A Mulher da Casa escrita por sisfics


Capítulo 1
Capítulo Um: Abrigo.




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Carlisle Pov

Sem tirar os olhos da estrada, estiquei o tronco e o braço para pegar algum cd dentro do porta-luvas. Segurei o volante com uma só mão e achei um disco de jazz conhecido e descontraído o suficiente para me fazer relaxar. O coloquei no rádio do carro, apertei play e voltei a encaixar o cinto de segurança antes que recebesse uma maldita multa. Os problemas começaram a sumir aos poucos da minha cabeça, enquanto a estrada escura passava por mim e o fluxo de carros ia diminuindo.

A melodia me fez apagar as cenas do dia de trabalho longo e relaxar o ombro aos poucos. As músicas mudaram, o tempo passou e só faltava mais uma hora até chegar em casa e reencontrar minha família quando um jazz um pouco mais melodioso começou a tocar. Aquela música me fez lembrar de coisas que preferia esquecer, coisas que não conseguia parar de pensar nos últimos meses. Num impulso irracional, peguei minha carteira no bolso da calça e a abri de forma a ficar sobre o volante sem atrapalhar minha visão.

Na foto, Emmett estava no último ano da escola, prestes a ingressar na faculdade, Jasper ainda usava óculos gigantescos que o fazia parecer com uma abelha, Edward já tinha se tornado um delinquente juvenil e trazia tantos problemas que estava me deixando louco, e Rennesme começava a dormir sozinha na prórpia cama. Era difícil encarar um passado tão próximo e ver o quanto ele na verdade era tão distante pelo fato de Esme ainda estar ali. Joguei a carteira contra o banco do motorista sem qualquer paciência e foi nesse instante que vi uma sombra caindo na beira da estrada.

A velocidade do veículo fez o rapaz parecer apenas um borrão, mas algo me disse que eu precisava ver o que estava acontecendo. Minha parte racional insistiu que não podia parar por ser um lugar deserto, escuro e eu estava sozinho. Mas minha compaixão falava mais alto, eu só não conseguia ignorar aquela sensação de que aquele garoto precisava de mim.

Estacionei o carro no acostamento, voltei dando a ré e parei ao lado do lugar onde tinha o visto. Quando desci do carro, não vi o rapaz imediatamente e cheguei a pensar que tinha sido fruto da imaginação, mas logo o identifiquei no meio do mato, rastejando para longe de mim.

- Hey, você. - ele levantou a cabeça assustado e recuou ainda mais na terra - Você está bem rapaz?
- Sai daqui. - o ouvi murmurar com a voz embargada.

Cheguei a pensar que ele estava bêbado, talvez só fosse um jovem num mal caminho, mas então o rapaz abaixou de novo a cabeça coberta pelo capuz do casaco vinho e começou a vomitar sangue. Naquele instante percebi que ele precisava mesmo de um auxílio e nada melhor do que um médico para ajudá-lo. Dei dois passos para frente, me agachei e o segurei pelos ombros. Ele começava a se engasgar qual a quantidade de sangue que estava em sua garganta, mas mesmo tão debilitado ele ainda lutou contra minhas mãos.

- Vamos com calma, garoto. Eu só quero te ajudar. - foi nessa hora que ele cessou um pouco e levantou seu tronco em busca de ar.

O capuz do enorme casaco caiu pelos seus ombros e só então vi os longos cachos negros que estavam presos num nó. Não era um rapaz. A rosto dela estava todo machucado com um corte profundo no supercilho que fazia o sangue escorrer até seu queixo, um outro arranhão na face esquerda e mais um corte no alto da testa. Ela me encarou com seus olhos cansados e suplicantes por ajuda. Parecia uma criança, não devia ter mais do que nenhum dos meus filhos.

Ela olhou para o lado onde estava sua mochila como se quisesse me dizer alguma coisa, então sem mais forças desmaiou. A segurei firme no peito para que não fosse de encontro a terra de novo. Sacudi algumas vezes seu rosto, mas vendo que não acordava, passei um de meus braços por debaixo de sua perna e o outro a segurei pelas costas e a ergui. Levei até meu carro, a colocando deitada no banco de trás. Busquei também sua mochila antes de entrar de novo e fazer meia volta para o hospital.
[...]

Era esperado que o efeito do remédio causasse isso no corpo pequeno e machucado da jovem, mas jamais pensei que alguém pudesse estar tão profundamente num sono como ela. Verifiquei duas vezes o prontuário para ver as doses que a tinham dado porque estranhava seu sono tão impertubadoramente quieto. Ela não parecia mais a garota abandonada que tinha achado algumas horas atrás na beira da estrada. Já tinha descoberto que seus cachos não eram negros, mas sim de um castanho avermelhado que iam até sua cintura. Isso a deixava com a aparência ainda mais jovem, quase infantil. Só me faltava descobrir a cor de seus olhos que permaneciam selados. Todos os cortes já haviam sido suturados por mim mesmo e era impressionante que com tamanhos ferimentos ela ainda conseguisse estar de pé na hora que a achei.
Alguem tocou meu ombro de leve, então me virei assustado para encarar a enfermeira.

- Dr. Carlisle, o Dr. John terminou de analisar agora os exames da paciente e disse que gostaria de conversar com o senhor imediatamente.
- A situação dela é grave? - me preocupei mais que o normal, sem entender meu laço com aquela estranha.
- A hemorragia interna não o preocupa. Já está controlada, mas não é sobre isso que ele quer conversar. Na verdade, é sobre burocracias do hospital.
- Então isso pode esperar. - rosnei, me virando de novo para a maca.

Não quis ser ríspido com a enfermeira, mas era inacreditável que esse assunto o preocupasse mais do que a saúde da paciente.

- É instigante, não é? - a enfermeira continuou.
- O que? - perguntei sem me virar
- Como uma jovem tão bonita podia estar na beira daquela estrada completamente sozinha e machucada daquele jeito.
- Acho que tem muito mais coisas aqui do que os olhos podem ver. Pelo menos a mim, a situação não parece ser essa. - murmurei.
- Espero que o senhor esteja certo. Bem, com licença, preciso visitar um paciente.
- Obrigada, enfermeira Collins.
Esperei que ela saísse do pequeno quarto para fazer o que estava na minha mente. Primeiro, fui até o corredor e olhei para os lados para verificar que não vinha ninguém que pudesse me pegar cometendo tal ato estúpido, depois encostei a porta e fui até os pertences dela. Era imbecil tentar descobrir alguma coisa dela por ali e mesmo assim era violação de privacidade, mas ela estava desacordada e o que os olhos não veêm a mente não pode condenar.

Abri sua mochila preta, mas no compartimento principal só encontrei uma calça jeans, algumas camisetas, roupas íntimas e um outro casaco. Olhei para ela na maca, tentando entender porque ela estava ali, o que tinha feito ela se machucar tanto ou o que a tinha machucado. Talvez ela estivesse fugindo de casa. Quando eu era jovem já tinha feito isso, mas não parecia seu caso. Ela não tinha as feições de quem tinha um lar. Suas unhas estavam sujas, suas mãos com bolhas, seus ombros curvados de cansaço assim como a encontrei.

Ou ela tinha fugido de cada fazia muito tempo mesmo, ou então nunca tivera um lar de verdade. Fechei aquele compartimento e vasculhei no da frente em busca de documentos ou qualquer outra identificação. Não tinha dinheiro nenhum ou cartão em sua carteira. Achei apenas um telefone escrito no guardanapo de uma lanchonete de São Francisco e uma foto de um garotinho. O menino era loiro e tinha os olhos verdes, mas ainda assim tinha alguns traços com a menina.
O formato do rosto, o nariz e a boca eram idênticos.

- Você é mãe? - perguntei em voz alta, mas não esperava resposta - Ou irmã?

Não havia mais nada, então guardei aquele guardanapo no bolso e guardei tudo de volta na mochila, depois a coloquei onde tinha achado e saí do quarto antes que alguém me visse.
Fui até a sala de John, entrando sem bater. Ele estava atrás de sua mesa de mogno com seu sorriso estúpido, avaliando os exames da menina que estavam em cima da mesa. Me chutei mentalmente por estar pensando nela como "a menina", e não mais como "a paciente".

- Quanta educação, Dr. Carlisle. Esperava ansiosamente pela sua visita, mas nem tanto, eu diria.
- Boa noite para você, Dr. John.
- Eu diria que é um bom dia. - resmungou, apontando para o relógio acima de sua cabeça.

Tomei um susto ao ver que já eram mais de sete da manhã e eu tinha me esquecido de ir para casa. Esperava que Edward tivesse se lembrado de levar Rennesme para escola, pois eu não queria ser responsável por mais nenhum encontro desagradável com a diretora. Esperava que ele também tivesse ido, já era hora daquele muleque aprender a ser homem.

- Sobre o que você queria tratar comigo?
- Bem, é sobre a paciente que você trouxe essa madrugada para nós. Primeiramente, a hemorragia interna dela foi causada por alguma lesão muito forte que sofreu e eu até informaria a autoridade de polícia por ser um caso claro de agressão, mas não quero ser tão cauteloso por mais um caso de mendigos que brigam.
- Ela não é uma mendiga. - rosnei.
- Pois bem, como eu ia dizendo antes que o senhor me interrompesse, espero que isso não se repita pois da próxima vez é melhor levá-la para um hospital público que é o lugar desse tipo de gente e vou deixar bem claro que não será um caso de humanitarismo. Todo os procedimentos feitos com essa paciente serão descontados do seu salário no final do mês. Era só isso que eu tinha para falar. - ele estampou o rosto com um sorriso amarelo.
- Eu jamais imaginei que seria diferente, Dr. John. Quanto ao tipo de gente que eu trouxe essa noite para o hospital talvez ela seja muito mais humana do que outros tipos de gente que perambulam por aí com jalecos. E já que era só isso que eu tinha, mas não queria ouvir, então com licença.
Sem a menor questão de cultivar a política da boa vizinhança, saí de sua sala batendo a porta com força. Voltei andando o mais depressa que pude até a ala onde a menina estava e procurei a enfermeira.

- Enfermeira Collins? - ela levantou os olhos de dois prontuários e sorriu.
- Pois não, doutor?
- A senhorita faria um favor para mim?
- Claro.
- Eu preciso ir para casa para ver meus filhos, mas vou voltar em seguida para cá. A senhorita pode fazer o favor de me ligar caso ocorra alguma mudança na paciente que trouxe essa noite.
- Claro, doutor. Eu entendo sua preocupação.
- Obrigado, enfermeira. E eu já fui falar com o Dr. John. Obrigado por ter me dado o recado.
- É só meu trabalho. - sussurrou antes de abaixar a cabeça de novo para seus papéis.

Saí do hospital, peguei o carro no estacionamento e corri até em casa. Algum tempo depois já estava entrando pela porta tão esbaforido que não vi um brinquedo de Nessie e acabei pisando com força.

- Merda! - gemi, tirando o sapato por causa da dor - Crianças? - gritei, mas não obtive resposta.

Subi as escadas, driblando algumas barbies e tirando a jaqueta de couro de Edward que estava pendurada no corrimão.

- Bagunceiro. - resmunguei, jogando sua roupa dentro de seu quarto.
- Bom dia também, pai. - Jasper disse da porta de seu quarto.
- Filho? Pensei que estivesse sozinho em casa. Você não vai sair hoje para a biblioteca ou o escritório?
- Não, pai. Eu não estava me sentindo muito bem. Acho que estou com um pouco de febre.
- Quer que eu veja? - dei um passo para frente, mas então ele deu outro para trás para fugir de mim.
- Não tenho cinco anos. Sei me cuidar.
- Certo. Edward levou Nessie para a escola? - ele assentiu - E ele foi para escola?
- Disse que ia, mas sabe como é esse garoto.
- Sim, eu sei. - ele me observou por mais alguns segundos de cima a baixo, parecia querer dizer alguma coisa para mim, mas estava engasgado e era assim desde que tudo tinha terminado.
Ele abaixou o rosto, entrou no quarto e fechou a porta sem se despedir. Entrei no meu, indo direto para o chuveiro, mas não estava concentrado o suficiente para fazer até os trabalhos mais simples. Quando terminei, me vesti para voltar para o hospital e vasculhei o bolso da calça atrás do papel que tinha achado em sua carteira.
Se aquele guardanapo tinha vindo mesmo de São Francisco então tinha sido uma viagem longa demais para uma garota sozinha. Disquei para o número do papel e aguardei até que atendessem.

- Conselho tutelar de San Diego, como posso ajudar?
- Er... bom dia.
- Bom dia, senhor. Como posso ajudá-lo? - fiquei sem saber o que responder, por isso simplesmente desliguei na cara da atendente.
- Conselho tutelar? - perguntei a mim mesmo - Ela é menor de idade, será?
- Com quem está falando, pai? - Jasper perguntou da porta.
- Com ninguém, filho. Aconteceu alguma coisa?
- Só quero saber se vai voltar para o hospital para eu ver se tenho que ir buscar Nessie na escola ou não. Sabe que Edward já fez a parte dele até demais, se é que ele a levou mesmo para a escola hoje e não para um bar de pôquer.
- Seu irmão é um cabeça-de-vento, mas ainda confio nele para isso. Pode buscar para mim sim. Eu acho que vou chegar mais tarde hoje do hospital.
- Tudo bem, então. - ele saiu do quarto do mesmo modo desanimado, então no mesmo instante meu celular tocou.
- Alô?
- Dr. Carlisle, é a enfermeira Collins. É sobre a paciente que o senhor nos trouxe.
- O que aconteceu com ela?
- Ela acordou mesmo com o remédio e começou a ficar agitada, nós tivemos que sedá-la.
- Mais ela estava sentindo alguma dor? - perguntei já vestindo a camisa para sair.
- Não que tenha dito, doutor. Estava mesmo muito agitada.
- Eu já vou para o hospital. Obrigado enfermeira.

Desliguei o celular, guardei e saí sem nem me despedir de Jasper. Se ela fosse menor de idade, o procedimento a ser feito era informar mesmo ao conselho tutelar e a polícia local, mas algo me dizia que eu precisava falar com ela antes.
[...]

- Como ela está agora? - perguntei entrando num rompante na sala ainda mal vestindo o jaleco.

A enfermeira sorriu, tentando me acalmar.

- Bem melhor, doutor.
- O que aconteceu enquanto eu estava fora?
- Um pouco depois que o senhor saiu estava perto da hora do remédio e quando eu vim aqui no quarto ela estava acordada e tentava tirar o soro, mas estava sem forças. Eu tentei impedí-la, mas ela ficou com muita raiva, entao começou a se sacudir. O Dr. John entrou no quarto por coincidência na mesma hora e achou melhor sedá-la. Ele não queria que eu ligasse para o senhor, mas como tinha me pedido antes e eu percebi mesmo sua preocupação verdadeira, então avisei.
- Ele é um homem sem escrúpulos. - murmurei.
- É melhor que eu não comente isso.
- Claro que não. Precisa manter seu emprego intacto, eu concordo com isso. Mas e como ele a tratou?
- Como qualquer outro pedaço de pano. Deu um sedativo leve. Isso foi meia hora antes que eu ligasse para o senhor.
- Então ela acordou logo assim que eu saí. Eu tenho que trabalhar, mas virei aqui sempre que puder. Se a senhorita pudesse...
- Ficar de olho nela. Claro, doutor, esse é meu trabalho. Darei uma atenção especial como se o senhor estivesse aqui.
- Obrigado.

Dei uma última olhada eu sem rosto com uma expressão brava e cansada, então fui para a cardiologia para começar a atender todos os meus pacientes. Um por um, seus problemas se tornavam os meus e eu lhes dava toda atenção necessária, mas quando saía de um para o outro era tomado por uma vontade insana de saber como ela estava. Várias outras possibilidades também tinham se formado na minha cabeça sobre seus ferimentos. Talvez ela tivesse sido atropelada, ou tivesse se envolvido numa briga. Da mesma forma que ela, a foto daquele menino não sumia da minha cabeça. Até que já passava da hora do almoço quando fui vê-la.
Entrei no quarto com cuidado para não acordá-la, me aproximei da cama, tomando seus dedos entre os meus quando pude. Imediatamente seus olhos se abriram, revelando um tom de castanho quase chocolate muito diferente dos olhos que eu tinha imaginado me baseando na foto do garoto de sua carteira. Ela entreabriu os lábios como se quisesse dizer alguma coisa, mas os fechou em seguida esperando a minha reação. Afastei meus dedos dos seus pois não queria assustá-la ainda mais.

- Se lembra de mim? - foi a primeira coisa que me veio na mente - Fui eu que te achei na estrada... você estava machucada e... - ela puxou seu braço para longe de mim - Estou te assustando?

A menina olhou para os lados, rodeou a sala, observando cada móvel e o soro ao seu lado. Percebi que em seus olhos só havia dúvida, por isso pensei que talvez não se lembrasse de nada do que tinha acontecido e decidi explicar.

- Você não se lembra que eu a encontrei numa estrada ontem à noite. Você estava no acostamento, passando mal e eu a tirei de lá. Se lembra disso? - ela sequer mexeu a cabeça - Consegue lembrar de alguma coisa?

Apoiou a mão sobre o outro braço e torceu os lábios com dor. Segurei sua mão para que não arrebentasse o soro ou acabasse se ferindo.

- Não faça isso, por favor. Você estava desidratada, precisa disso para ficar bem. - tentou empurrar minha mão, mas a segurei - Não me force a sedá-la de novo. Preciso que fique acordada para responder algumas perguntas. - ela negou com a cabeça - Eu não quero seu mal, menina. Só preciso saber seu nome. Só quero saber porque estava naquele lugar e o que fizeram com você. Só quero saber com quem eu posso falar para te ajudar. Você tem mãe, pai, irmãos?

Suas unhas fincaram no meu pulso, me fazendo arquear o tronco para frente. Ela olhou em meus olhos e fez um som parecido com um rosnado.

- Eu preciso... ir. - murmurou sem ar e completamente cansada.
- Não pode sair daqui. Teve uma hemorragia interna, tantos ferimentos que eu mal pude contar, além da desidratação. Você não vai sair desse hospital.
- Eu... tenho que ir... embora antes que... - ela deitou a cabeça no travesseiro com falta de ar.
- Antes que? - incitei.
- Antes que cause mais algum problema. - John falou atrás de mim - Porque essa garota não está sedada?

Me virei para encará-lo e despejei em meu olhar toda a vontade de socar seu rosto até lhe tirar sangue.

- Não está sedada porque com esse tipo de gente é melhor gastar pouco, não concorda, doutor?

Voltei a olhar para ela, que tinha soltado meu pulso já completamente sem forças. Ao poucos, seu peito parou de subir e descer com tanta rapidez e seus olhos se fecharam ternamente ainda com o efeito do sedativo que a tinham dado. Pensei ter ouvido ela sussurrar mais alguma coisa, mas logo estava com os olhos completamente fechados e os lábios fechados numa linha tensa.

- De qualquer forma, ela não ficará aqui muito tempo. Informei a polícia e eles tem uma desaparecida de Seatle com a mesma descrição física da paciente. A garota é menor e parece que fugiu de casa por problemas com drogas, não me surpreenderia se fosse mesmo a que você achou. O conselho tutelar foi informado também e eles farão uma visita amanhã mesmo para tirarmos a dúvida se é a menina ou não. Se não for, do mesmo jeito ela terá que ser recolhida. Está na cara que não deve ter nem dezesseis anos, precisa de uma instituição e não desse hospital.
- Como pode ignorar a dor de uma pessoa desse jeito?
- Sou médico. Meu trabalho é cuidar e não se importar. - resmungou como se fosse óbvio antes de sair da sala.

Pensei que ela se moveria depois que ele fosse embora, mas permaneceu imóvel, num sono profundo. Preferi me retirar do quarto antes que me envolvesse ainda mais com a jovem. Eu não deveria me importar tanto assim, mas algo nela me trazia uma preocupação quase paterna.
O resto do dia de trabalho foi como qualquer outro. Às seis da tarde, meu último paciente se despedia de mim com um sorriso e um agradecimento sincero. Pela primeira vez em todos os meus vinte e cinco anos de profissão aquilo não bastou para me preencher, me sentir satisfeito comigo mesmo. Ao invés de ir até a ala da enfermeira Collins, resolvi sair pelo outro lado do hospital para não ter vontade de vê-la novamente. Já havia se passado muitas horas desde a última vez, ela devia estar acordada, por isso queria evitar encontrá-la para não aguçar ainda mais minha curiosidade. Eu poderia trazer ainda mais problemas para ela e para mim se continuasse a procurando.

Fui pego de surpresa ao sair do prédio devido a tempestade que caía. Os raios cortavam o céu de um lado ao outro e algumas enfermeiras se aglomeravam na porta esperando uma trégua para caminharem até o ponto de ônibus. Preferi enfrentar a água até o carro estacionado, desviando dos outros veículos e das enormes poças.
Quando entrei no carro, joguei a minha maleta no banco de trás e o liguei. Mas ele estava engrenado e por isso deu um pinote quase batendo no carro da frente. Em seguida, o motor morreu, fazendo as luzes do farol desligarem deixando o estacionamento mais escuro.

- Merda de pressa! - murmurei no escuro, enquanto girava mais uma vez a chave na ignição, mas ele demorou a pegar de novo - Vamos, inferno! - bati com a mão no painel e nesse instante um outro estampido fez chamar minha atenção para a parte de trás do carro.
Olhando pelo vidro traseiro não pude perceber nenhum movimento ou luz por causa da chuva intensa que caía, mas a minha impressão era de ter ouvido a porta da mala sendo batida. Um trovão me fez voltar a realidade. O barulho deve ter sido apenas mais uma porta de carro lá fora fechando ou alguém deixando algo cair o que não era muito difícil ficar atrapalhado com a quantidade de água que descia da enorme nuvem negra.

O carro ligou, então arranquei e fui direto para casa, me lembrando de novo da garota ao passar pelo mesmo ponto da estrada onde a encontrei. O casarão estava iluminado quando estacionei o carro na garagem. O portão se fechou, eu busquei minha maleta e desci do carro. Enquanto o trancava, ouvi um som abafado vindo da parte de trás. Caminhei até ali, pensando ter atropelado algum animal ou algo do tipo, mas notei que o som vinha da mala.

Com cautela, girei a chave no tambor e abri a porta, quando aquelas duas mãos vieram para o meu rosto pressionando meus lábios. Tentei me afastar, mas ela estava agarrada ao meu pescoço.

- Não grite, por favor. Não peça ajuda. - seus olhos estavam suplicantes e chorosos.

Ela pressionou ainda forte meus lábios, quando tentei os mover. Ainda vestia a camisola do hospital e sua roupa estava encharcada. Eu só queria saber como ela conseguia estar em pé e como tinha saído do hospital e se escondido ali. Movi a cabeça tentando me livrar de suas mãos, mas ela não me deu espaço.

- Se você tem alguma compaixão dentro de si, então por favor não diga a ninguém que estou aqui. Por favor, doutor, não grite. Não vou fazer nada com o senhor. Não sou criminosa, usuária de drogas ou qualquer merda dessa. Eu só preciso da sua ajuda. A ajuda que você disse que me daria. Por favor?
[...]

- Boa noite, meu bem. - Nessie sorriu, abraçou a boneca e fechou os olhos.

Terminei de a cobrir, acendi o abajur da cabeceira para que não ficasse com medo do escuro e saí do quarto. Edward saía do dele ao mesmo tempo que eu, mas fingiu não me ver.

- Onde vai? - perguntei percebendo que ele ia descer as escadas.

O garoto vestiu uma jaqueta, guardou a chave da moto no bolso e deu de ombros.

- Pra qualquer lugar bem longe daqui.
- Você tem aula amanhã. Volte para o seu quarto agora, Edward. - tentei o alcançar, mas ele já estava no primeiro andar.
- O que vai fazer se eu não voltar, pai? O mesmo que fez quando a mamãe não voltou?
- Não fale assim comigo. Eu sou seu pai, então deve me obedecer.
- Até mais tarde, pai. - saiu pela porta da sala.

Estava sem forças para brigar mais uma vez com ele, estava quase desistindo de tentar manter minha autoridade como pai com aqueles meninos. Sem querer mais saber disso, fui até a área de serviço e entrei nas dependências de empregada da casa. Isabella estava deitada na cama, tentando repousar. Precisei fechar a porta com chave caso alguém viesse atrás de mim, principalmente Rennesme. Ela briu os olhos quando ouviu o barulho, sorriu e se sentou.

- Não se esforce. - recomendei, me sentando ao seu lado.
- Acho que estou melhor. Não precisa se preocupar.
- Não. Você não está nem um pouco melhor. Não pode ficar aqui na minha casa. Eu preciso subir, avisar meu filho mais velho que vou sair e te levo de volta para o hospital.
- Não, por favor, deixe-me explicar.
- Não há nada o que explicar. Você entrou na mala do meu carro escondida. Como pôde fazer isso?
- Saí escondido da enfermeira. Me esgueirei pelos corredores. Me lembrava como era seu carro e esperei até você chegar.
- Se lembrava? Quer dizer que você se lembrava de tudo que aconteceu na estrada e não falou nada naquela hora para mim?
- Estava desesperada demais. Não sabia se podia confiar em você. Precisei fazer aquilo.
- Olha, eu entendo que voce esteja com medo, mas não posso aceitá-la na minha casa. É inconceptível! Não há como cuidar de você, além do mais vão procurar seus pais amanhã.
- Eu não sou a garota desaparecida de Seatle que aquele arrogante do jaleco disse enquanto estávamos no quarto.
- Você estava ouvindo tudo?
- Eu sou de San Diego. Atravessei três estados para fugir dela, o senhor não pode me entregar para o conselho tutelar assim.
- Você veio da Califórnia para Washington? Como?
- A pé, de carona, no bagageiro, não importa de que forma. Eu demorei tempo demais pra conseguir fugir, não posso voltar agora.
- Voltar para onde?
- Doutor, eu te suplico que não me leve de volta para o hospital. Não estou pedindo para ficar na sua casa, jamais pediria isso ao senhor, sua esposa, seus filhos, mas não posso voltar. Me deixe ir embora e não conte a ninguém que me ajudou. É só isso que eu preciso do senhor. Juro que vou sumir e nunca mais saberá de mim. Só preciso que busque minha mochila no hospital.
- Acha mesmo que eu faria isso por você?
- Doutor, é questão de vida ou morte. O senhor jamais vai entender, mas eu não posso voltar para onde estava. Ela vai me matar.
- Ela quem? - recusou a dizer com a cabeça - Não posso te deixar ir embora se não estiver bem de saúde. Não posso te deixar ir a lugar nenhum se não me contar o que está acontecendo com você.

Ela abaixou a cabeça, abraçou as pernas com seu olhar triste, encarando o lençol sem vontade.

- Não posso.
- Porque não? Eu prometo que não te impeço de ir embora depois de me contar, mas eu só quero saber a verdade. O que aconteceu com você naquela estrada? O que aconteceu antes?

Com lágrimas nos olhos, ela levantou o rosto, hesitou alguns minutos e perguntou sem forças:

- Então, o senhor seria capaz de guardar segredos?

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Notas finais do capítulo

Bem, gente, essa história é uma das que mais gostei de escrever e espero que gostem também de ler.