O Barco escrita por Irwin


Capítulo 13
Paradoxos


Notas iniciais do capítulo

Ponto de vista: Adel



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— O que está fazendo? — foi a pergunta que Irwin me fez quando eu mudei a direção em que remava.

— Já dá pra enxergar a próxima ilha. É melhor a gente deixar o barco em outro lugar menos chamativo que no meio da praia, pra que não apareçam mais doidos como os de antes.

— O tal preço da fama... — ele sussurrou. — Tente ver pelo lado deles. É como nos disseram, deviam estar esperando por você há anos...

— Eu tento entender, mas acho que não gosto disso mesmo... além do mais não quero que acabe sobrando pra você de novo.

— Humf...

Remamos devagar, contornando a praia a alguma distância, e não demoramos a achar um lugar discreto junto a um monte de pedras, onde poderíamos descer e deixar o barco sem risco de sermos vistos. O único problema foi a longa caminhada que começava a partir dali, por toda a extensão da praia.

Pensei que Irwin se manteria calado a maior parte do caminho, como de costume, mas desta vez foi o primeiro a se manifestar:

— Ouça... é sobre aquela Utopia...

— Sim?

— Você tem algum plano, tipo uma rota que pretende seguir, ou vai continuar procurando às cegas?

Ele perguntou isso enquanto olhava para o mapa que eu tinha dobrado em minha mão. Naquela manhã, Flint, o dono da taverna, não só nos ajudou a escapulir da ilha sem sermos vistos pelos seus amigos ranzinzas, como também nos presenteou com seu mapa, pra que nos desse ao menos um pouco de luz durante a jornada.

Apesar disso, ainda nem tinha parado pra analisá-lo melhor, pra dizer a verdade.

— Pior que nem sei... você acha que existe uma ordem certa em vez de só ir pra ilha mais próxima?

— Não sei, foi só uma pergunta casual — ele disse.

Mas eu sabia que não era. Depois do que aconteceu, acho que ele devia estar mais interessado do que nunca em chegar à terra firme pra nos separarmos. Talvez eu não devesse prolongar tanto a ansiedade do Irwin e seguir com o barco de uma vez na direção do continente, já que era o que ele queria.

É... acho que faria isso sim:

— Irwin, olha, vamos voltar e ir pro cont... hã?

Ele tinha sumido de novo! Eu não chegava a ser autista ou coisa assim, mas às vezes viajava demais enquanto pensava e isso me desligava totalmente do que acontecia ao redor, ainda que minhas pernas continuassem andando. Estava agora sozinho, nas proximidades da entrada de outra minúscula aldeia quase idêntica à anterior. As ilhas daquele arquipélago não deviam ser muito diferentes umas das outras...

Sendo assim, não foi difícil encontrar outra taverna parecida com a de Flint. Sem dúvida, era bem melhor poder ir e vir em meio aos aldeões sem ser visto como algo de mais. Ou pelo menos, era o que parecia, mas pouco depois de entrar pela porta ouvi vozes que já me deixaram em alerta:

— O Barqueiro existe sim! — gritava alguém.

— Ahahahahaha!

— Claaaaaarooo que existe!

— Ele tá lá em casa! Eu o convidei pra um almoço especial! Hahahahaha!

Quem disse a primeira frase foi um garotinho com uma voz chorosa e punhos cerrados. Outros meninos grandões à volta dele, pra não dizer quase todos na taverna, gargalhavam do que estava dizendo. Interessante... então existiam aqueles que duvidavam da tal lenda, afinal...

— Meu pai sempre disse... — o menininho continuou, lutando consigo mesmo pra não chorar. — ... meu pai sempre me dizia que o Barqueiro apareceria... ele sempre dizia isso quando era vivo!

— !!!!

Senti um arrepio na espinha. O garotinho saiu correndo enquanto os outros ainda riam dele. Quando passou por mim, não sei dizer, mas meu corpo simplesmente se moveu:

— Não importa o que eles disseram — balbuciei, abaixando-me também sem me dar conta. — ... você não pode deixar de acreditar no que seu pai te disse só por causa disso.

Ele ficou um tempo parado me olhando com aqueles olhos que tinham algumas pessoas de Lucidia, cheios de alguma coisa calorosa. Então, sorriu e enxugou o rosto:

— ... Obrigado, moço

Só depois que ele saiu que percebi o que tinha ocorrido

"...Mas o que estou fazendo?..."

Antes que chamasse a atenção de alguém, me recompus e continuei avançando. De certa forma, achei melhor que Irwin não estivesse por ali. Apesar de não poder dizer o mesmo dele, eu gostava muito da sua companhia, mas confesso que, naquela hora, tudo que queria era um intervalo numa mesa só pra um. Precisava por as ideias no lugar... de novo. Mas pra isso precisava do álcool... um paradoxo que me perseguia.

Era incrível a forma como as pessoas daquele mundo me tratariam se eu me apresentasse... o Barqueiro era quase como um deus pra eles.

— Deus... eu... hahahaha — e me virei pro balconista. — Ow, pode trazer mais uma!

Não, não estava contente. É verdade que por muitas vezes eu pensava coisas. Coisas que a maioria das pessoas se apavorariam se viessem a tomar conhecimento. Querer dar um jeito em toda a podridão daquele mundo... isso não era a função de alguém que se dissesse deus? Mas o Barqueiro era algo diferente. Era um deus que tinha como função buscar por algo que eu não consigo acreditar que exista. Utopia... a felicidade... isso não existe. Ou pelo menos deixou de existir, pra sempre, dentro de mim...

Mais uma garrafa se foi. Já estava indo pra terceira. Lembro como no começo eu mesmo me assustava com a rapidez em que as consumia, até que depois foi se tornando corriqueiro. Mas voltando... a questão era o que já tinha dito antes, como posso sustentar as esperanças de vai lá se saber quantas pessoas que creem nessa Utopia? Pior... pessoas que creem que somente eu, que não creio, posso encontrá-la... outro maldito paradoxo.

Eu terminava a terceira garrafa com a única garantia...a única coisa certa que havia na minha mente:

— Sou mesmo desprezível...


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