Poetic Tragedy escrita por yunhotothejae


Capítulo 1
Poetic Tragedy




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Ela parecia acabada. E estava, de fato.

Mas apenas para quem a via de fora – no sentido figurado, afinal, ninguém a via. Ela nem sequer fazia questão de ver seu reflexo no espelho sujo e manchado. De que adiantava? Tudo que ela veria seria uma garota debilitada que já não parecia ter mais vida.

As olheiras escuras e profundas denunciavam as noites não dormidas, os cabelos pareciam não ver a tesoura há anos e estavam extremamente longos, finos e quebradiços. Sem contar a pele já alva, que agora ultrapassava a palidez; e seus braços eram de uma finura incrível, várias marcas roxas espalhadas por eles, mas ela não sabia de onde vinham, nem mesmo notava. As unhas não eram cortadas há alguns meses, e talvez estivessem mais sujas do que todo o apartamento sombrio, a sujeira entranhada na carne, completamente imundo. Ela não comia; o corpo esquelético deixava as saliências dos ossos à mostra. Uma visão nada agradável.

Mas não era como se isso tivesse alguma importância para ela. Não se importava com muita coisa. Não se importava em ver pessoas, sair, conversar, dormir, comer. Céus, há quantos dias não ingeria nada? Já havia perdido as contas. Assim como não lembrava da última vez que ouvira a voz de alguém. Mas havia duas coisas com as quais conseguia se envolver. Apenas com a caixa e o telefone. Às vezes chegava a passar horas e horas encolhida em um dos cantos da sala escura, apenas encarando o aparelho. Era inútil, ela sabia. O aparelho nunca tocava. Ninguém a ligava.

Heather não saía de casa nunca. Nem mesmo ia à varanda para respirar o ar puro – ou poluído, se preferir – da manhã. Nem mesmo para ver a pseudo-claridade da aurora, ou o sol se pondo tão lindamente como poderia ser. Também não saía com os amigos (não os tinha). Sequer colocava os pés para o lado de fora do apartamento. Também não se divertia, como qualquer outra pessoa normal faz. Mas talvez ela não fosse normal. Talvez ela nem existisse. Talvez fosse apenas um verme imundo que se rasteja preguiçosamente e não pensa, nem reflete, nem “vive”.

E a porta de madeira a encarava, ela podia sentir. Mas não ousava chegar perto, pois aquilo era algo que a assustava. Tinha medo de portas o tanto quanto pessoas têm medo da solidão. Pensava que aquela forma retangular ia sugá-la para um vácuo temporal, tudo fruto da sua mente doentia. Ela também temia o barulho. Qualquer barulho, fosse de vidro se quebrando em mil pedaços no chão, ou de um inseto passando. Insetos. Mal sabia que ela mesma era como um. Estava tão acostumada com seu isolamento patético que às vezes tinha medo até de sua própria sombra.

Entretanto, algo ali não lhe causava medo. Nem calafrios, nem pavor. Era uma caixa. Caixa esta que em sua opinião, tinha mais valor que sua própria existência. A caixa ficava entre uma das junções entre as paredes da sala pequena, e era a única iluminação do recinto. Isso a encantava, atraía. Ela levantou do chão com certa dificuldade. Suas pernas pareciam enfraquecer com o tempo, e de fato estavam. Andou em passos lentos, os pés descalços e frios se arrastando pelo assoalho. Após vários minutos, ela ainda encarava o maldito computador, seduzida pela luz brilhante que vinha da tela. Naquele momento, seu cenho se franziu em confusão. Ela achou que toda aquela luz fosse algo divino. Alguém a estava chamando para o outro lado? E se ela pudesse entrar nele? Era ridículo. Era sem sentido, mas ela tinha aquele tipo de idéia constantemente e todo dia se fazia essa mesma pergunta. Ansiava pelo dia em que poderia finalmente entrar na máquina.

Sentou-se na cadeira. Um sorriso bizarro habitando seus lábios, visto que já não sabia mais sorrir de verdade. Aquele era o único lugar em que se sentia segura. O único lugar onde nada podia assombrá-la. Uma vez que pousava os olhos na tela branca, não conseguia desgrudá-los. Passava dias sem levantar dali. Dizem que o branco é a mistura de todas as cores, mas não lhe refletia nada. Apenas um grande vazio. Tão vazio quando a sua vida, que era aos poucos sugada para um abismo.

A garota outrora tão encantadora, tão cheia de vida, agora estava sendo destruída por uma simples tela branca de um computador. Por Deus, como? Como aquilo era possível? Ela estava beirando a insanidade. Estava perdendo os sentidos, a razão. Estava perdendo a si mesma. Aquilo era melancólico. Era tão imundo quanto... Vermes.

Mas ela não se importava.

Também não se importou muito quando a morte chegou para buscá-la. O capuz preto encobrindo sua face, e a foice pousada em seu ombro. Cantarolava uma música em tom baixo, sorrindo maldosamente para a sua vítima. Não se sabe se a morte é realmente assim, mas foi assim que a garota a viu, ela acreditava. Acreditava que, se ela não podia entrar naquela imensidão branca, era assim que deveria ser. Ela compreendia e aceitava. Só lamentava o fato de precisar deixar seu único bem precioso. E então, ela agarrou um braço ao monitor do computador com a pouca força que ainda possuía, e estendeu o outro em direção à morte, para que a levasse junto com o objeto. E permaneceu ali. Perdendo os sentidos aos poucos, até que seu coração parou de bater.

E ninguém se lembrou.

Ninguém se preocupou.

Nem mesmo seu único e grande amigo que lhe acompanhara na hora de sua morte.

FIM


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