Pesadelo do Real escrita por Metal_Will


Capítulo 59
Capítulo 59 - Transferência




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"E por que o elefante não arranca aquela pequena estaca e foge? Os domadores se utilizam da seguinte estratégia: amarram o elefante muito cedo, quando ele ainda é filhote. Pequeno e ainda sem muita força,ele tenta arrancar aquela estaca e não consegue. Depois de tantas tentativas sem resultado, ele se acomoda. Aceita seu destino de ficar amarrado, balançando seu corpo prá lá e prá cá, esperando a hora do próximo espetáculo. E aquele enorme animal, possuidor de uma força tremenda, vive preso a algo sem sentido, porque simplesmente se acomodou à prisão..."

~ Texto de um panfleto evangélico aleatório

Capítulo 59 - Transferência

 A cada segundo que se passava aquela sala ficava cada vez mais repleta de bonecas. Todas idênticas umas às outras, mas apenas uma contendo a chave necessária para abandonar aquele salão e prosseguir na jornada para a verdade. Infelizmente, nem mesmo Ariadne sabia onde a chave estava e o único jeito de ter alguma chance era quebrando boneca por boneca até obtê-la. Seria simples, se Monalisa não estivesse bloqueada por alguma razão.

- Mona! Acorde! No que está pensando! - Ariadne a sacode, enquanto o número de bonecas continuava aumentando - Se não pensarmos em algum plano juntas vamos realmente ficar presas aqui para sempre.

- É que...tem alguma coisa me impedindo de quebrar a boneca.

- Tsc! Se não tem jeito... - Ariadne tira a boneca das mãos da menina e a quebra, mas estava vazia.

- Não adianta - Eleonora intervém - Mesmo que você quebrasse a boneca certa, a chave mudaria de lugar justamente por ser você a quebrá-la.

- Como é?! - exclama a guia.

- A única pessoa que pode achar a chave é Monalisa. O evento só pode ser ativado por ela e mais ninguém - afirma a mulher - Mas se serve de consolo...as bonecas que você quebrar vão sendo eliminadas...você também pode ficar aqui para sempre quebrando bonecas por toda a eternidade...

- Droga...Mona, no espaço restrito dela eu não posso ter controle. A única coisa que posso fazer é te ajudar a eliminar as bonecas, mas você precisa quebrá-las. O que tem de tão difícil nisso?

 Monalisa olha para Ariadne com uma cara de piedade. Eleonora ri levemente.

- É uma pena, não é? Você conhece todo o Labirinto, mas não pode conhecer o interior da Monalisa. Não pode entender o que ela pensa ou sente como eu posso.

- O que...ela pensa.? Ora...isso ninguém do Labirinto pode.

- Engano seu. Eu sou a mãe dela. Posso entendê-la muito melhor que você...e sei que ela não pode quebrar essa boneca porque ela tem um valor próprio.

- Valor próprio? É apenas cópia de um presente que ela ganhou do pai dela! Mona, reaja e quebre logo essa coisa!

- Não consigo - choraminga a menina, olhando para os olhos do brinquedo em suas mãos - Por que...quando eu era menor...aquela boneca me fazia companhia.

- Companhia?

- Essa boneca é exatamente igual a que eu ganhei quando criança...meus pais sempre trabalharam e nunca me deram muita atenção, mas eu lembro que passava horas brincando com essa bonequinha. Era meu brinquedo favorito até...

- Até eu tirá-la de você, lembra? - interrompe Eleonora - Disse que doei alguns brinquedos seus e essa boneca foi junto por engano. Você fingiu que aguentou firme, mas sei que chorou muito no quarto...tsc...pobre garotinha. Deve ter sofrido muito, mas foi necessário para garantir que ficasse comigo para sempre.

- Você...foi você que jogou ela fora de propósito, não é? - Monalisa parecia desolada.

- Foi um mal necessário, querida - responde Eleonora - Sempre me doeu ser uma mãe distante, mas se eu fosse fria assim como o seu pai é, sabia que você iria transferir algum afeto para alguma outra coisa. Talvez um brinquedo preferido, como essa boneca.

- Mas isso...isso é muita maldade - retruca Ariadne.

- Maldade. Como assim? Eu usei uma boneca. Não seria muito pior se fosse um bichinho de estimação? Ou algum amiguinho de escola? Uma boneca é bem mais fácil de quebrar.

- Tortura psicológica - declarou Ariadne - Mona...se você não passar por isso, nunca poderá sair daqui. Não chegou tão longe para deixar tudo ir por água abaixo por causa de uma boneca! Uma porcaria de uma boneca!

- Eu sei! - grita Mona - Eu sei de tudo isso, mas eu não consigo! E tem uma coisa pior ainda...

- Pior? - pergunta a guia.

- Toda vez que você destrói uma boneca...eu me sinto ainda pior...quero sair daqui, mas...tem alguma coisa mais forte que não me deixa quebrar essas bonecas...

- Mona...por favor...nós...tsc - Ariadne queria argumentar, mas o chão daquele espaço estava repleto de bonecas, bilhões delas. Levaria milênios para quebrar todas. A boneca certa já devia ter se perdido há muito tempo. Tudo parecia acabado.

- Desculpe, Ariadne - chora a loirinha - Eu simplesmente não consigo...eu quero quebrá-la, mas tem alguma coisa dentro de mim que me impede. Eu já tinha até me esquecido de como era essa boneca, mas agora a lembrança voltou com tudo...Eu...eu não sei explicar.

- Então é assim que tudo acaba - diz Eleonora, cruzando as pernas sem se levantar do sofá - Ai, ai, Monalisa, Monalisa, você se faz de forte, mas é só uma menininha chorona. Não consegue sequer se desapegar de um brinquedo de criança.

- Pare... - reclama Ariadne - Quer fazer ela sofrer mais ainda?

- Só estou dizendo isso porque me importo com ela! - retruca a mulher - Poderia simplesmente deixá-la seguir você e fazer o que quiser, mas quero protegê-la. Fiz isso tudo para protegê-la. Sei que minhas palavras podem parecer duras, mas se ela chegou a esse ponto já devia saber que é responsável pelas próprias escolhas! 

 Ariadne arregala os olhos. Monalisa ouvia tudo com lágrimas nos olhos.

- Apegou-se a um brinquedo para compensar a ausência dos pais...é um sinal claro de fraqueza. E ainda queria sair do Labirinto assim?

- Cale a boca! - bronqueia Ariadne, com uma das mãos no ombro de Monalisa que não conseguia reagir - Se ela chegou a esse ponto foi por culpa sua! Foi você quem induziu a menina a se apegar à boneca!

- Julgue o quanto quiser - retruca Eleonora - Pode parecer cruel, mas era um meio garantido de deixar Monalisa dentro do Labirinto. É para a própria segurança dela. Essa menina insiste em me desobedecer e quer porque quer saber uma coisa que não deve saber. No fundo, é só uma curiosidade infantil. Sempre percebi que ela era uma fraca e por isso sabia que criaria vínculos fáceis com esse mundo. Não teria esse tipo de trauma se fosse mais forte.

- Já está passando dos limites... - Ariadne parecia bem nervosa. Eleonora, obviamente, não tinha o menor medo.

- Me espanto em como posso ser generosa. Depois de tanta ingratidão dessa garota, ainda estou disposta a dar mais uma chance.

- Chance? - balbucia Monalisa.

- Se você me pedir, Monalisa, posso tirar você daqui e fazê-la voltar para a nossa vida de antes. Todos os eventos serão desativados e você poderá viver uma vida normal como sempre viveu. É a última vez que ofereço essa oportunidade. Esqueça essa bobagem de sair. Você sabe, no fundo você sempre soube que é muito mais seguro ficar aqui do que tentar descobrir uma coisa que você simplesmente não precisa saber. Tudo que você precisa fazer é me pedir para te tirar daqui. Eu realizarei seu pedido com todo o prazer.

- Monalisa... - balbucia Ariadne - Seu trauma é tão grande que está disposta a jogar tudo por água abaixo?

- Essa boneca...foi minha única amiga por muitos anos - diz a loirinha, olhando profundamente para o brinquedo - A não ser quando outras crianças vinham falar comigo, eu não interagia muito com elas...era mesmo uma menina sozinha...ou talvez tenham me feito ser assim de propósito.

 Ariadne não sabia muito bem onde Monalisa queria chegar, mas agora era um momento que apenas ela podia decidir.

- Teteca - balbucia Monalisa.

- Teteca?

- Era o nome da minha boneca...agora estou me lembrando...acho que foi assim que a chamei. Não era nenhuma boneca de marca, mas era minha única diversão quando criança. Talvez se eu não tivesse sido criada tão solitária.

- Mona...

- Solidão - repete Monalisa - Existe alguém mais sozinha do que eu? Tudo que está além de mim é um mundo criado para me enganar e que sequer me deixa saber a verdade...

- Está tão perto de saber a verdade, Mona - fala Ariadne - Quer mesmo abandonar tudo agora?

- Eu sempre enchi a boca para falar que quero sair daqui, não importa as consequências...mas...mas além disso queria saber que angústia é essa que sinto.

- Angústia? - pergunta a guia.

- Como é possível? Fui presa em uma armadilha desde criança...induzida a criar uma ilusão dentro de uma ilusão maior ainda.

- Mona...

- Não consigo quebrar a boneca porque ela me traz uma lembrança de conforto muito grande...mas apesar disso, ela é o que está me impedindo de alcançar meu objetivo.

- Seu objetivo - repete Ariadne - Chegar ou não no seu objetivo é algo que você precisa escolher, Monalisa. Pense bem.

- Ariadne...você é a única pessoa que me entende, não é? - balbucia a garota.

- Minha função é levá-la até o seu destino. Talvez eu seja a única pessoa capaz de te ajudar.

- Entendo. Eu peço desculpas por não te dar o valor que tanto merece.

- Do que está falando?

- Tem alguma coisa em mim que me impede de quebrar a boneca, mas...agora estou sentindo uma outra coisa tão forte quanto isso...

- Hã?

- No momento, você é a única pessoa que eu preciso, Ariadne. É isso que estou tentando colocar de uma vez na minha cabeça!

 Monalisa parecia meio trêmula, mas seu olhar parecia mais firme. Sua falsa mãe intervém na conversa.

- Ainda não me deu sua resposta, filha - pergunta Eleonora - Basta dizer uma palavra para voltarmos a nossa calma e tranquila vida de sempre.

- Não me chame de filha - retrucou Monalisa. Ariadne sentiu que alguma coisa mudou na fala dela.

- Ainda está brava? Bah, isso passa logo. Você sabe que não pode ir contra o seu coração.

- O meu coração já tem uma resposta! - exclama a garota, com as mãos trêmulas, sentindo como se fosse explodir em mil pesados com uma simples brisa - E a minha resposta...é essa!

 De olhos fechados ela pega a primeira boneca do chão e arranca sua cabeça de uma vez só. Foi uma explosão, porém uma explosão libertadora.  Era a boneca certa. Uma luz ilumina o quarto, fazendo todas as outras bonecas sumirem e a chave prateada surgir. Monalisa conseguiu, finalmente, se recuperar do choque.

- Mas...como?! - Eleonora se levanta furiosa - Impossível! Eu planejei cuidadosamente para que você transferisse seus sentimentos para a boneca...estava dando certo até agora.

- Eu só lembrei do que é mais importante.

- O quê?!

- Você tem razão ao dizer que eu era fraca, mas não significa que eu não possa me tornar forte daqui para frente.

 Monalisa seca as lágrimas e olha para a chave que conseguiu. Ariadne sorri.

- Não tinha sentido nenhum em querer preservar uma lembrança do passado. A minha nostalgia e a minha fraqueza estavam me cegando...mas agora eu percebi que o importante não é o passado e sim o futuro.

- Sua...quer tanto assim me ver longe?

- Você é só uma mentira. Claro que quero te ver longe - retruca a garota - Esse é o caminho que eu escolhi.

- Que seja - Eleonora tenta se recompor, voltando a se sentar - As regras não podem ser mudadas...você achou a chave, logo tem o direito de sair daqui.

 Monalisa e Ariadne sorriem e comemoram. Antes, porém, Eleonora tem mais algumas palavras.

- Sorria...sorria enquanto você pode, Monalisa - diz ela em tom sério - Mas lembre-se de que você perdeu a última oportunidade de ter uma paz segura. Quando sair por aquela porta, não vai mais poder voltar atrás.

- Espero que não mesmo - retruca a menina - E..bem, apesar de tudo, você sempre cuidou de mim como minha mãe falsa, mesmo não sendo muito atenciosa, tive uma vida confortável.

- Cale-se - interrompe Eleonora - Não quero mais ouvir a sua voz...acredito que nunca mais eu vá ouvi-la mesmo.

 Não era o clima mais agradável do mundo, mas ela havia conseguido. Monalisa corre para a porta, abre com a chave e sai direto em um alçapão da estrada de tijolos amarelos. Como uma porta na parede dá direto no solo? Para o bem de Monalisa, era melhor nem pensar naquilo. O fato é que as duas finalmente conseguem sair do domínio de Eleonora. 

- Ufa! Nem acredito! - Mona se joga no chão, cansada e ofegante.

- Levante-se - Ariadne oferece sua mão - E parabéns. Agora estamos bem perto.

- Verdade?

- Verdade. Falta muito pouco. Quer descansar antes de continuar?

- Dispenso - diz Monalisa balançando a cabeça - Não quero perder um único segundo!

 E as duas correm na direção da Torre de Esmeralda. Parece que agora ela ficava mais perto quanto mais elas corriam. A estrada não era mais infinita. Pelo contrário, o fim estava bem próximo.


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Notas finais do capítulo

O fim está chegando...até o próximo cap, gente! ^^/