Titânia escrita por Ryoko_chan


Capítulo 1
Titânia


Notas iniciais do capítulo

Cassandra é a Musa que vive em cada escritor, e esta aqui é uma das minhas Cassandras.

Agradeço à Lara Utzig por ter me ajudado revisando este conto! Obrigada mesmo, poetiza dos cabelos vermelhos!



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Ela aparece para mim em cada noite sombria, pouco depois dos primeiros goles. Tal qual um espectro, reflexo de meus desejos e necessidades, a presença daquela Filha de Danann mostra-se como algo além da realidade e da compreensão. Vejo-a tão longe, tão solitária quanto eu, mas de alguma maneira tão completa e tão plena! Ah, Titânia! Eterna bela musa coberta em véus de mistério que surge em meus mais desesperados momentos de devaneio.

Sempre.

Sempre da maneira mais peculiar e ao mesmo tempo familiar, possível e impossível. Exatamente como um pensamento repentino e ilógico a passear por minha cabeça; como aquele sussurro diabólico que vem de lugar algum e enche a mente do escritor de histórias a serem contadas e versos a serem cantados. Geralmente é nessa confusa epifania de criação e perdição que meus olhos cruzam com os dela.

Repentinamente.

Eu tremo.

Sinto o agradável e aterrador arrepio percorrendo minha espinha, aquele mesmo que anuncia a iminência de grandes e perigosos acontecimentos. Miro-a com cuidado, de relance a princípio, pois sou tolo e apaixonado. Tímido, preocupado, com receio de que caso eu a olhe por tempo demais a magia se desfaça e ela desapareça para sempre. E por isso, com cautela extrema, continuo por algum tempo mais, bebo mais alguns goles em busca da coragem necessária e por fim a miro nos olhos.

Verdes e puros.

Os olhos que de alguma maneira convidam ao pecado, ao hedonismo, à bebida que tenho diante de mim. Tão lívidos em seu tom, mas tão entorpecentes quanto o álcool e mais doces que o açúcar banhado pelo láudano. Viro o restante do meu copo e contemplo a infinitude destes olhos que possuem o poder de me fazer delirar, viajar, entrar nos deslumbrantes paraísos só visualizados através da imaginação, da arte e da insanidade.

Olhos que possuem também o poder de me matar.

E que me matam a cada segundo que passo olhando-os, perdendo-me neles, caindo nos verdes abismos de sua alma e de seus venenos. E que me fazem quase chorar de emoção e pular de alegria quando enfim retribuem ao meu desajeitado flerte e vem mais para perto de mim.

É aí que ela anda na minha direção. Muito embora observando-a, jamais poder-se-ia inquirir se ela de fato anda, uma vez que fadas não foram criadas em toda graça natural para andarem sobre a Terra, mas sim para serem sopradas pela brisa calma, e quando quisessem, correrem com seus pés descalços sobre as asas do vento. Pois ela voa mesmo quando anda, com a graça desajeitada dos pássaros que pousam ao chão, com o flutuar rente das grandes e invisíveis coloridas asas de fada.

E quando já se encontra bem ao meu lado, ela sorri.

Sorri seu sorriso suave e malvado, típico dos lábios pequenos e dos anjos caídos. Forma nas bochechas graciosas covinhas, como se nelas houvesse alguma pura inocência contendo a boca perversa da qual eu tanto desejo experimentar. Aquele sorriso feito de poder, que me faz desejar beber mais e mais, e beber diretamente dos lábios pálidos enquanto toco a brilhante pele pálida e miro-lhe atentamente os olhos pálidos... Pois pálida ela é toda.

Exceto pelos cabelos.

Vermelhos.

Suas encantadoras, longas e volumosas madeixas, enroladas em um tom que queima a carne, o olhar e o pensamento. E queima com tanto ardor! Queima mais do que as labaredas infernais queimam os pecados dos impuros, mais do que os desejos secretos fazem pulsar e arder o baixo ventre! Pois estes cachos macios e divinamente moldados me causam frêmitos de insensatez aliados a compreensíveis momentos de loucura e agonia.

E minhas mãos tremem em necessidade, erguem-se vagarosamente, tocam uma mecha enfim.

E neste ato, tão simples e tolo, enche-se o recinto do perfume que se desprende de seus cabelos. O aroma da sálvia e da losna, e de qualquer outra erva que tenha unidos o poder de perfumar e drogar, iludir os sentidos e criar visões – fantasmagóricas, oníricas, eróticas, infernais e surreais.

Pois quando sinto o forte e misterioso perfume adentrando minha alma através do parvo sentido que é o olfato, compreendo como se eleva a percepção, como se amplia a imaginação e como me corroem os medos. Tal qual um paranóico, olho ao meu redor tentando reconhecer como real o nosso cenário, e assim talvez encontrar algum alívio na certeza de que posso tê-la em qualquer lugar, e não apenas em minhas alucinações.

Faço isso porque sou inútil e não consigo olhar para meu interior, pois se o fizesse, vê-la-ia lá, dentro de mim, agarrada como víbora com a presas firmes em meu coração.

Pois quando enrolo em meus dedos a maciez daqueles cabelos, enrolo-me todo nas cruéis chamas punitivas que combatem meus audazes e pouco castos pensamentos acerca da imaculada rainha pálida. Mas, mais do que queimar severos, aqueles cabelos acolhem de alguma maneira piedosa, doce e cálida as mãos impuras que se encostam à eterna donzela. Seus cabelos me redimem, confortam-me e me libertam de toda culpa e sofrimento, mesmo eu detendo a mais pecadora das almas.

Sendo os ruivos cachos as chamas do meu perdão, são também os carrascos de minha punição. E por mais doce que seja sua textura – porque tão doce quanto, minha rainha é maligna e perigosa – envolvem-me sempre em sua contrição.

Pois quando vejo aquele sorriso em um perverso intento sedutor mesclado ao sutil deboche por minha ridícula falta de jeito, imagino ser aquela fada um demônio. Não por sua maldade, não pela dor fina que causa em meu coração, mas sim por sua capacidade em me tentar, e me fazer desejar o pecado. Apenas de ver aquele sorriso provo de seus lábios sem receio, afogo-me em seus beijos e me entrego à luxúria de minhas mais insensatas fantasias.

E devorando em pensamento o sorriso dos lábios pálidos, juro: ouço no silêncio a lânguida voz da virgem clamando por mim! Apenas no ato de contemplá-la, torno-me o amante de minha rainha e a defloro por noites e noites seguidas.

Pois quando vem a minha direção, vejo-me logo perdido em um sonho sem fim. O sonho povoado pelos mais encantadores e admiráveis seres. Todos sílfides como a musa, habitantes de um mundo feito de alegria infinita, que obriga todas a cantarem e dançarem e celebrarem a si mesmos e à natureza. O maravilho reino de Arcádia, onde árvores dão frutos eternamente e flores jamais murcham. E nunca se esvai a beleza, mantida pelas fontes de vinho e pelos fios prateados de Lua que banham a todos sem parar.

Sendo levado por seu flutuar divino feito de ar, inspiro seu andar e suspiro seus movimentos. Passo a viver dela, e nas velozes asas do vento, chegamos juntos ao Mundo dos Sonhos para reinar eternamente.

Pois quando olho nos seus olhos, aceito minha sina. Perco-me, e tal qual perco minha alma, pois bebo do doce veneno de vaidade e orgulho, entrego-me por inteiro e pulo em seus abismos. Deixo de ser eu, deixo de ser meu. Passo a ser dela, da rainha do infinito e da minha inspiração. Crio, crio, crio! Tal qual um deus, faço universos e pessoas, e destruo-os a meu bel-prazer. Escrevo e declamo, e proclamo o destino.

E faço.

E morro.

Morro, pois depois de tudo isso, como a cada amanhecer, minha Titânia some.


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