Cassandra: My Muse Is My Hero escrita por AHB


Capítulo 1
My Muse Is My Hero




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"So play the game 'Existence' to the end

Of the beginning, of the beginning."

(Tomorrow Never Knows - Beatles)

Guardou o lápis no porta-trecos e depositou com cuidado o caderno na escrivaninha do quarto. Registrou mentalmente que no dia seguinte passaria tudo a limpo no computador. Bocejou com muita satisfação e foi dormir.

No escuro do quarto, a pouca luz da iluminação pública que entrava por uma fresta da janela, iluminava o nome caligrafado caprichosamente sobre o texto: "Cassandra".

-§-

Cassandra estava muito bem acordada. Na verdade, nunca antes em sua vida, havia se sentido tão viva. A sensação era como se tivesse acabado de nascer novamente, ou despertar de um coma profundo, se é que coisas desse tipo são passíveis de explicação.

Olhou ao seu redor. Não lembrava o que estava fazendo naquela sala cinzenta. Passou os dedos pelos longos e sedosos cabelos negros, então andou em direção à porta e a abriu.

- Senhorita! Senhorita! Depressa, por ali! - o tripulante uniformizado do SS Adventurous acenou para ela, apontando para as outras pessoas corriam, desesperadas, pelo corredor das cabines de passageiros mais abastados.

- Onde estão seus pais, menina? - falou uma senhora de meia-idade, que havia acabado de sair da cabine vizinha carregando o máximo de joias e roupas que podia carregar.

- Não sei! - Cassandra respondeu, sendo empurrada pela multidão desesperada. Ninguém sabia o que estava acontecendo, alguns diziam que era um incêndio na casa de máquinas no elegante navio turístico, outros gritavam que haviam batido em uma formação de rochedos por causa da maré baixa, em uma sinistra imitação do famoso naufrágio de 1912.
            Quando alcançou o convés do navio, a jovem percebeu que o caos era de proporções épicas. As senhoras muito educadas que havia conhecido no salão de chá brigavam umas com as outras por seus lugares nos botes salva-vidas e reclamavam toda vez que era permitido que uma pessoa da terceira classe se juntasse a elas.
            - Não queremos pulgas aqui! - gritavam.
            Chocada com o comportamento das pessoas, porém ciente que deveria salvar a própria vida, Cassandra correu em direção à popa do barco, onde havia mais botes e uma dispersão maior. Lá seria mais fácil conseguir abrir caminho e escapar do desastre.
            Gritos, palavrões e preces, pareciam um uníssono indistinto de terror. Os motores do navio geravam um barulho alto e terrível, que fazia toda a estrutura tremer e os passageiros terem pouca estabilidade sob os pés.

Cassandra procurava correr o mais rápido possível e ainda manter-se de pé, ao mesmo tempo que evitava ser carregada para longe de seu objetivo pelas pessoas desesperadas. Nesse momento ouviu, por cima dos gritos humanos e roncos dos motores, um choro infantil vindo de algum lugar próximo.
            Olhou para os lados e viu uma criança de uns quatro anos, esquecida atrás de uma pilha de cadeiras de descanso caídas. Perguntou para a garotinha se ela havia visto os pais e como ela abanou a cabeça, percebeu que tinham agora alguma coisa em comum. A julgar pelas roupas velhas que a pequena vestia, os pais dela deviam ser gente da terceira classe que ficou para trás.

- Não se preocupe. Vamos encontrá-los - disse Cassandra, embora acreditasse que a criança jamais veria os pais novamente. Ainda assim, com pena da menina e revoltada que ninguém ainda tivesse dado atenção a ela, a pegou no colo e prosseguiu seu caminho para a popa. Estava bem perto, quando um grupo correndo na direção oposta, as prensou contra as grades de proteção do convés.
            Nesse momento, uma grande explosão na sala de máquinas fez o barco balançar de tal maneira que aqueles mais próximos à borda simplesmente caíssem no oceano. Cassandra sentiu que iria cair por cima da grade metálica. Um rapaz e uma senhora tentaram puxar a moça de volta, mas Cassandra conseguiu apenas entregar a menininha para as mãos estendidas.
            - Ela vai ficar bem! - ouviu o jovem gritar.
            Então estava afundando na água fria e escura do oceano.
            As bolhas escapavam da boca da moça, levando o ar embora muito rápido. Seria mais fácil se morresse de uma vez, mas Cassandra tinha que lutar.

Ela bateu com força no latão, chutou as pernas do captor. Ele puxou a moça de dentro do tanque de água e a jogou no chão de concreto.

- Schlampe! - ele xingou. Cassandra conhecia bem a língua alemã e sabia ser um insulto - Quem te mandou?

Ela tossiu um monte de água e então desafiou o tenente-coronel. Ele não percebeu, mas um ligeiro reflexo avermelhado faiscou nos olhos dela. Otto Frosch, colecionador de fotos de campos de concentração mandadas com dedicatórias de seu amigo pessoal, Josef Mengele, não fazia ideia da fúria que desencadeava na jovem. Ele teria sido mais esperto se a tivesse matado assim que havia descoberto que ela não era uma das criadas do palacete parisiense que havia tomado para si durante a ocupação da França.

- Nazi schwein! - ela gritou em resposta - Vim porque não tolero sua laia.

Ele chutou com força as costelas da jovem. Ouviram Helga chamando do átrio. Na verdade, Helga estava fazendo um escândalo no átrio. O alemão deu mais um chute na moça caída e, depois de amarrar os pulsos dela numa corda presa a uma das colunas do porão, foi ver o que a amante queria.

Assim que escutou a porta de madeira bater, Cassandra levantou e tratou de fazer o possível para desamarrar-se. Estava dolorida e cansada, mas havia sido treinada para resistir à extenuação física. Além disso, estava irritada consigo mesma. Havia conseguido infiltrar-se com perfeição na casa daquele miserável da Gestapo. Com seu alemão fluente e ar inocente, passara-se por uma empregada austríaca dos antigos moradores, que haviam abandonado tudo e fugido do continente logo no inicio da guerra.

Nessa noite em questão, havia esgueirado-se sorrateiramente para dentro da suite principal da mansão e estava pronta para silenciar o bastardo, quando a amante deste resolveu acordar. Cassandra tentou fugir, mas foi impedida por dois guardas. Frosch dissera aos subordinados para que a arrastassem para o porão, acrescentando que lidaria sozinha com a moça, pois “tratava-se apenas de uma menina”.

Cassandra riu amargamente. Ela havia se voluntariado como espiã dos Aliados e fora treinada pelos melhores da inteligência inglesa. Havia aprendido com mestres soviéticos também. Sua missão era interceptar a correspondência do inimigo e auxiliar a resistência francesa com informações. Porém, aproveitando-se do sucesso de seu disfarce, havia decidido por conta própria que livraria o mundo de Otto Frosch.
            Felizmente, embora o militar tenha percebido com rapidez que ela era uma espiã, não havia dado o devido valor à moça. Por isso, não percebeu que a lâmina que Cassandra teria usado para perfurar sua garganta havia sido habilmente disfarçada com o recurso da jovem tê-la deslizado para dentro do sapato, pouco antes de ver-se diante dos guardas.

Ouviu Frosch gritando com Helga. Os dois estavam discutindo em voz alta. Com certa dificuldade, Cassandra conseguiu pegar sua lâmina. Começou a cortar o nó. Tinha que ser rápida. Não sabia por quanto tempo duraria a discussão do casal.

Ela ouviu um último grito feminino e um tiro. Faltava só um pouco. Daí fugiria pela pequena janela de ventilação. Não a veriam em meio a escuridão. Se entrasse na floresta atrás da propriedade e corresse em direção ao leste, encontraria membros da Resistência dali a uns duzentos ou trezentos metros. Outro motivo para ter decidido acabar com Frosch, aliás. Não haveria maior auxilio à Resistência que eliminar o cabeça de seu próximo alvo.

- Was machst du?! - um soldado alemão havia entrado no porão. Antes que ele conseguisse puxar seu revolver, um brilho prateado cortou o ar e a lâmina perfurou-lhe o crânio. Cassandra pegou a Luger P08 das mãos do nazista morto. No momento em que empurrou a porta de madeira, seus olhos negros cruzaram com o maligno brilho azul dos olhos Otto Frosch. Ela disparou o gatilho, duas vezes. O sangue escorreu ao longo do peito do tenente-coronel e ele caiu.

O som de novos tiros e gritos puderam ser ouvidos, vindos do elegante jardim. A Resistência estava invadindo o palacete. O brilho do fogo brincou por um pouco nos vidros das janelas, pouco antes deles estourarem devido às explosões de morteiros. Cassandra respirou fundo o odor de pólvora e sangue e correu dali.

- Cassie, tudo bem, ma chère? - Jean perguntou, assim que reconheceu a moça se aproximando dos soldados Aliados. Ela vinha trazendo a divisa e a identificação do tenente-coronel em uma das mãos. Na outra, a Luger P08 retirada do corpo morto do soldado reluzia a parca luz do palacete em chamas.

O tom avermelhado do sangue do inimigo combinava com seu olhar fulminante. Cassandra baixou a cabeça, guardando a Desert Eagle no coldre. Em silêncio, ela passou pelos corpos cheios de furos dos saqueadores que vinham aterrorizando Dirtytown. Além de tudo, estava muito bem vestida, com um traje completo de couro de brahmin, escuro e muito bem curtido, possuindo um certo brilho acetinado.

            - Cassie, você é a face encarnada da morte. - disse Jean, uma jovem negra estonteante, líder dos mercenários locais, aproximando-se da mulher de cabelos escuros e a beijando nos lábios. Cassandra correspondeu apaixonadamente ao beijo de Jean, a sombras longilíneas das duas projetando-se sobre o solo estéril do deserto irradiado.

            O cataclisma nuclear havia varrido a Terra de vida e esperança. Cada dia era uma guerra por sobrevivência, uma luta selvagem pelos poucos recursos que haviam restado parodiando os motivos que haviam levado às nações apertarem os botões vermelhos a tantas décadas atrás. Os fracos e não adaptados pereceriam, essa era a única lei restante. As duas jovens mulheres sabiam ser fortes, adaptadas à sobrevivência. Juntas, suas chances eram maiores, então celebravam com entusiasmo a união de duas guerreiras viajantes das planícies secas.

            Sua união e sucessivas vitórias atraíam porém olhares invejosos. Ciúmes e rancor marcavam mais do que nunca as vidas humanas. Tão logo, as jovens amantes foram atingidas pelo ódio alheio. 

            Cassandra secou as lágrimas, as únicas que derramara em toda sua existência, ao deparar-se com sua linda Jean enforcada, sem vida, diante da pequena casa que dividiam no alto do desfiladeiro que protegia Dirtytown. Ela certamente havia lutado até o último momento, pois dois corpos que Cassandra não conhecia jaziam aos pés da morta. A jovem já havia visto aquele estilo de assassinato: caçadores de cabeças, pessoas que haviam tornado-se selvagens após a guerra. Antes que pudesse jurar que caminharia até o fim do mundo em busca daquele que enviara os caçadores, viu-se cercada por quase trinta deles, armados com facões e lanças. Ódio expresso em todo seu ser, Cassandra empunhou a Desert Eagle. Faria cada um dos matadores pagar por sua Jean.

Era assim que as coisas eram naquele lugar infernal.

O gosto salgado das lágrimas misturado à poeira foram varridos pelo vento e pelos movimentos ágeis e furiosos da guerreira. Os homens caiam ao chão, atingidos por balas ou golpes mortais. Eram mais do que ela podia enfrentar, ainda que parte do grupo estivesse morta ou fatalmente ferida, e logo Cassandra viu-se encurralada, diante da borda do precipício. Porém, ela nunca se entregaria. Sorrindo como se estivesse prestes a ver os olhos brilhantes de Jean, ela escolheu lançar-se na queda livre.

Fechou os olhos, pronta para o fim.


            Estava a mercê da gravidade. Um frio sem fim pressionava-lhe o ventre.

Sentiu o corpo escorregando no vazio, como se mudasse do sentido vertical para o horizontal. Cada vez mais devagar, até restar uma sensação pacifica, de perfeita leveza e integração com o ar. Percebeu que estava flutuando.

- Funciona! - Cassandra falou, abrindo os olhos e exibindo um sorriso triunfante. A máquina-voadora mais pesada que o ar que havia construído junto de seu pai adotivo era perfeitamente funcional. Girou com os pés uma manivela que dava corda no fole responsável em manter abertas as asas traseiras do dispositivo. Depois puxou as cordas que direcionavam as asas frontais.

Havia acabado de transpor uma barreira com qual a humanidade havia sonhado desde o inicio dos tempos. Olhou para baixo, viu o homem de longas barbas e trajes renascentistas acenar do alto da colina que haviam escolhido para fazer o experimento. Ele havia discutido por dias com a jovem, falando que deviam usar um empregado no teste da engenhoca. Talvez o garoto Pedro, embora ele andasse mais relutante depois de ter quebrado um braço com a tentativa anterior. Só que Cassandra havia insistido, teimado e afirmado várias vezes que não havia o que temer, pois dessa vez estavam corretos. Admitia que dera um salto de fé em relação à invenção do pai, mas algo a dizia que iriam conseguir.
            Sorrindo, ela fez uma curva no ar e retornou para a colina, diminuindo a potência do fole para que pudesse aterrissar, com surpreendente leveza, sobre a grama fofa. Viu o pai se aproximar, sorrindo e batendo palmas.
            - Cara Figlia! - ele disse - Conseguimos, nós conseguimos!
            Ele ajudou a moça a soltar os pedais e o cinto da pequena máquina. Logo, haviam desmontado a estrutura feita de seda chinesa e a madeira mais leve e flexível que puderam importar da América Portuguesa recém descoberta. Voltaram para casa conversando sobre as viagens que fariam. Pretendiam passar por Florença, Veneza e Milão, demonstrando a invenção nas praças das cidades.

  Já próximos do pequeno vilarejo onde viviam, o assunto havia desviado-se para o que a criada, Fiorena, havia preparado para o jantar.

  Cassandra sabia que eram mal vistos pelas pessoas do local, pois seu pai descendia de uma família nobre cujo nome havia caído em decadência a tempos, acusada de bruxaria e judaísmo. O homem repelia as acusações, dizendo que seu avô era um estudioso do mundo natural, evidentemente criado por Deus, e doava generosas somas à paróquia local.

Porém, logo notaram que havia uma multidão parada diante do casarão onde Cassandra vivia com o pai. Fiorena estava escorada junto a porta e chorava copiosamente. Em frente ao povo, estava o pároco local, que pouco fazia para esconder sua pecaminosa atração por Cassandra.

Ele discursava em voz alta, sendo aclamado cada vez que repetia sobre a ligação dos moradores daquela casa com forças malignas e fazia alegações mentirosas sobre seu comportamento moral. A moça ouviu ao seu pai adotivo dizer para que corresse, porém ela hesitou em deixar sua única família. Não demorou que fossem vistos pelo povo e carregados até o pórtico de entrada. 

- Entregue-se à Santa Igreja e viva, jovem Cassandra! - o pároco disse, abaixando o tom de voz em seguida - Entregue-se a mim e viva, minha querida.

- Nunca! - Cassandra gritou, pondo-se ao lado do pai e de Fiorena. Os aldeões a vaiaram e empurraram os acusados para dentro do casarão. Os moradores do vilarejo juntaram rapidamente palha e madeira bem no centro do salão de entrada, então atearam fogo à construção. Repletos de tragédia, os olhos de Cassandra roubavam a luz da grande fogueira, enquanto ela chorava ao ver a máquina-voadora ser tornada em um montinho de brasas.

  - Sinto muito, moça. - falou o bombeiro que havia a resgatado. O fogo havia consumido a casa e eles não haviam conseguido salvar absolutamente nada, exceto a jovem moradora e Mr. Spock, um gato angorá que viera junto com a habitação quando Cassandra a comprou.

   Olhou inconformada para os restos chamuscados do que costumava ser seu lar. A maior perda ali eram seus livros. Tinha uma porção deles e agora não passavam de um monte de cinzas. Cassandra sentou no meio-fio da rua e cobriu o rosto com as mãos. Tinha uma vida muito solitária. Pouco contato com a família, um emprego do qual detestava, poucos amigos... Sem sua casa, não tinha para onde ir. Sem os livros, não tinha onde refugiar-se. Sentiu Mr. Spock roçar o corpo peludo entre seus tornozelos. Acariciou entre as orelhas do gato. Para onde iriam agora? Ela não conhecia ninguém a quem pedir abrigo.

   - Moça, encontramos isso. Pelo menos sua caixa de correio sobreviveu. - um outro bombeiro entregou a ela um pacote intacto. Leu primeiro o remetente. Havia um endereço próximo, mas nenhum nome. Imaginou tratar-se de algum erro da agência de correio, ou alguma brincadeira de mal gosto. Sentiu um misto de ansiedade e medo quando viu seu nome e endereço caligrafados no espaço do destinatário. Com os dedos trêmulos, abriu a encomenda. Havia um grande calhamaço de papel impresso lá dentro. Na frente do bloco de folhas, uma única palavra destacava-se no centro da página: “Cassandra”.

   Assustada, a jovem virou a primeira folha e começou a ler.

           

  Uma plaquinha escrito “nerd escritor” pendia sobre a porta do sobradinho localizado no endereço indicado no pacote. Por algum motivo, Cassandra não se surpreendeu com isso. Tinha o calhamaço apertado contra o peito e era acompanhada de perto pelo angorá. Respirou fundo. Sentia-se um pouco como todas as heroínas que o autor ou autora que morava ali havia visto nela.

  Cassandra havia lido muito rápido todas aquelas histórias. Mil decomposições de si mesma em tantas faces que ela mesma desconhecia.

Será que a pessoa lá dentro fazia ideia do que a fizera passar para chegar até ali? A minima ideia? Se soubesse, era bom que tivesse roído as unhas e torcido por ela a cada palavra que escrevia, ao invés de ficar dormindo como uma grande bolha preguiçosa. E também era bom recebê-la com um grande abraço, pois ela estava muito agradecida. Quem quer que fosse, com habilidade de um mago das letras, havia mostrado as forças e fraquezas de Cassandra. A havia feito rir e chorar, de si mesma, das tantas outras que poderia ser. Sobretudo, havia lhe dito para jamais desistir. E lutar sempre. 

Sem hesitar, ergueu a mão branca e delicada e bateu levemente na porta.


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