mulher com cabelos em chamas e uma pata de bronze ela estava ali.

A Empusa se contorcia no chão gritando enquanto outros campistas estavam presos na ilusão.

—Você tá bem?

Lucius me chamou passando seu braço por minha cintura e colocando seu cantil nos meus lábios.

Reuni todas as minhas forças e me neguei a olhar pra Percy,eu tinha certeza de que ele estava me encarando.

Empunhei a lança e fui avançar quando Lucius voltou a me puxar.

—Se você se aproximar dela ela vai te prender de novo!Precisamos dar um jeito de agir de longe.

Bufei contrariada e tentei invocar raios mas meu cansaço era grande demais pra isso.

—Não posso eletrocutar -eu murmurei irritada.

Me soltei de Lucius e vi Annabeth gritando e atacando o ar.Engoli o coração que martelava e fiz o que era necessário.

—Percy! Vá até Annabeth e a tire do transe,eu vou pensar em algo por aqui

Gritei sem olhá-lo e o vi se mover relutante até o mais próximo que podia.

Suas ondas subiam e desciam cada vez mais fracas,estacas de gelo cada vez menores saíam de suas mãos.

—Ele está cansado demais pra isso.

—Meus deuses!

Lucius gritou se colocando na minha frente enquanto eu via.

Era lindo.

Com corpo de leão, cabeça de águia e garras enormes,um grifo pousava no meio do caos soltando um tipo de piado agudo e muito alto.

A criatura olhava pra mim enquanto se aproximava,seu bico abria e fechava no ar enquanto suas garras caçavam a terra.

“Pode ser útil se ganhar sua lealdade”

Aquela voz conhecida sussurrou dentro da minha mente e eu suspirei apertando as têmporas.

Dei a volta em Lucius e comecei a caminhar lentamente com as mãos pra frente tentando mostrar que não havia perigo.

Até que aconteceu.

Percy berrava caído no chão ao lado de Annabeth que parecia buscar ar num espaço de vácuo.

—Annie,eles foram pegos!

—Oi,você veio pra mim?Pode ajudar?- perguntei dando mais um passo.

O grifo apontou suas garras pra mim e mais um piado ecoou pela noite.

—Por favor nos ajude

Abaixei minha cabeça e soltei os braços ao lado do corpo.

O grifo se aproximou e seu bico tocou minha testa.

Sorri passando as mãos em suas penas afiadas e corri montando em seu dorso.

—Você deve funcionar como meu Pégaso não é?Preciso subir e chegar até eles

Pedi e suas grandes asas se abriram e nos levaram para o alto da noite.

O campo de treinamento estava um caos,tudo destruído ao nosso redor,quase nenhum time restante.

Contando com o nosso deveria haver cinco no máximo.

Engoli em seco sentindo a energia dos relâmpagos renovar minha energia e como um míssil nós nos atiramos do céu.

O ar cortava a minha volta enquanto eu segurava o máximo de energia na palma da mão.

Quarenta, trinta,vinte,dez,cinco…

Ergui a mão pro céu e senti a coluna de energia se formando.

No segundo seguinte o campo de treinamento reluzia branco quase me cegando.

Desviei da melhor forma possível sendo arremessada no chão enquanto o grifo pousava pesadamente no chão.

Na nossa frente uma fogueira feita da criatura morta espiralava fumaça ferida no ar.

Três grupos saíram correndo e gritando desistência, restando o meu time que incluía Lucius gritando pro céu e o de Annabeth que se levantava do chão.

—Você é a menina mais louca que eu já vi!-

Lucius gritava enquanto se aproximava de mim.

Ri abraçada a sua cintura e enquanto Annabeth recobrava a consciência se apoiando em Percy eu acenava e dava as costas a eles.

Eu não aguentava.

Ele a olhava preocupado,limpava a terra nas suas bochechas e arrumava a franja que caía em seus olhos.

Soltei-me de Lucius e voltei a correr.

Eu precisava sair dali.

O grifo impetuoso voava cortando os céus e me acompanhando enquanto raios caíam junto com a chuva fina.

Lucius vinha logo atrás sem falar nada mas eu sentia seu olhar me queimando.

—O que você viu ali? Não adianta falar nada, você viu algo com Percy que foi tão grande que te fez quase aceitar a morte!

Lucius rosnava ao meu lado enquanto eu tentava ignorar as memórias da ilusão que me acompanharia pelo resto da vida.

Logo atrás de nós eu ouvia os passos das duas pessoas que menos eu queria ver.

Uma delas eu abraçaria se pudesse,a outra mataria se estivesse perto de mais.

Não poderia fazer nenhuma das duas vontades.

Corremos,atravessamos o rio evitando a água e passando pela ponte de pedra.

Ao nosso lado estava a meia ilha devorada pelo leviatã que fazia meu coração sufocar no peito.

Chacoalhei a cabeça limpando as memórias que queriam me tomar.

São memórias,apenas fantasmas do que não pode mais acontecer.

Percy vinha pelas águas enquanto nós já começávamos a subir a montanha.

Engolidos pela escuridão no segundo seguinte.

Nico estava aqui.

Quando voltamos a abrir os olhos nós quatro estávamos na enfermaria e Nico se aproximava de nós cruzando os braços.

Daeria vinha logo atrás enquanto eu me aproximava de Lucius.

Com a mesma confusão estampada nos olhos de Percy todos estávamos apreensivos pelo que poderia vir.

Daeria me puxou num abraço sufocante enquanto Quiron vinha logo atrás puxando Percy.

—A competição está suspensa

Dionísio entrou na sala batendo seu cajado.Sua expressão era soturna enquanto ele se aproximava.

—Vocês foram atacados pela Empusa no meio da competição,quando era pra simplesmente correrem pelo campo até chegarem ao topo da montanha.Aquilo não foi coisa nossa.

Quiron explicava e eu deixava minhas pernas perderem as forças e eu sentir o chão de madeira contra as mãos.

—O acampamento está sendo atacado?- Annabeth perguntou visivelmente afetada.

—Ficamos num perigo tão grande que Zeus teve que mandar ajuda

Nico falava enquanto se agachava e seus olhos se fixavam nos meus.

—Por que não me conta o que você viu antes de fritar a Empusa?

Engoli em seco e o empurrei com o resto de forças que eu tinha.

—Eu não quero falar disso -murmurei me levantando.

—Annice nós fomos duramente atacados,você é filha de Zeus então pensamos que poderia ter uma ligação…

—Eu já disse que não quero falar disso!

Gritei e as luzes piscaram estourando uma a uma enquanto eu sentia a eletricidade pulsar ao meu redor.

Olhei pro lado e Percy derramava lágrimas pesadas que marcavam seu rosto sujo de lama.Desviei o olhar e saí pelo corredor.

—Descobrir o que aconteceu e resolver é problema de vocês  e não meu.

Eu não quero me envolver nisso.

Saí da cabana e disparei a correr pela colina trombando com vários campistas desorientados,vi vários prédios destruídos,árvores queimadas e pedras partidas por todos os lados.

Era o completo caos,mas o que havia dentro de mim estava em pior estado.

Entrei em minha cabana correndo e fechei as portas.

Corri pro banheiro arrancando a armadura e me jogando na banheira de metal frio.

Abri as torneiras e logo ouvi as irmãs se aproximando.

Sem nenhuma palavra elas me limparam,me deixaram ali em silêncio enquanto eu via a luz do sol entrar pela fresta da porta e finalmente me levantava.

Troquei-me colocando um vestido azul fluido mas não fui capaz de dormir ou comer.

Meu coração ardia,minhas lágrimas estavam sufocadas no peito enquanto eu ia em direção ao deck.

Sentei-me e olhei o nascer do sol raiar sentindo cada dor e o cansaço excruciante que me consumia,mas meu coração martelava enquanto eu lutava contra as lágrimas que queriam vir.

Ignorando qualquer impulso racional eu agi.

Entrei num pequeno barco de madeira e remei lentamente até a pequena ilha devorada enquanto olhava a destruição ao redor.

Desci do barco e o amarrei numa pedra enquanto descia.

Sentei-me no lado da ilha voltado pra montanha e finalmente depois daquele pesadelo eu me permiti desmoronar.

Chorei sentindo as lágrimas cortarem meu peito, puxei os cabelos,chutei as sapatilhas pra longe enquanto ouvia a água balançar.

As imagens dele morrendo corroíam minha mente feito ácido.

Engoli as lágrimas depois de minutos sem fim e limpei o rosto na manga do vestido.Fui até a beira da água e me arrisquei a mergulhar meu pé no rio gelado.

—Eu sabia que te encontraria aqui.

Ali,parado ,com lábios tremendo,a expressão mais exausta e frustrada do mundo e olhos olhos mais atribulados que eu já tinha visto.

Percy estava ali.


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