Kaleidoscope - Um Mundo só Seu escrita por Blodeu-sama


Capítulo 9
Cap. IX – Enganos da Juventude


Notas iniciais do capítulo

Titulo da fic inspirado no título da música Doro Darake no Seishun, do Gazetto. E gente, há uma quantidade maior de momentos doces e amorosos e melodramas angust nesse capítulo, só pra avisar.

Musicas: Morning Song – Jewel, para a parte do Reita e do Aoi. Crazy Little Thing Called Love – Queen, para os momentos Hiroto x Shou. Exile – Enya, para o funeral. E Harder to Breath – maroon5, para o resto do capitulo.



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Um homem loiro de cabelos curtos e braços fortes relutantemente escondidos dentro de um casaco de lã fino e escuro batia a mão impaciente na própria coxa. Droga, droga, droga... estava atrasado... maldito cachorro! Havia resolvido aliviar a bexiga do peso extra bem em cima de suas roupas de trabalhar! Maldito cachorro...

- Dá pra dirigir mais rápido?! – perguntou mal humorado ao homem ao seu lado.

- Não seja ranzinza, Reita.

- Culpa daquela seu cachorro.

- Hey, não culpe o Sabu! Ele é só um filhote.

O psiquiatra revirou os olhos, suspirando ao ver a fachada do Circe se aproximando. Podia se atrasar em muitas ocasiões, mas os dias de terapia de Takanori Matsumoto não eram uma delas. Principalmente porque o tutor legal de Takanoki Matsumoto podia fazê-lo ficar desempregado pelo resto de sua pobre e ordinária vida de trabalhador. E Reita sabia que Saga-san não era lá muito condescendente, principalmente quando se tratava de Ruki.

Mal o carro parou e Reita já abriu a porta, mas foi impedido de sair por uma mão ao redor de seu pulso.

- Eu não ganho nem um beijo por ter trazido você ao trabalho?

O loiro sorriu brevemente e depositou um beijo nos lábios do outro homem, docemente.

- Desculpe, é que...

- Sei, sei... aquele tal Ruki. Eu venho buscar você hoje, está bem?

- Combinado – e novamente selou os lábios do companheiro com um beijo inocente e demorado, antes de sair correndo, deixando o motorista a rir sozinho, antes de voltar a arrancar.

Reita subiu as escadas de dois em dois degraus e entrou como um verdadeiro furacão no lobby do Centro, colidindo com uma força bem dolorosa com um rapaz alto de sobretudo de plástico rosa que vinha na direção contrária. Reita conseguiu cambalear e se equilibrar de pé, mas Shou foi arremessado no chão, deslizando um bom meio metro antes de parar. E com aquele tipo de capa de chuva berrante que usava, isto causou um peculiar barulho de borracha que fez a mocinha da recepção rir mesmo sem querer.

- SHOU-SAN! Perdão...

Reita correu para ajudar o rapaz a se levantar, mas este já havia sentado no chão e massageava o pulso.

- ...Reita-san, está atrasado – resmungou, aceitando o braço do outro para se levantar. Mas ao segurar a mão do psiquiatra, sentiu uma dor aguda no pulso – ai...

- Desculpe, Shou-san – murmurou o maior, ajudando-o a se sentar em uma das cadeiras de espera ali.

- Ah, tudo bem! Eu estou bem, honey, pode deixar. É culpa desse arquiteto, sempre disse que deviam colocar portas de vidro na frente para que as pessoas pudessem ver antes de entrar – o secretário sorriu e sacudiu a mão boa, como se mandasse o outro se apressar. – Vá logo, hoje é dia do Ruki-chibi!

Reita ainda hesitou dois segundos, olhando para o secretário rosa berrante, então se inclinou em agradecimento e voltou a correr. Shou imediatamente desfez o sorriso confiante para formar um bico de criança, esfregando o pulso com mais força.

- Ai, ai, ai...

- Está tudo bem, Shou-san? – perguntou a mocinha do balcão, sua assistente.

- ...Estou Hana, queridinha, estou maravilhoso – murmurou o secretário, levantando de novo e testando o movimento da mão. Doía como o inferno, mas ele tinha coisas demais a fazer para se preocupar com aquilo. – Uruha-kun já chegou, Hana?

- Não, Hiroto-san ligou avisando que deu a manhã de folga a ele por causa de um parente falecido. Disse que passaria aqui depois para ver a papelada de dispensa.

O rapaz aproximou-se mais do balcão, rápido como um lince e se debruçou sobre ele.

- Pon vai vir aqui?! Vai realmente entrar aqui?! A que horas?

- Disse que pelo fim da tarde, quando vier buscar Uruha-san. – respondeu a moça, mordendo o lábio inferior para não rir dos olhos brilhantes do chefe.

- Ai Deuses! Justo hoje que não consigo ter tempo nem para almoçar e retocar a maquiagem... – Shou ergueu o corpo, mordendo a pontinha do dedo indicador enquanto pensava. – Já sei! Deixe de lado aqueles arquivos atrasados e envie os avisos de pagamento, quando Uruha-kun chegar você o manda direto para organizar os circuitos de fisioterapia, eu vou entregar aqueles memorandos agora e... acho que assim da tempo de ficar apresentável até as cinco da tarde. Deuses! Esse ano já começou corrido, isso deve ser um bom sinal. Me deseje sorte!

- Boa sorte, Shou-san – disse a mocinha, rindo, quando este novamente sumiu para dentro do prédio, mancando levemente.

-

Tsurigane ni
Tomarite nemuru
Kochoo kana

Uruha pronunciou silenciosamente as palavras gravadas em pedra negra, deixando que se formassem uma a uma em seus lábios e em seguida sumissem no burburinho abafado do lugar. “Sobre o sino, repousa e dorme, a borboleta”. Era de algum poeta antigo e famoso da época em que ainda havia samurais ou algo assim. Fora ela mesma quem escolhera, segundo Kai. Ou ao menos Baachan parecia adorar o pequeno poema. O amigo estava ao lado dele, abraçando a mãe protetoramente, os olhos ainda vermelhos, porém secos. Akemi-san ainda chorava, silenciosamente. Uruha ainda não conseguira chorar. Não quando ainda esperava que a pequena senhora fosse levantar da terra, sacudir a poeira das roupas e perguntar onde estava seu chapéu e o por quê de toda aquela gente com cara de fome. Não quando ainda tinha esperanças que tudo não passava de um pesadelo e que aquela sensação boa que tivera ao sair do santuário fosse voltar, que a neve não parecia tão triste, que o sol fosse despontar por trás das nuvens grossas aquecendo a todos com uma promessa de verão. Não agora... talvez mais tarde.

Olhou em volta, desinteressado. Havia de fato muitas pessoas ali. Muito mais do que ele estava esperando. Havia muitos senhores de aproximadamente a mesma idade que Baachan. Algumas senhoras também. Havia gente absolutamente normal, talvez amigos de Akemi-san. Havia um ou dois tipos que eram definitivamente excêntricos. Uruha afastou-se a passos lentos do aglomerado maior, ouvindo trechos de conversas mantidas em voz abafada.

- Ela ainda era cheia de vida... – murmurava uma senhora de vestes tradicionais. O velhinho com quem conversava riu baixo.

- Naabi sempre foi assim. Quando éramos jovens, eu me apaixonei por ela...

O loiro riu. Em todos os seus anos de vida, raramente vira alguém chamando a Baachan pelo nome. Um pouco mais afastado, outro senhor em uma cadeira de rodas e quase tão pálido quando Baachan em seus últimos dias também sorria como se lembrasse de alguma coisa muito longínqua e doce no passado. Falava sobre isso com a pessoa que parecia ser seu filho.

- Ah sim, foi por essa mulher que eu roubei aquela flor nos terrenos de Joubi Tsuhara, lembra-se da história? Mas ela preferiu aquele Yutaka e ele era mesmo bom com as mulheres...

- Uruha!

O loiro virou o rosto e viu um jovem moreno mais baixo que ele correndo em sua direção. Nao-san parecia preocupado. Uruha parou onde estava, esperando por ele.

- Ah... Uruha-san... acabei de saber. Como Kai-san está?

- ...Devastado – respondeu o maior e o tom de sua voz parecia demonstrar que Kai não era o único neste estado de espírito. Nao o olhou com certa condescendência.

- ...Minhas condolências, Uruha-san. Imagino que também era próximo da senhora.

Uruha o olhou bem. O que raios Nao estava fazendo ali?! Ele nem sequer conhecera Baachan. Ele sem sequer os conhecia direito! E Uruha notou que havia um pequeno envelope preto e prateado em suas mãos(1). Por que, afinal, se preocupar com funerais? Definitivamente não era assunto dele.

- Sim, eu era. – respondeu, em um tom impaciente e perigoso.

- ...Ahn... e Kai-san...?

- Lá – Uruha apontou incerto para o local que acabara de deixar e se distanciou, sem dizer mais nenhuma palavra. Não olhou para trás para ver Nao se apertando entre as pessoas presentes para chegar até Kai e não viu como os olhos de seu amigo se desanuviaram levemente quando Nao lhe tocou o braço. Não reparou em nada, na verdade, até ver Hiroto-san com o corpo apoiado em seu velho carro, de braços cruzados, esperando pacientemente.

E só então se deu conta do quão exausto estava.

Passara os últimos três dias ajudando Kai com todos os preparativos. Todos aqueles sacerdotes sanguessugas amantes de dinheiro eram de fato um problema. Uruha sabia que, em algum momento, convencera o pai a ajudar nas despesas. E tinha um amargo pressentimento que seria cobrado pelo favor mais tarde. Ou mais especificamente, o senhor Takashima teria mais um argumento para lhe jogar na cara quando estivesse tentando convencê-lo a ser o filhinho perfeito outra vez. E agora, teria que voltar ao Circe, trabalhar de graça, agüentar toda aquela maldita gente anormal da mesma maneira que suportara todos os dias que antecederam a este. Mas este não era um dia normal. Não, este deveria ser um dia de luto, não apenas daqueles que estavam presentes, mas de todos. Por que ninguém parecia se importar?! Por que nem mesmo ele conseguia assimilar bem tudo aquilo? Era demais para ele.

- Ah... Takashima-san... – Hiroto endireitou o corpo e andou os poucos passos até ele. – Que bom que já podemos ir, estamos atrasados.

- Por favor... – murmurou, numa voz grave e ressentida, baixando o rosto porque não queria ter que encará-lo enquanto implorava. - ...Por favor, não me faça ir para lá hoje. Não hoje.

Hiroto ficou em silêncio por quase um minuto inteiro. Se Uruha tivesse erguido os olhos, notaria que o rapaz estava lutando para saber o que fazer naquele momento. Se era demais por a mão sobre o ombro do outro e dizer algumas palavras reconfortantes ou se podia de fato esquecer seus deveres e prestar esse favor a ele, talvez assim ganhando um pouco de respeito ou quem sabe uma nova amizade. Ele teria visto, mas só o que ouviu foi Hiroto suspirando entre resignado e impaciente.

- Eu sinto muito, Takashima, mas eu não posso fazer isto. Há pessoas contando com você no Circe e você ainda tem que pagar sua dívida para com a sociedade.

Uruha não conseguiu agir por um tempo. Ele apenas ficou parado, a cabeça baixa, os punhos apertados e os lábios num ricto de ódio. Ficou parado apenas se convencendo internamente que não valia a pena espancar aquele idiota pobretão, que não valia a pena estourar por Hiroto ser apenas o mesmo imbecil de sempre. Não agora... talvez mais tarde.

Então Uruha apenas empurrou o outro de sua frente, com muita pouca sutileza e começou a andar a passos duros em direção a rua, ignorando o velho carro.

- Hey! – Hiroto tentou alcançá-lo, mas Uruha apenas apressou o passo, falando alto e com ódio o suficiente para assustá-lo.

- Eu vou a pé. Ah, e não se preocupe, Hiroto Ogata, eu estarei lá pagando a minha dívida para com a maldita sociedade.

E, de fato, Uruha chegou ao Circe cerca de meia hora depois, ainda mais exausto, ainda mais alheio ao mundo e ainda mais irritado com qualquer coisa que respirasse. A mocinha da recepção tremeu ao ver o olhar que ele lhe lançou, quando o informou de seu trabalho naquele dia. Uma jovenzinha que acompanhava a mãe chegou a encher os olhos de lágrimas quando ele a chamou de ‘vadiazinha fingida’ por ela ter entrado em seu caminho. Era bastante óbvio para quase qualquer um que cruzava o caminho de Uruha que ele estava agindo perigosamente. Por isso ele foi deixado sozinho em uma das salas cheias de bolas e dados de pelúcia gigantes e coloridos - usados ele não sabia nem se importava para que - isolado em sua própria dor enquanto socava com força cada um daqueles estúpidos brinquedos para dentro de seus devidos lugares nos armários.

Infelizmente Ruki não era alguém que conseguia perceber facilmente o que outras pessoas sentiam. Não, ele estava particularmente feliz naquele dia, talvez animado com o começo do ano e com o fato de que há apenas alguns dias atrás conseguira finalmente falar com Uruha-san. E estava feliz porque Saga-sama estava feliz e assim ele ficava em casa mais tempo e tinha mais paciência com ele. E não começava a lhe ensinar aquelas lições de como ser normal.

E Reita-san chegara exatamente três minutos atrasado, mas Ruki não se sentira desconfortável com isso o dia todo, como costumava acontecer. E agora já eram seis horas e Ruki sabia que Nao-san não iria estar ali para levá-lo para casa, porque alguma coisa acontecera a família de um amigo e ele precisara pedir a tarde de folga. E isso significava que o motorista iria levá-lo para casa e o motorista era um senhor muito simpático que lhe contava histórias sobre quando ele era muito pequeno.

E agora ele sentia vontade de falar com Uruha-san outra vez e essa vontade lhe dava uma sensação de nervoso diferente da usual. Não estava suando frio, nem desejando estar do outro lado do mundo. Apenas sentia um leve arrepio na barriga que lhe dava mais coragem que medo. Então ele andou por aqueles corredores tão conhecidos até perceber por uma fresta em uma das portas um movimento de cabelos dourados que com certeza pertenciam a Uruha-san. Bateu na porta três vezes e entrou, com um levíssimo sorriso e um rosto ruborizado.

- Hum... uhum, boa tarde, Uruha-san... – murmurou.

Uruha voltou os olhos para ele. Ruki não estava propriamente olhando, mas sentia os olhos cinzentos do outro sobre si. Fixos.

- ...Oi, Ruki-san.

Aquele pequeno, minúsculo sorriso, sumiu. Havia alguma coisa errada.

- ...Ahm...

- Você quer alguma coisa? – perguntou o outro, friamente, e Ruki chegou a erguer os olhos para ele.

- ...Ahn... s-só... só queria... é...

- O quê?! Conversar?! Sinto muito garoto, hoje eu não estou com paciência pra manter uma conversa onde só eu falo.

E Uruha mordeu o lábio inferior com força assim que percebeu o que tinha acabado de dizer. Porque sabia que fora mais do que grosseiro. Fora cruel. E embora ele estivesse pouco se importando com os sentimentos de qualquer outra pessoa do mundo naquele instante, magoar Ruki era a mesma coisa que atirar dardos em um vaso de porcelana fina. Não podia esperar que ele fosse agüentar aquele tipo de frase como as outras pessoas. Não aquele garoto frágil e tímido...

“Meus parabéns, seu idiota! Acabou de estragar anos de terapia e um mês inteiro de esforço próprio”, disse para si mesmo, quando viu os olhos do menor cintilarem estranhamente antes de perderem completamente o brilho. O menor respirou fundo, novamente com o rosto baixo e inexpressivo, inclinando-se numa reverência bastante formal.

- ...M-me desculpe – murmurou, antes de deixar a sala quase correndo.

Uruha se levantou, pensando em segui-lo e pedir desculpas. Pensando em talvez se oferecer para montar um quebra-cabeças com ele. Pensando em por que tudo tinha que estar tão fodidamente errado naquele dia. Por que se importava com aquele desconhecido esquisito. Por que Baachan se fora. Por que parecia atrair desgraças não importava o que fizesse. Mas estava exausto de mais para achar respostas para estas perguntas, ou para pedir desculpas ou montar um quebra-cabeças.

Talvez mais tarde.

E ele recomeçou a socar os dados de pelúcia, apenas pelo prazer de bater em alguma coisa por mais alguns minutos, porque eles já estavam todos organizados.

-

- Pon!

Hiroto fechou os olhos, como se tivesse sido pego em flagrante, antes de se virar com um pequeno sorriso para o outro rapaz. Quase se arrependeu totalmente desse gesto ao ver o que Shou estava vestindo aquele dia. Que tipo de pessoa usava um sobretudo de plástico pink no trabalho?!

E, notou, esse não era o único detalhe chamativo, embora fosse o mais gritante. Por baixo do sobretudo, o secretário usava uma calça colada as pernas, dourada(2). No rosto, havia uma não tão discreta maquiagem escura ao redor dos olhos e gloss nos lábios. E embora aqueles detalhes passassem longe de deixarem o rapaz feio, ainda assim eram um pouco de mais para Hiroto e suas córneas sensíveis a excesso de cores fluorescentes.

- Shou...

- Ohow, seu garoto safado. Aposto que achou que não iria me encontrar hoje. Não pode fugir pra sempre, dear – disse ele, sorrindo daquele jeito aberto e quase desconcertante.

- I-imagine, Shou, eu não fujo de você- disse, num tom supostamente leve e despreocupado. Não enganaria nem mesmo a um bebê.

- Ah sim, não foge, por isso nunca ligou para marcar de uma vez aquele jantar, certo?

Hiroto sorriu sem graça e voltou novamente o corpo para o balcão, recomeçando a assinar o bolo de papeis que tinha a frente. O maior pareceu não se importar muito, pois debruçou-se sobre o mesmo balcão bem ao lado dele, ainda sorrindo.

- Então, já que está aqui, que tal marcar agora?

- Ah, sabe, eu estou meio atolado de trabalho, Shou, quem sabe mais para frente...

- ...Como quiser, Pon, só me deixe saber, okay? Na verdade, pensei que poderíamos largar esse jantar de lado e ir ao cinema. O que acha?

O fiscal olhou o outro apenas com o canto dos olhos. Shou sorria amavelmente e passava a mão sobre os cabelos, os olhos tão cinzentos que chegavam a parecer azulados e apenas a pontinha da língua vermelha visível, presa entre os dentes ansiosamente. Voltou a olhar para os papeis, tentando não parecer tão ridículo quanto estava se sentindo ao olhá-lo daquele jeito.

- Hum, quem sabe. Eu ligarei.

- ...Certo. Bem, e como vai com essa papelada? – e embora parecesse impossível, o brilho ofuscante que o secretário emanava diminuiu um pouco.

- Ah, quase terminando. Hum, aqui... e aqui... esses ficam comigo – disse, sorrindo um pouco mais e separando um maço de folhas em cada mão. Estendeu uma das mãos ao secretário. – E esses aqui ficam com você. Faça Takashima assinar a última folha amanhã, está bem?

- Clar... ai! – Shou estendera a mão para pegar a papelada, mas mesmo ao peso quase insignificante de algumas folhas o seu pulso cedeu e papeis voaram e se espalharam pelo chão. Hiroto rapidamente largou seu próprio bolo de documentos na bancada e se abaixou para recolher aquilo, enquanto o outro se desculpava.

- Perdão, neh, Pon! Hoje estou um verdadeiro de-sas-tre! – e também se abaixou para pegar os papeis, mas mantinha o pulso ferido junto ao corpo e apertava os lábios como que se impedindo de praguejar.

- O que aconteceu? – perguntou o fiscal, tirando os papeis da mão do outro e acabando de recolhê-los, para depositá-los em completa desordem ao lado dos seus. Shou sorriu ainda mais sem graça e fez um gesto de descaso.

- Ah, nada! Caí sobre o pulso hoje, mas nada com que se preocupar... – mas Hiroto já havia puxado o braço dele – talvez indelicadamente – e erguia a manga de borracha até o meio do antebraço. E, visto assim, seu pulso era bastante passível de preocupação. Estava levemente inchado e arroxeado, e quando Hiroto delicadamente tentou fazê-lo girar a mão, Shou foi incapaz de conter um gemido de dor.

- Você torceu. Devia mandar um médico olhar isso.

- Ah... sim, obrigado, Pon. Farei isso assim que tiver tempo.

- O que quer dizer nunca – resmungou o outro, rindo sarcasticamente e erguendo os olhos para ele.

O secretário sorriu tímido, baixando os olhos e novamente passando os dedos da outra mão sobre os cabelos loiros.

- Ah, Pon, não seja assim, você sabe como é por aqui no Circe! Eu tento...

- Você mudou seu cabelo.

Hiroto não sabia por que havia dito isso. Ele apenas disse e depois já era tarde demais para desdizer. E Shou pareceu voltar a brilhar com a força de uma lâmpada de 400 watts.

- ...Ah, é, eu o clareei mais desde a últim...

- Sábado.

- O quê?!

- Sábado. Podemos ir ao cinema. Se você for ao médico hoje.

O secretário brilhou com ainda mais força. E Hiroto achava que ele era a única pessoa no mundo que conseguia dar essa impressão de brilhar quando ficava feliz. Algo nos olhos talvez. Inexplicável e esquisito, mas fazer o quê? E, se precisava sair com ele para convencê-lo a cuidar daquele problema no pulso...

- Ahg!

E este som de descaso e ridicularização viera do rapaz de roupas negras e cabelos loiros, revirando os olhos diante da cena que via. Hiroto ficou repentinamente vermelho ao ver que ainda segurava a mão de Shou entre as próprias e rapidamente o soltou. Uruha apenas lhe virou as costas resmungando.

- Ande logo com isso aí, eu espero lá fora.

“Ótimo, uma demonstração grátis de acasalamento animal, para coroar o meu dia”, pensava sozinho, enquanto descia as escadas em frente ao Circe de cabeça baixa. Mas ele percebeu, apenas alguns segundos depois, que seu dia ainda não havia acabado, quando ergueu os olhos para a rua procurando o carro do fiscal e o viu. Ele.

E deuses, como ele estava lindo!

Os cabelos - antes negros como piche - agora tinham alguns levíssimos toques de dourado, e estavam mais longos e mais repicados que antes. Os olhos escuros ainda tinham aquele ar de malícia, que devia ser causado unicamente pelo formato perfeito de seu rosto, porque Uruha sabia que ele era um perfeito bebezão inocente e apaixonadamente romântico. O corpo esguio e flexível estava ainda mais definido, visível pelo suéter colado e negro que usava. Apoiava-se displicente na porta de uma caminhonete escura, ignorando o frio e sorriu levemente ao notar que era observado. Ao erguer os olhos e perceber Uruha ali, parado como uma estátua, demonstrou certa surpresa, porém não o bastante para que deixasse de emanar aquela elegância espontânea por todos os poros.

- Aoi!!! – disse finalmente, demonstrando tanta surpresa quanto sentia e finalmente se perguntando o que diabos seu ex-namorado estava fazendo ali. Será que viera falar com ele? Ou soubera da Baachan... mas o sorriso largado e infantil do moreno parecia contradizer ambas as hipóteses.

- Uruha! Uau, faz tempo que não te vejo! O que está fazendo aqui?

- Eu... – começou o loiro, meio confuso, mas então um minúsculo e peludo cachorrinho cor de creme pulou na janela do banco traseiro da caminhonete, latindo como se tivessem matando-o a pauladas e assustou Uruha. – Que coisa é essa?!

- Ah! É só o Sabu –Aoi riu e debruçou-se sobre o banco para pegar o filhote no colo. – É meu novo cachorro. Sabu, diga oi ao Uruha-san... – e segurou a patinha do cachorro forçando-o a “acenar”. O loiro revirou os olhos e se afastou um passo.

- Eu sabia que você ia acabar enlouquecendo, Aoi.

- Eu não estou enlouquecendo, apenas passeando de carro com meu filhote – respondeu o outro, ainda rindo, maravilhosamente bonito como sempre. Uruha engoliu em seco e franziu a testa.

- Ah... e veio passear com ele logo aqui? O que você esta fazendo aqui, Aoi?!

- Perguntei primeiro – e claro, maravilhosamente idiota, como sempre também.

- Eu trabalho aqui. Quero dizer, serviço comunitário...

- Ah sim! Eu soube. Você deu sorte, Uruha, podia ter ficado na prisão por muito tempo – Aoi abaixou-se e deixou o cachorrinho aos seus pés e este imediatamente começou a cheirar os coturnos de Uruha.

- Sim. Eu sei disso. Meus pais disseram isso e Tieme, e Kai e Baach... chan – e ele se calou, baixando o olhar para o cachorrinho apenas para enxotá-lo levemente com o pé.

- Ah é, a Baachan! Mulher divertida. Como ela está?

- Morta.

O sorriso aberto no rosto do moreno sumiu e deu lugar a mais uma expressão de pena, que estavam começando a irritar Uruha.

- ...Oh, desculpa, eu não sabia...

- Como poderia saber? Foi há três dias – resmungou o loiro, ainda sem erguer os olhos.

- ...Você gostava dela, não é? Sinto muito, Uruha...

- Não, você não sente. E não entende. Você não a conhecia – resmungou, tão frio quanto pode, mas isto não demoveu Aoi.

- Mas eu ainda conheço um pouco sobre você, Uruha-chan... – Aoi sorriu tímido, erguendo o queixo dele e Uruha não conseguiu evitar de armar um bico emburrado.

- Você não tem mais o direito de me chamar assim, Aoi...

- Ah, eu sempre vou ter esse direito, Uruha-chan. E deixa eu adivinhar... você tem tentado bancar o durão até agora...

- Kai precisou de mim, sem choradeiras inúteis...

- Uhum... como eu pensei... – Aoi depositou um beijo suave na bochecha dele. – Sabe, eu sei que o fim do nosso namoro não foi muito agradável, mas se ainda posso dar conselhos, acho que Kai não se importaria se você chorasse...

Uruha não se afastou. De fato, havia um bolo salgado em sua garganta que ele se forçou a engolir. Talvez porque estivesse tão próximo a seu único ‘amor’ e não fazia sentido estragar tudo com sentimentalismos, ou talvez porque não seria capaz de chorar ali no meio da rua. Ou ao menos ele achava que não.

- ...Você tirou o piercing – murmurou, contendo-se para não o beijar. Aqueles lábios grossos, macios. Será que ainda tinham gosto de morango?

- É, achei que já estava velho de mais para ele – disse o moreno, voltando a sorrir levemente e se afastando alguns centímetros até uma distância descente.

- Eu gostava dele. E você não me disse o que está fazendo aqui.

- Ah, eu vim busc...

Porém antes que terminasse a frase, um braço masculino forte o envolveu pela cintura e Uruha logo percebeu que pertenciam ao psiquiatra de Ruki. O tal Reita de quem não gostara nada. E o sujeito agora virava o rosto de Aoi para si e o beijava levemente, logo sorrindo para Uruha e dando uma odiosa, insípida e onipresente impressão de ser um pai de família honesto e amoroso.

- Ah amor, desculpe o atraso, vejo que conheceu um dos nossos funcionários. É Uruha, certo?

Aoi riu e Uruha olhou do rosto de um para outro, aquela pequena luzinha de uma sensação quente que havia começado a se acender em seu peito se apagando com força total. “Amor”?! Aoi estava saindo com... com... aquilo?!? Com aquele nerd de pullover e calça social?!

- Não, Reita, eu e Uruha já nos conhecíamos. Lembra, eu falei sobre ele – Reita ergueu uma sobrancelha, ainda sorrindo e parecendo confuso.

Uruha apenas os observava.

- Falou? Desculpe, eu não me lembro...

- Claro que falei, amor. Meu último namorado... boates, bebida, loucuras de fim de juventude...

- Ah sim! Claro! Então era sobre você, Uruha-san?! Uau, isso é uma coincidência estranha, hein?!

E Reita estava rindo, e Aoi estava rindo, e o pequeno cachorrinho abanava o rabo feliz. E Uruha apenas os encarava, aquela família perfeita, irritantemente perfeita, como a sua própria família e de repente tudo veio a tona.

Sua mente ficou meio nebulosa. Imagens dos olhos sem brilho de Ruki misturaram-se as imagens de Baachan dentro de um caixão, vestindo um kimono que ela certamente odiaria. Imagens suas com Aoi se misturaram a lembranças vagas que tinha de seus outros encontros superficiais e alcoolizados. Em um segundo, ele reviu o rosto do homem para quem apontara uma arma descarregada e depois o rosto de seu melhor amigo riscado de lágrimas da primeira manhã do ano.

Em um segundo, Uruha sentiu o sangue subir a seus ouvidos abafando aquelas risadas infames, sentiu seu ódio do mundo aumentar a níveis estratosféricos e os dedos de sua mão direita estralarem quando fechou o pulso com força.

E no segundo seguinte, ele havia usado toda a força que ainda tinha contra o nariz de Akira Suzuki. E pressentiu, antes de saber, que havia quebrado um par de ossos naquela região.

Reita gritou. Aoi gritou e Uruha tinha bastante certeza de ter ouvido Hiroto gritar também.

Sangue começou a jorrar quando o corpo do psiquiatra se chocou com força contra a caminhonete e ele continuou a gritar, apertando o nariz e tentando talvez enxergar por trás das lágrimas que haviam se formado imediatamente em seus olhos. Porque ter o nariz repentinamente quebrado por um delinqüente era muito, mas muito mais doloroso do que aqueles filmes de Hollywood o faziam crer. Um par de olhos cinzentos, também não tão secos, estreitou-se ao olhar para o ex-namorado.

- É POR ISSO QUE VOCÊ ME LARGOU?! –Perguntou, acima de todos os outros gritos. – ISSO?! – berrou, apontando com a mão esfolada para Reita e quando Aoi parecia prestes a responder alguma coisa, Uruha novamente avançou de punhos erguidos para o outro homem loiro e Aoi teve que se interpor entre eles, recebendo então grande parte dos socos destinados ao namorado. Porém, mesmo completamente atônico, notou que já não eram socos fortes e que Uruha estava prestes a chorar; e que talvez, apenas talvez, esse súbito acesso de violência não fosse puro e simples ciúmes.

Reita se ergueu com certa dificuldade, meio tonto, afastando o cachorro que mordia fracamente a barra de sua calça e tentou se por em posição de luta, mesmo que sua blusa estivesse completamente ensopada com seu próprio sangue. Aoi, então, colocou uma mão sobre o peito dele, impedindo-o também e foi neste momento que Uruha olhou em volta e viu vários rostos curiosos a porta do Circe, olhando a briga assustados. Havia dois que se destacavam especialmente e um deles era apenas pela ira. Hiroto-san o olhava como se o quisesse matar naquele momento, mas ainda estivesse demasiadamente surpreso para fazê-lo.

E Ruki. Ruki olhava fixamente nos olhos dele, como nunca havia feito antes. Olhava tão fixamente e de um jeito tão assustado que parecia estar presenciando a morte. Ou, não a morte, mas algo tão decepcionante e desesperançoso quanto. Suas pequenas mãos cobriam os lábios rosados e, quando viu que Uruha o encarava, fechou os olhos com força e balançou a cabeça em negativa, se impedindo de chorar.

Uruha soluçou. Empurrou Aoi para junto de seu novo maldito namorado e soluçou outra vez, voltando a sentir uma bola salgada de lágrimas na garganta. E desta vez ele não se impediu de chorar como o menor fazia. Não, ele havia tomado consciência de coisas demais e muito repentinamente. Baachan estava morta. Aoi estava feliz ao lado de outra pessoa. E ele havia decepcionado mais alguém. Outra vez. E este alguém não podia ser decepcionado e fora mais do que cruel fazer isso a Ruki. Fora desumano.

Correndo trôpego, Uruha saiu dali, evitando assim que mais gente visse seu surto de decadência. Correu o máximo que suas pernas podiam agüentar e mais um pouco, e mais, até estar muito longe de tudo o que conhecia. E quando percebeu que não iria ser incomodado, Uruha se jogou contra a porta de uma casa qualquer e chorou. Chorou por Baachan e por Aoi, e por Ruki em sua frágil inocência. Chorou por si mesmo até ficar sem ar, exausto e vazio. Chorou porque era a hora de fazer isso, colocar todas aquelas coisas para fora, antes de erguer a cabeça e continuar a viver e quem sabe corrigir algum de seus terríveis erros. Mas agora não...

Talvez mais tarde.

(1)Segundo li, numa cerimônia budista tradicional é costume dos convidados trazerem um ‘dinheiro de condolências’ (entre 5,000 e 30,000 yen), em um envelope especifico, preto e prata, com uma espécie de nó de papel na frente. Eu não sei até onde vai esse costume, mas imagino que só se aplique a pessoas mais próximas, por isso Uruha estranhou o fato de Nao trazer aquilo para o funeral.

(2)Yeah, eu sei que a calça dourada do Ruki é mais conhecida do que a calça dourada do Shou, mas tenham dó. Isso é uma AU e meu Shou praticamente anda soltando purpurina.

oOo


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Notas finais do capítulo

Primeiramente, o Sabu não é exatamente meu personagem. Eu nem sei se o Ruki realmente teve um cão chamado Sabu (eu sei que ele teve um cão, não sei o nome), ou se Sabu era só aquele cachorro divertido dos meus chats fake. Em todo caso eu acho que o Aoi tem muito mais cara de ser dono de cachorro que o Ruki. Principalmente labradores. Não sei porque... ºdevaneandoº.

E vocês viram? Parece que a maldição dos tombos se espalhou pelo Circe. Ah sim, e tem a questão do funeral. Eu sei que normalmente os japoneses cremam seus mortos (pelo menos pelo que entendi dos sites em inglês que li), mas achei o negocio de pescar os ossos no meio das cinzas muito, muito nojento e chocante para uma fic dessa. Então, vamos ignorar minhas falhas nessa parte da história está bem?

Ah é, e por favor, por favor...se forem me crucificar por causa desse melodrama todo, o façam nas reviews okay?

Até o próximo capitulo!