Sombras sobre Sinéad escrita por Dani


Capítulo 15
Corpo




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Dois dias passaram-se desde o ocorrido, no entanto, as fortes cenas ainda flutuavam em minha mente como se tudo estivesse acontecendo novamente diante de mim, também atormentando minhas longas noites. Mesmo conseguindo descansar apenas por poucas horas, isso não foi empecilho para minha rápida recuperação, afinal, meu ferimento não fora grave.

      Às vezes permanecia contemplando o céu nebuloso por horas a fio e imaginando que estava dentro de um pesadelo demorado, do qual esperava escapar a qualquer instante. Tudo o que procurava naquele momento era a paz de espírito, mas como iria encontrá-la após ter presenciado tanta dor, tanto sofrimento? Torcia para que a calmaria das nuvens, o cheiro delicado das flores e o sábio som do vento apaziguassem meu coração.

      Não deveria deixar que a tristeza e o desânimo derrubassem-me, era o que Amber sempre dizia e sempre me fazia sorrir quando ela completava: “e carregue uma faca”. Eu tentava seguir seus conselhos o máximo que conseguia, entretanto, muitas vezes eu não possuía a força necessária e recorria aos seus braços em busca de um refúgio caloroso. Estar com ela faz-me sentir conforto e harmonia, equilíbrio e dedicação. Eu gostava da sensação e muitas vezes a vontade de vê-la quase me sufocava (isso é normal?). Esperava que pudesse encontrá-la antes de ir à casa de Raj amanhã (sábado).

      Mas, naquele momento, eu não desejava pensar muito, queria apenas sentir a beleza natural daquele lugar (por que não o descobri antes?). Era um vasto gramado cujo algumas flores cresciam, adornavam e ainda transmitiam um cheiro doce e delicado. O sopro do vento sussurrava aos meus ouvidos o segredo para alcançar a paz, ao mesmo tempo em que arrastava as folhas soltas. Os tímidos raios de Sol que conseguiam ultrapassar as cortinas de nuvens aqueciam e iluminavam o local de modo sutil. Este gramado, no qual eu estava deitado, situava-se afastado do centro de Sinéad e talvez por essa razão eu não o conhecesse antes.

      Em meio a todo esse cenário, eu quase adormecera, no entanto, comecei a escutar passos pela grama. Eu não me levantei para visualizar a pessoa aproximando-se, simplesmente esperei e logo minha curiosidade fora saciada. Amber estacionou ao meu lado e permaneceu observando-me de cima. Ela trajava um casaco preto comprido com capuz, camisa do Pink Floyd, short, meia arrastão e All Star; seu cabelo estava amarrado em um comprido rabo de cavalo, expondo ainda mais as belas maçãs de seu rosto delicado. Seus olhos esmeralda fitaram-me por um momento antes dela expor sua voz sensual e doce:

      - Não sabia que você também vem aqui.

      Após isso, ajoelhou-se próxima a mim e beijou-me delicadamente nos lábios, acomodou-se, deitando-se ao meu lado.

      - Conheci este lugar há pouco tempo. Você já o conhecia? – perguntei.

      - Sim. De vez em quando costumo vir aqui apenas para apreciar a bela paisagem natural. Lugares como este devem ser bem valorizados, afinal, infelizmente, tornam-se cada vez mais raros no mundo.

      - Você faz bem, este lugar é tão belo e tranquilo, tive sorte por tê-lo encontrado em um momento tão difícil.

      - É uma terapia. – Ela sorriu. – E seu ombro, já está melhor?

      - Recuperando-se à medida do possível. Levei alguns pontos, por isso, não posso fazer muito esforço.

      - Deixe-me vê-los? – perguntou.

      Estranhei a pergunta por um momento (por qual motivo Amber iria querer examinar meus pontos?), mas relembrei que seu pai era um estudioso da área de medicina, e possivelmente, transmitira alguns conhecimentos à filha. Pensado nisso, assentei-me na grama e retirei o casaco e minha camisa. Amber acomodou-se ao meu lado e analisou meu ombro.

      - O ferimento não é grave – afirmou. – Mas cuidado para não infeccioná-lo. Você tem passado o medicamento?

      - Sim.

      - Ótimo. Então não terá muito com o que se preocupar. – Ela sorriu graciosamente. – Eu nunca o vi sem camisa, esta é a primeira vez. Mesmo você sendo magro, tem o abdômen bem definido.

      - Você fez isso apenas para ver-me sem camisa, não é? – perguntei.

      Amber não respondeu, olhou em direção ao céu com um sorriso travesso estampado em seus belos lábios.

      - Espertinha... – brinquei. – Eu sei, sou irresistível.

      - Não posso fazer nada e você já fica se achando... – continuou a brincadeira.

      - Desculpe, mas terei de voltar a vestir minha camisa – disse -, pois está ventando bastante, consideravelmente gélido. – Peguei minha roupa e vesti-me em instantes.

      O silêncio fez-se presente no ambiente quando nossos olhares encontraram-se por um instante. Então Amber pulou em meus braços fazendo-me cair no chão, com ela ainda aninhada a mim, rolamos pelo gramado por um momento. Quando paramos, ela estava deitada e eu posicionado acima dela, apoiado com as duas mãos e deixando um espaço entre Amber e eu para que ela não tivesse de aguentar meu peso. Minha namorada ainda sorria, mas logo cessou quando seu olhar encontrou o meu novamente.

      - Esses seus olhos de gato sempre me encantam – comentou. – Você é tão charmoso!

      - E você é linda e sexy!

      Beijei-a intensamente enquanto sentia seus braços envolvendo-me. De sua boca, desci ao seu pescoço, contornando-o com os lábios e então ao seu ombro, afastando suas vestes de modo que permitisse que eu tocasse sua lívida e frágil pele macia. No entanto, nosso momento destinado às carícias fora interrompido quando senti uma pontada de dor em meu ombro.

      - Espere aí, estou aleijado – disse ao afastar-me.

      Amber levantou-se rapidamente do local onde se encontrava e assentou-se ao meu lado.

      - O que foi? – perguntou preocupada.

      - Meu ombro começou a doer.

      - Bem, não me admira muito, afinal, estávamos rolando, felizes, na grama – comentou Amber. – Desculpe-me, eu pulei em você sem lembrar-me de seus pontos.

      - Tudo bem. Exceto pela dor, acredito que nada de ruim aconteceu.

      Permanecemos apreciando a paisagem e conversando até o fim daquela tarde de sexta. Precisava retornar antes que ficasse muito tarde eu pudesse correr perigo ou algo mirabolante acontecesse. Levei Amber à sua morada, beijei-a pela última vez àquela noite e segui, a passos largos, à minha morada.

      Pelo menos não tive dificuldades em meu retorno (já estava cansado de sequestros, loucos correndo atrás de mim e todo esse tipo de normalidade). O local estava, aparentemente, vazio, Lisa provavelmente saiu com suas amigas, mas e minha mãe? Não me lembro de ela dizer-me que iria dar uma volta e conhecendo-a, pelo fato de eu estar “ferido”, isso fora um motivo para mantê-la em casa.

      Subi as escadas rumo à minha toca e avistei a porta do quarto de minha mãe fechada. Escutei um ruído, o qual parecia vir dela, fazendo-me ficar curioso. Aproximei-me e, à medida que fazia isso, o barulho tornava-se mais coerente aos meus ouvidos, parecia choro. Bati e disse:

      - Mamãe, tudo bem?

      Não escutei resposta, o que me preocupou ainda mais. Tentei abrir a porta inutilmente, pois esta se apresentava trancada. Comecei a bater com mais urgência em busca de uma resposta. Só então recebi a atenção da qual exigi. A passagem abriu-se e dona Marisa apareceu diante de mim.

      Minha mãe estava péssima: seu cabelo curto, negro e ondulado apresentava-se bagunçado; o rosto marcado por lágrimas e olhos inchados e vermelhos. Ela trajava um moletom velho e largo e pantufas as quais esquentavam seus pés. Sem dizer nada, dona Marisa envolveu-me em um forte abraço, quase me sufocando.

      - O que houve, mamãe? – Minha voz estava carregada de preocupação.

      - Sou uma tola.

      - O que é isso, dona Marisa? Por que diz uma coisa dessas?

      - Achei que os protegeria quando nos mudamos a esta tranquila cidade, no entanto, as coisas só pioraram – explicou. – É só observar o que tem acontecido a você, meu filho. Eu estou tão preocupada! Penso que em qualquer lugar do mundo seremos perseguidos pelo seu pai.

      - Pare de culpar-se! Como você iria saber que Martjin iria persegui-la até a uma cidade pequena? Além disso, meu pai está morto, ele não incomodará mais. – Sei que era mentira, pois o fruto de todos os meus problemas era devido ao fato de eu ser filho dele. – As complicações que vêm acontecendo comigo são, em parte, por minha causa. Eu tenho me arriscado demais.

      - Seu pai está morto, mas continua a enviar-me cartas ameaçadoras – comentou ela. – Como isso é possível?

      - Estão assinando por seu nome, alguém está continuando a viver por ele. Você já levou o caso à delegacia, não é?

      - Sim. Já estamos investigando, no entanto, não estamos nem perto de encontrarmos o caminho certo.

      - Não podem desistir – aconselhei.

      - Enquanto isso, o que faremos? Estamos correndo muitos riscos!

      - Bem, vamos dar um jeito. Vou tentar evitar riscos. – Fiz uma pausa. – Enfim, é melhor você descansar agora, a senhora tem trabalhado demais.

      Dona Marisa suspirou.

      - Acho que você tem razão. Vou deitar-me.

      - Boa noite, mamãe.

      - Boa noite. – Ela beijou minha testa.

      Após despedir-me, rumei ao meu quarto, peguei o som, liguei-o e deixei meu corpo cair pesadamente na cama. Esperava que a música fosse capaz de acalmar-me, permitindo minha mente navegar por águas distantes, longe daquela tempestade. Mas antes que o barco pudesse levantar âncora, fiquei pensando nas palavras de minha mãe. Naquele momento, transmiti tranquilidade a ela, no entanto, como poderia fazer aquilo se nem por minha vida eu conseguia garantir? Eu não possuía palavras amigáveis para dizer como conselho. Sentia-me incapaz novamente.

      Não gostava de minhas condições de um completo inútil, no entanto, não havia como escapar daquilo. A única coisa da qual eu poderia fazer é tentar evitar minha morte (caso não o fizesse, minha mãe matar-me-ia. Então imaginei dona Marisa com uma enorme faca fazendo cortes em meu cadáver, indignada pelo meu falecimento precoce. Minha mente é tão fértil ou psicótica a ponto de visualizar uma situação dessas). Um sorriso esboçou-se em meu rosto com tais loucuras, fora até uma coisa boa, descontraiu-me e fez com que meu navio zarpasse.

      Yuki acomodou-se ao meu lado. Abracei-a e permaneci por um bom tempo acariciando seu pêlo macio.

      - Hm, minha gatinha linda.

      Ela miou em resposta.

      É engraçado observar pessoas conversando com animais, sempre parecíamos retardados como se estivéssemos falando com bebês. Mas, mesmo parecendo um maluco com sérios problemas mentais, eu gostava muito de dialogar com ela, a ponto de permanecer horas a fio falando de meus problemas e minha bola de pêlos sempre ao meu lado, escutando-me. Às vezes seu silêncio era o melhor conselho do qual eu poderia receber. Não conseguia compreender pessoas que não gostam de animais e pior ainda, maltratam-nos sem motivo algum. Com esse tipo de ato, pergunto-me qual o animal irracional e acreditava que muitos também se fazem essas indagações, tentam alertá-los e mudá-los, no entanto, até hoje, nada se modificou. Continuam com os podres, preferem-nos à virtude.

      Enfim, eu continuo não conseguindo compreendê-las e acabo tendo de desistir de tal façanha. O melhor a fazer é seguir minha vida e tentar fazer minha parte, estando bem comigo mesmo, pois, aos poucos, infelizmente, os “anormais” são engolidos e sufocados pelo imenso mar de “normais” (espero que meu barco esteja bem longe dessa tempestade quando isso acontecer).

      Após meus pensamentos (eu sabia, música sempre me ajudava a viajar por horas), levantei-me, banhei-me em águas quentes, passei o medicamento em meus pontos e deitei-me na tentativa de dormir cedo àquela noite (sexta à noite em casa e ainda tendo de ir adormecer precocemente era bem tenso, mas disse à minha mãe que tentaria evitar riscos).

      No entanto, àquela noite eu não estava com sorte, pois a insônia fazia-se presente como minha companheira. Virava de um lado ao outro tentando encontrar uma posição favorável para que meus olhos tornassem-se pesados, mas meu esforço fora inútil. Então tive vontade de exercer minha antiga mania de andar pelas ruas durante a madrugada, entretanto, esse insano pensamento logo deixou minha mente (e nem precisava dizer o motivo, certo?). No fim, tive de permanecer naquela inércia tediosa até Morfeu decidir cooperar comigo (se é que ele faria isso).

Não consegui pregar os olhos durante toda àquela noite maldita e fui desistir de adormecer às seis e meia da manhã (até que fui bem insistente). Sentia-me exausto com os olhos pesados, no entanto, não era capaz de relaxar. Desejei ter Amber ao meu lado naquele momento, possuí-la, tocá-la da forma mais íntima, mas acho que isso não será realizado por enquanto, talvez nos meus dezoito anos, os quais estão bem próximos (às vezes aqueles pensamentos pervertidos invadiam minha mente, porém eu não tinha culpa, aquilo era algo natura da vida, sem exageros, obviamente). Enfim, como Morfeu não cooperou comigo e eu não possuía Amber naquele instante, eu decidi prosseguir com minha vida.

      Procurei algo para fazer durante àquela manhã de sábado (o que era bem difícil). Rumei à sala, assentei-me ao sofá e liguei a televisão. Fiquei passeando pelos canais sem parar em algum específico, em busca de algum interessante, mas foi em vão. Então segui à cozinha com o intuito de suprir minha necessidade básica, preparei uma tigela de Nescau Cereal e um copo de café puro. Comecei a repetir as doses do líquido quente e preto e quando fui perceber, havia bebido demais (acho que foi devido ao fato de eu não ter conseguido dormir, tendo de buscar energia em minha alimentação).

      Após isso, banhei-me e rumei à entrada de minha morada com o intuito de pegar o jornal matinal, entregue diariamente. Assentei-me em uma das cadeiras da cozinha e comecei a lê-lo. Não havia nenhuma notícia de meu interesse, então comecei a fazer palavras cruzadas e outros tipos de jogos semelhantes no devido caderno.

      Foi então que comecei a escutar suaves passos, quebrando o silêncio, aproximando-se da cozinha. Em questão de instantes, Lisa estava diante de mim.

      - Por que você sempre acorda cedo aos sábados? – perguntou após nossos cumprimentos iniciais.

      - Garanto-lhe que não é por vontade própria, existe uma coisa denominada insônia que me atormenta várias noites. E você, por que acordou tão cedo?

      Lisa hesitou antes de responder:

      - Ainda estou tendo aqueles pesadelos. – Sua voz falhou.

      Fitei-a por um momento. Seu olhar transmitia medo e pavor.

      - Bem, pense pelo lado positivo: são pesadelos, não são reais – menti, pois sabia que aqueles sonhos eram diferentes, transmitiam alguma mensagem, mas Lisa não necessitava saber daquilo. – Tente relaxar, pois tudo ficará bem.

      Lisa assentiu, não que eu tenha sido convincente, mas percebi sua ansiedade para encerrar aquele assunto.

      - Você ainda fez questão de acabar com o café?! – disse ela, irritada.

      - Perdão, irmãzinha, mas eu estava necessitado. Bem, desejo-lhe sorte na preparação de mais café. – Deixei a cozinha antes de escutá-la praguejar.

      Retornei ao meu quarto, deitei-me e tentei dormir, porém, como antes, não alcancei o êxito. Acreditava que o motivo disso seria a ansiedade a qual sentia no momento, afinal, hoje reencontrarei Raj (Julia ligou-me em um dos dias dos quais eu estive no hospital devido ao tiro que levei, então marquei sábado e ela se encontrará comigo na praça central no período da tarde) e esperava que ele possuísse respostas às perguntas que conturbavam minha mente.

      Eu necessitava de mais informações, ainda mais após a morte de Susie, Phoebe e seu pai. Precisava saber quem estava por trás de tudo aquilo o quanto antes e evitar que mais sangue seja derramado em vão. Aquilo não será simples, contudo, o trabalho duro compensará no fim.

      Então, bastava que eu esperasse, esperasse até chegar a hora...

Mesmo com tanto café e ansiedade, eu consegui dormir até às duas da tarde, como se aquilo tivesse compensado minha noite em claro (acho que bastou eu dizer que era para esperar). No entanto, eu estava atrasado, pois aquele era o horário que eu deveria estar encontrando-me com Julia na praça.

      Levantei-me apressado, arrumei-me e fui até minha prateleira de livros e peguei aqueles os quais havia separado com o intuito de ensinar Raj. Depositei-os mochila adentro. Após isso, desci as escadas. Avistei Lisa assistindo televisão na sala, com os olhos carregados de tédio. Deixei minha casa e avistei minha mãe, animada, trabalhando no jardim, aproveitando o Sol que, naquele dia, decidiu deixar sua toca entre as nuvens e brilhar ao céu de Sinéad.

      Quando dona Marisa avistou-me, ela perguntou:

      - Aonde vai, Jimmy?

      - Dar uma volta – respondi, mas tentando esconder minha pressa.

      - Você almoçou? – indagou ela. – Eu não quis acordá-lo, você estava tão bonitinho enquanto dormia, todo encolhido como um gato.

      Então relembrei que estava de estômago vazio, no entanto, não queria perder mais tempo. No caminho eu poderia comprar algo para comer.

      - Sim – menti. – Vou indo, mamãe. – Beijei seu rosto.

      - Cuide-se, viu?

      - Pode deixar.

      Rumei apressado à praça, parando apenas para comprar um lanche (bolinhos de queijo) e prossegui. Quando cheguei ao local, Julia já estava lá, assentada em um banco e escutando música. Aproximei-me e ela desligou seu velho aparelho MP3 Player.

      - Perdão por ter demorado – disse.

      - Está tudo bem – respondeu Julia. – Vamos?

      Assenti.

      Seguimos em silêncio pelas calçadas até chegarmos à floresta. Hesitei um pouco, mas não desejava demonstrar meu receio ao adentrar aquele local.

      - Esta floresta possuí uma grande área e é muito fácil de se perder aí dentro – comentou Julia -, no entanto, caso você saiba se guiar, isso pode facilitar muito a vida. Irei ensiná-lo o caminho, assim você não vai mais se perder.

      Eu assenti sem dizer nada.

      - Para chegar à casa de Raj de carro acaba levando mais tempo, pois a estrada dá uma volta pela floresta – continuou Julia. – Enfim, sem mais delongas, vamos lá.

      Adentramos à mata fechada. Aquele local causava-me arrepios e a desagradável sensação de estar sendo observado (como da primeira vez que entrei aqui). Olhei aos arredores com a finalidade de garantir que não havia ninguém além de nós. Tudo estava silencioso, exceto pelo ruído de galhos quebrando-se à medida que o número de nossos passos aumentava. De vez em quando, Julia fazia alguns comentários com o intuito de guiar-me e ensinar-me o caminho.

      Demorou algum tempo até avistarmos a simples casa completamente feita de madeira e situada em meio às arvores.

      - O bom de morar na floresta é que ninguém nos importuna. – Julia sorriu.

      - Às vezes deve ser bom, tento evitar pessoas demais ao meu redor.

      Aproximamo-nos da grande porta de madeira, a qual Julia fez um esforço considerável para abri-la. Adentramos. O local estava exatamente da mesma forma como eu conseguia recordar. O grande armário de madeira, com as porta envidraçadas, onde variadas armas brancas estavam guardadas, sempre me fazia lembrar Amber e em como seus olhos iluminar-se-iam caso avistasse esses objetos.

      Raj deixou um dos cômodos da casa quando percebeu que havia alguém em sua morada. Ele trajava uma camisa preta, calça jeans rasgada da mesma tonalidade e All Star (talvez mais surrados que os meus). Seus olhos verde-escuros fitaram-me com curiosidade.

      - Então, você veio... – disse. – Já não bastava a aparência, mas você também tinha que levar um tiro no ombro?

      - Como sabe disso? – perguntei.

      - Li no jornal. – Ele indicou uma pilha de papéis disposta acima da mesa. – Mantenho-me sempre informado, ainda mais quando as coisas estão ficando cada vez mais interessantes.

      Bem, para mim não estão ficando mais interessantes e sim, piores, pensei.

      - Antes de começarmos, gostaria de fazer algumas perguntas – comecei.

      Raj recostou-se à parede e cruzou os braços, revirou os olhos e disse:

      - Vá em frente.

      - Como consegue identificar quem é filho de Yasuo?

      - Bem, essa não é uma forma certa, mas os filhos de Yasuo são diferentes, às vezes só de olhar eu percebo isso, mas é difícil dizer e eu já cometi erros – respondeu. – As “crianças” apresentam um brilho diferente no olhar, uma força diferente, digamos assim.

      - Um homem, aparentemente comum, só de olhar para mim descobriu a respeito de minha herança, como isso é possível?

      - Nosso pai gostava muito de gatos, sua forma humana, em homenagem a esses animais, possuía olhos de gato. Você nasceu com esses olhos também, o que é algo raríssimo e talvez você seja o único meio-irmão que herdou isso – explicou. – Quem conhece a respeito do culto, consegue identificar sua natureza apenas observando-o. Tenho pena de você, chama muita atenção de nossos inimigos. – Gargalhou sarcasticamente.

      - Por que só eu quem me ferro nessa porra? – revoltei-me.

      - Porque você tirou a sorte grande. – Ele continuou rindo. – Você tem mais perguntas?

      - Sim. Por que minha irmã não chama atenção alguma de nossos inimigos?

      - Sua irmã tem quantos anos?

      - Catorze.

      - Isso se deve ao fato de ela não possuir quase nenhuma energia de nosso pai, já que é uma das mais novas, recebeu mínima parcela de poder, quase nada, não chama atenção.

      Respirei aliviado, pelo menos com a segurança de Lisa eu não teria de preocupar-me muito. Ela, naturalmente, não será perturbada se ninguém souber que é uma das filhas de Yasuo.

      - Tem mais perguntas? – Raj aparentava impaciente.

      - Sim. Por que tentou sequestrar Phoebe? Ela não era uma filha de Yasuo.

      - Foi um erro – respondeu. – Eu estava em dúvida se ela era ou não, mas sabia que ela conhecia a respeito do culto. Isso me chamou a atenção.

      - Por que tantas coisas acontecem aqui em Sinéad? Por que muitos filhos e seguidores vieram para cá?

      - A história é incerta, mas posso dizer que este local recebeu muitas influências do culto devido a uma das fundadoras da cidade, Sinéad, então, como homenagem, nosso pai tornou esta sua morada oficial. – Ele fez uma pausa. – Os filhos de Yasuo tal como os seguidores são induzidos involuntária e inconscientemente até aqui devido a esse fato, as ruínas de nosso pai.

      Fiquei imaginando se minha mãe também não teria sido induzida involuntária e inconscientemente a mudar-se para esta cidade. Afinal, por qual motivo ela teria escolhido este lugar? Ela pensava que estava fugindo de meu pai, mas pensa reflito que ela poderia ter escolhido qualquer outro município, no entanto, aqui estamos no local mais relacionado ao Yasuo.

      - Tenho uma pergunta mais – disse. – O que você sabe a respeito do gato dourado? O mesmo que você perseguiu no dia em que nos encontramos no cemitério. Eu o avistei mais vezes e, em uma delas, ele estava próximo ao local onde uma de nossas meio-irmãs morrera e carregava sua peça de xadrez.

      Raj fitou-me por um momento com um brilho diferente em seus olhos, parecia curioso.

      - Eu não sei muito a respeito do gato, contudo posso dizer que ele não é um animal comum. Ele guarda mistérios dos quais acredito que estejam relacionados a nós.

      - Entendo.

      - Agora terminou, não é? – Raj apresentava-se ainda mais impaciente e batucava o chão com seu pé.

      - Sim. Agora poderemos começar seus estudos. Primeiramente, gostaria que você me relatasse o quanto aprendeu com Julia.

      Raj começou a dizer a respeito de tudo o que conquistou e pelos seus relatos, pude perceber que seus aprendizados correspondiam aos da quarta série. Meu meio-irmão é um homem esperto, mesmo com pouco estudo, ele possuía muito conhecimento de mundo, talvez pelo fato de ter vivido em meio à miséria e visto como as coisas realmente são. Mas tinha uma insaciável sede por sabedoria. Mostrei-lhe os livros básicos os quais havia trazido, comecei a instruí-lo da melhor forma que conseguia, não tive dificuldades devido ao fato de Raj aprender com extrema facilidade.

      Permaneci a tarde inteira empenhado a ensiná-lo e tivemos um bom progresso. Contentei-me ao saber que estava sendo influente e ajudando uma pessoa a conhecer novas possibilidades de vida. Também refleti bastante a respeito das respostas das quais eu havia conseguido. Por fim, conclui que ainda faltava peças para completar aquele quebra-cabeça.

Domingo chegara e ele trouxera consigo todo o meu tédio. Acordei às onze e meia da manhã, dessa vez devido às leves batidas de minha mãe à porta. Levantei-me com um salto, meu cabelo estava mais atrapalhado ao normal, mas não me dei ao trabalho de arrumá-lo. Caminhei à passagem, ainda sonolento, e a abri permitindo a entrada de dona Marisa.

      - Bom dia, meu filho. – Ela caminhou até a janela, abrindo as cortinas e permitindo que a luz adentrasse a escuridão.

      - Mãe!

      - O que foi, meu filho?

      - Era para deixar as cortinas fechadas. Além disso, por que a senhora está me acordando cedo num domingo?

      - Bem, é que eu chamei Ross para almoçar aqui. – Ela ruborizou. – Quero que ele comece a aproximar-se de vocês. Portanto, trate de arrumar-se, ele deve chegar aqui ao meio dia e meia.

      - Entendo.

      Dona Marisa sorriu antes de deixar o meu quarto.

      Peguei minhas roupas e rumei ao banheiro, banhei-me e retornei ao meu quarto. Assentei-me na cama e recostei minhas costas à cabeceira. Provavelmente Ross não havia chegado, pois ainda era meio dia, mas já conseguia sentir o bom cheiro de comida. Procurei pelo som com o intuito escutar música enquanto esperava pelo almoço, no entanto, não o encontrei (provavelmente estava com Lisa. Droga!). Então decidi pegar meu MP3 Player dentro do armário e ouvir por ele. Enquanto procurava pelo aparelho, avistei a peça de xadrez quebrada, a qual faltava a cabeça e uma parte lateral da base. De repente, senti uma súbita vontade de descobrir a quem pertencia o objeto. Era uma pessoa que eu não conhecia, mas não gostava do fato de meu meio-irmão ser apenas um alheio. Talvez aquele peão indicasse que eu deveria procurar a respeito, afinal, por qual motivo isso viera parar em minhas mãos?

      Meus pensamentos foram interrompidos pelos chamados de minha mãe, indicando que o oficial Ross acabara de chegar. Desci as escadas e avistei o homem assentado no sofá da sala de entrada com minha mãe ao seu lado. Seu cabelo curto e negro estava penteado e sua barba feita. Trajava uma camisa social preta, calça jeans e sapatos também sociais. Seus olhos escuros fitaram-me no momento em que eu cheguei ao local e um sorriso formou-se em seus lábios finos.

      - Olá, senhor Wood – cumprimentei-o.

      - Olá, Jimmy – retribuiu. – Tudo bem com você?

      - Tudo ótimo e com você?

      - Bem também.

      - Veja, Jim, o que Ross trouxe para mim – disse minha mãe entrando no assunto. Ela indicou um belo buquê de rosas vermelhas. – Não são lindas? – perguntou aos risinhos.

      - São, sim – respondi.

      - Fico feliz que tenha gostado, Marisa.

      A “garotinha apaixonada” riu uma vez mais antes de dizer:

      - Acho que o almoço está pronto, vamos nos servir. – Levantou-se, fez um gesto para nós e seguiu à cozinha. Oficial Ross e eu fomos logo atrás.

      Todos estavam à mesa e conversavam animados, menos eu. Estava alheio a tudo, não pelo fato de estar desanimado com a visita, mas porque minha mente vagueava a lugares distantes. Todos perceberam meu silêncio e minha falta de apetite.

      - O que foi, meu filho? – perguntou minha mãe com um fio de preocupação em sua voz.

      Eu não respondi, pois não prestei atenção a sua pergunta, então ela insistiu, com mais preocupação em sua voz:

      - Jim, algum problema.

      Silêncio mais uma vez.

      - Jim?

      - Jimmy, responda a mamãe! – bradou Lisa, irritada.

      Foi então que consegui retornar a terra.

      - Perdão, o que houve? – perguntei confuso.

      - Eu sou quem pergunta, meu filho. Você não estava comendo, revirava sua comida de um lado ao outro e ainda não falava nada. Aconteceu alguma coisa?

      - Desculpe-me, eu estava viajando... Vou tentar ser mais atencioso.

      Minha mãe sorriu aliviada pelo meu silêncio e falta de apetite (o que eu não estava) não representarem nenhuma doença, mas apenas minha lerdeza e falta de atenção. Eles retornaram às conversas animadas e eu tentei acompanhá-los, obtendo êxito. Dona Marisa estava feliz aquele dia, ela apreciava o fato de todos estarem à mesa, almoçando juntos, coisa que, com a correria do dia-a-dia, quase nunca acontecia. Além disso, ela ficava contente à presença do oficial Ross (ela estava precisando de um homem).

      Permanecemos conversando e almoçando juntos por um bom tempo, também pudemos aproveitar a sobremesa: o delicioso bolo de sorvete feito por minha mãe de vez em quando (o tempo estava propício a isso, pois o Sol fizera sua presença ao céu, ultrapassando as cortinas de nuvens).

      Após isso, minha mãe e senhor Wood acomodaram-se na sala e continuaram com a animada conversa. Deixei-os sozinhos e rumei ao meu quarto. Pensei em dar uma volta pela cidade e convidar Amber para acompanhar-me. Liguei para ela, convidando-a. Ela aceitou.

      Arrumei-me e deixei minha casa sem mais delongas. Segui até a casa de Amber, não demorando muito. Toquei a campainha e aguardei alguns minutos antes de ser atendido. Minha namorada apareceu diante de mim. Seu longo cabelo ruivo estava amarrado em um rabo de cavalo, ela trajava uma camisa dos Beatles, uma saia preta centímetros acima do joelho e All Star. Seu visual era simples, mas não deixava de aparentar bela.

      - Olá – disse ela, animada.

      - Olá – retribui. Aproximei-me e recostei meus lábios aos dela.

      - Meu pai disse que eu posso sair com você, desde que me traga inteira de volta, sem nenhum machucado, sujeira entre outras coisas.

      - Garanto-lhe que farei isso, mas não garanto que eu não vá fazer nada contigo. Lembre-se que eu mordo. – Um sorriso travesso formou-se em meus lábios.

      Ela também sorriu com a brincadeira.

      Após isso, começamos a caminhar pela calçada em um harmonioso passeio de domingo (para acabar com aquele tédio). Decidimos, então, andarmos até o lago (o mesmo próximo aquele bar, no qual uma vez fomos).

      O local estava agradável, o vento soprava levemente e as árvores projetavam sombras, as quais nos protegiam do Sol (pelo menos a mim, pois não gostava), por isso, decidimos acomodarmos abaixo de uma delas. Alguns raios solares conseguiam ultrapassar as folhas das altas copas das árvores, as quais rodeavam o lago, criando “cortinas de luminosidade”. A água azul do lago estava cristalina, o que embelezava ainda mais o ambiente.

      Amber recostou levemente sua cabeça em meu ombro enquanto eu acariciava os fios ruivos os quais compunham seu cabelo. Ela ficou por um tempo contemplando a bela paisagem.

      - Isto aqui daria um belo quadro – comentei.

      - Você sabe pintar?

      - Sei algumas técnicas, não muita coisa.

      - Qualquer dia gostaria de vê-lo pintar.

      - Algum dia eu faço um.

      - Seu aniversário de dezoito anos está chegando, o que você pretende fazer? – perguntou.

      - Ah, é verdade. Morra de inveja, farei dezoito anos enquanto você faz dezessete este ano – brinquei. – Bem, brincadeiras toscas à parte, eu ainda não sei o que fazer, mas pensei em comemorar com os amigos em algum lugar – respondi e ainda completei: - depois poderíamos fazer uma comemoração privada, só você e eu...

      Ela sorriu graciosamente com as maçãs do rosto ruborizadas.

      Após isso, envolveu-me em seus braços, tomando cuidado para não encostar-se a meus pontos e beijou-me ardentemente. Permanecemos um tempo trocando carícias e depois voltamos a contemplar a bela paisagem natural e conversar até avistarmos algo estranho boiando próximo a uma das margens do lago.

      - O que é aquilo? – perguntou Amber, curiosa.

      - Não sei. Vamos conferir?

      Amber assentiu.

      Levantamo-nos e rodeamos a margem até aproximarmo-nos daquilo que estava boiando no lago. Então conseguimos identificar: um corpo.


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