Kaleidoscope - Um Mundo só Seu escrita por Blodeu-sama


Capítulo 12
Cap.XII – Pequenos Milagres


Notas iniciais do capítulo

Eu estou postando isso às cinco da manhã, e não me lembro das musicas certas agora. Depois republico o capitulo com os nomes aqui. O título eu nem sei no que inspirei, mas não deixa de ser um pequeno milagre eu ter finalmente postado, hum?! Este capitulo não foi betado, gomen.



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Kai fechou os olhos um milésimo de segundo antes do barulho de estilhaços de vidro preencher a cozinha. E logo em seguida os abriu para ver meia dúzia de taças transformadas em meio milhão de pedaços de vidro aos seus pés. Suspirando, passou os dedos pelos cabelos arrepiados e começou a procurar uma vassoura e uma pá com os olhos.

- Ta tudo bem Kai? – perguntou Uruha, que havia se levantado do banco e olhava esticando o pescoço para dentro da cozinha. Deixou a mostra nesse gesto sua melhor camisa sendo usada por baixo de seu casaco mais velho.

- Ta, eu só me distraí por um segundo. – respondeu, resmungando, e em seguida estalou os dedos para o rapazinho orelhudo que olhava tudo de longe. – Limpa isso pra mim okay?

Uruha voltou a se sentar, franzindo os olhos ao observar o amigo jogar coisas em uma panela de óleo quente. Ele estava pálido e com uma aparência de quem havia acabado de se recuperar de uma longa gripe.

- Kai-san precisa se cuidar. – disse Misami, a garota da chapa. – Está assim a mais de uma semana!

- Não tenho dormido bem. – respondeu o cozinheiro, brevemente, sem tirar os olhos do que fazia. – Então Uruha, hoje é aniversario do Ruki-san neh?

- Uhum - respondeu simplesmente, ainda concentrado no amigo. Menos de dois minutos depois, o rapaz loiro via seu pedido ficar pronto.

Não olhava nos olhos de ninguém. Havia algo terrivelmente errado ali.

Assim que Kai deixou o prato sobre o balcão, Uruha segurou-lhe levemente o pulso, o impedindo de voltar a cozinhar. Uma sensação de apreensão tomou conta do menor, e ele imediatamente tentou se soltar.

- Uruha, eu tenho que trabalhar. - disse num tom de voz controlado e sério, aparentemente calmo. Foi a confirmação, para o loiro, que havia alguma coisa ali.

- Sem chance Yutaka. Você sempre dormiu como uma pedra em baixo do oceano. - disse, quase num sussurro.

Houve uma série de pequenas e rápidas reações, por parte do menor, que apenas Uruha pode notar e compreender. Kai engoliu em seco, e sorriu levemente, de um jeito estranho. Forçou o pulso para longe dos dedos longos do amigo e virou-se de costas, pegando alguma coisa aleatoriamente sobre o balcão interno. Voltou novamente o corpo, sem olhar nos olhos do amigo, e enquanto deixava escorregar algum tipo de molho sobre a comida de Uruha, murmurou num tom tão baixo que mais pareceu apenas um mover de lábios.

- Depois. Agora não.

Uruha sabia que Kai poderia dar um jeito de encontrar um pouco de privacidade para eles, se quisesse, mas também sabia que raramente o moreno se deixava chegar aquele nível de angustia mental. Deveria ser alguma coisa séria ou complicada, e Kai estava mastigando palavras e argumentos em sua cabeça, tentando descobrir o melhor jeito de falar com Uruha sobre aquilo. O loiro sabia disso, conhecia o menor desde quando ainda eram apenas pirralhos de joelhos ralados, voltando da escola com uniformes escolares amarrotados e mochilas grandes nas costas. Embora, na verdade, só se lembrasse de vê-lo daquele jeito em duas ocasiões. A primeira vez em que se viu forçado a ajudar Uruha em seus pequenos "golpes de metrô", e quando se apaixonou por aquela garota mais velha que lhe deu um bom "trato" no banheiro da biblioteca. O primeiro "trato" de toda a sua vida.

Então, segundo as experiências de Uruha, havia duas opções. Ou problemas de dinheiro ou problemas amorosos. Da ultima vez em que haviam se falado, Kai não parecia especialmente preocupado com dinheiro (havia algo sobre um seguro de vida razoável da Baachan). Mas fazia tanto tempo que ele não se envolvia com ninguém, que Uruha achava quase surreal imaginar uma garota que houvesse conseguido repentinamente transtornar Kai daquele jeito.

A não ser que...

Uruha sorriu levemente. Não... não podia ser. Ou talvez... levou uma porção da comida a boca, encarando Kai fixamente. Mastigou vagarosamente e tentou parecer completamente inocente e casual quando voltou a falar.

- Hey Kai, acabei de me lembrar de uma coisa. Aquele dia do aniversario do Aoi, quando eu fui embora mais cedo... quem foi que te deu carona pra voltar?

O cozinheiro, que havia voltado para dentro e cortava alguns tomates com uma faca grande, soltou-a de repente, erguendo um dedo ferido. Uma gota vermelha manchou o avental branco. Um corte pouco fundo, não estava sangrando tanto a ponto de fazer Kai ficar tão pálido! Uruha ergueu ambas as sobrancelhas.

"Oh Deuses!" pensou, incapaz de segurar um meio sorriso. Ele precisava ouvir essa história com muita calma, e muitos detalhes. Ali não era mesmo o momento certo.

Kai por sua vez, praguejava em voz baixa.

- Droga! Droga... hoje não é meu dia...

- É, acho que você precisa tentar se concentrar ao máximo hoje. - disse Uruha, engolindo mais algumas porções de sua comida rapidamente. A boca cheia não disfarçava completamente um tom irônico de "eu sempre soube" - 'To indo. Depois conversamos.

- Ahn...ah, certo. Eu vou... vou limpar isso. - Misami, assume aqui.

Kai não esperou nem mesmo Uruha acabar de virar o resto de seu macarrão frito, saiu como que possuído da cozinha e correu para o banheiro, trancando a porta ao entrar. Que se danassem os outros fregueses, precisava de um minuto de privacidade. Segurando o dedo ferido com uma mão, Kai fechou os olhos e bateu a cabeça nos azulejos da parede.

- Ai... - resmungou depois, num tom meio choroso. Inspirou o ar com força e o soltou lentamente, tentando não cair na mesma armadilha mental que o prendera pelos últimos dez dias. Mas inevitavelmente, quando abriu a torneira deixando que o sangue fosse lavado por água fria, as imagens voltaram nítidas a sua cabeça. Nítidas de mais.

O mais estranho era que ele não sabia bem definir o começo de toda aquela história. Seria quando virou a primeira dose de vodka com abacaxi, ou quando decidiu sem motivo algum introduzi-lo em seu grupo de amigos com um convite para sair... Poderia ser até mesmo naquela manhã nebulosa no parque, quando Uruha inadvertidamente resolvera mexer com a criatura mais protegida que existia sobre as terras do Japão. Mas Kai não ousaria ser tão... romântico.

Tudo o que ele sabia era que Nao não estava nem um pouco acostumado a beber coisas alcoólicas. Depois de uns cinco minutos dançando acanhadamente, Kai resolvera que já devia ser seguro levar Nao e volta a mesa. Para sua surpresa, nem Uruha nem Tora estavam lá, se pegando em beijos tão escandalosos quanto em um filme pornô. Na verdade, Tora estava a alguns metros de distancia, sentado no bar, com uma cara de poucos amigos. Quando Reita e Aoi voltaram a mesa, Kai descobriu que Uruha tinha dito um "te vejo qualquer dia" para Aoi, no caminho da saída. Não querendo que Nao ficasse com uma impressão ainda pior das pessoas com quem saía, Kai apenas sorriu e empurrou para ele seu novo drink e pediu mais um, dando de ombros como quem diz "vai entender!".

Depois daquele primeiro drink, Nao mudara completamente. Fez amizade com Aoi em menos de dois minutos (mesmo que Kai soubesse que Aoi poderia ser amigo até de um caracol que tivesse uma cara simpática, estranhou o jeito expansivo do menor), e trocou figurinhas sobre Ruki com o psiquiatra, contando casos aparentemente engraçados sobre ele. O cozinheiro não pode evitar um sorriso ao notar que apenas Nao e Reita entendiam sobre o que estavam falando. O tímido enfermeiro simplesmente estava sendo o centro das atenções da mesa! E estava bonito também. Usava uma calça jeans escura e justa com coturnos negros por cima, com canos que quase chegavam aos joelhos. Uma camiseta branca tão larga que passava da altura dos quadris e caía sobre um ombro, deixando a mostra uma regata negra por baixo. Alguns anéis prateados nos dedos e uma corrente um tanto grossa no pescoço, também de prata, com um estranho coração rachado em nove pedaços. Sentava-se com os joelhos juntos e os pés separados, apoiados nos pés da cadeira, as mãos juntas sobre os joelhos apoiando o peso do corpo, de um jeito que lembrava a Kai alguma pin up girl americana. Tomava seu Piña Colada por um canudinho, sem segura-lo. Ria o tempo todo como uma criança pequena. E Kai, em algum lugar de sua mente, sabia que não devia estar reparando tanto.

Mas não conseguia evitar, Nao era simplesmente a alma do pequeno grupo improvisado. Perdido nesse tipo de pensamento, quase se sobressaltou quando foi sua vez de ser puxado para o meio da pista de dança por um corado e felicíssimo enfermeiro, que obviamente já havia bebido um pouco além do que devia. Rindo novamente, Kai se deixou levar, e acabou tento outra surpresa não totalmente desagradável ao perceber que embora Nao se parecesse muito com uma criança, ele certamente não dançava como uma. Ele sabia muito bem se mexer.

- Kai.... - disse, numa voz arrastada, quase impossível de se ouvir naquela barulheira toda. As luzes davam a impressão de que ele estava prestes a desaparecer. Ou cair.

- O que?! - perguntou, obrigado a se aproximar mais do menor para poder lhe falar perto do ouvido. Nao jogou os braços ao redor do pescoço dele repentinamente, escondendo o rosto em seu pescoço. Congelado, o cozinheiro ainda estava decidindo onde seria razoável toca-lo, naquela situação estranha, quando ouviu a voz abafada dele.

- Eu preciso... de ar...- disse lentamente. Mais tranqüilo, Kai o envolveu pela cintura, abrindo espaço entre a pequena multidão, ainda falando alto.

- Eu sabia que você não devia ter pedido aquele terceiro! Está bêbado.

- Não, não estou. - disse, numa voz não muito convincente. Acrescentou quando já estavam chegando a porta de saída. - Só meio... zonzo.

O ar fresco os atingiu como uma pedra quando finalmente saíram. Ainda era janeiro e eles haviam esquecido completamente de pegar os casacos lá dentro. Kai não o soltou e Nao não pareceu incomodado em ser conduzido rua a baixo num passo mais lento.

- Está melhor? - perguntou Kai, após uns cinco minutos de silencio. Já haviam se afastado consideravelmente da boate e agora só podiam ouvir resquícios da musica trazidos pelo vento.

- ...hum...é... - Nao estava levemente corado, e evitava encara-lo. - Acho que eu estava bêbado... - disse envergonhado.

- Eu acho que ainda estou meio bêbado. - disse Kai, lentamente, notando que haviam se aproximado das docas. Caminhando por ali, quase se esquecia que a uns cinqüenta metros ao lado, estava o mar. - Do contrario não largaria os casacos lá. Esta frio...

Como resposta, Nao apenas se aninhou mais em seus braços. Num acordo silencioso, pararam de andar ao chegarem a um ponto em que podiam ver o mar por cima dos vários contêineres de metal vermelho. Parados ali, o vento gélido os atingia com mais força. Se continuassem daquele jeito, ou teriam que voltar ou acabariam congelando. Kai olhou em volta.

- Acha que ali é mais quente? - perguntou, apontando para um ponto entre os contêineres onde aparentemente os operários ficavam de manhã. Havia bancos e era um lugar mais protegido do vento, embora não pudesse ver direito a luz fraca das estrelas. Na verdade, não queria voltar para a boate.

Nao virou-se para ele e sorriu, antes de se desvencilhar e seguir na frente, descendo algumas escadas. Kai correu atrás dele, temendo que ainda estivesse meio alcoolizado. O caminho era estreito por ali, meio sufocante com todo aquele metal em volta. Seguir o rastro branco da blusa do menor era como seguir uma fada na escuridão. Quando finalmente o alcançou, quase esbarrou nele. Nao parara voltado para frente, os braços ao redor do corpo, olhando o horizonte. Meio segundo depois, Kai entendeu porque.

Ali naquele pedacinho isolado de concreto, cercado de contêineres de três lados, havia uma incrivelmente bela vista do mar. Não havia mais praia, apenas um grande pier, mas isto não impedia as ondas de quebrarem lentamente contra o concreto, reflexos dançantes de estrelas sobre a água, dando a impressão que o mar era de mercúrio. Uma fina lua minguante ainda era visível perto do horizonte, se deitando sobre as águas.

- Uau... - murmurou o menor, mas mesmo assim não conseguiu disfarçar um estremecimento. Kai novamente o puxou para si, abraçando-o com ambos os braços, e pouco se importando se aquilo não pareceria adequado aos olhos alheios. Nao estava quase batendo os dentes de frio. O enfermeiro porem, pareceu ter entendido errado pois mesmo com a temperatura baixa sentiu o rosto arder. Mordeu levemente o lábio e olhou em volta.

- Aquilo é um casaco? - perguntou, apontando para um amontoado de panos em cima de um dos poucos bancos ali. Kai o puxou pela mão até o banco e ergueu o tecido, confirmando em seguida.

- Toma, veste.

- Mas você vai ficar com frio! - protestou o menor.

- Bem, então considere um 'favor de amigo'.

Sorrindo abertamente, Kai empurrou o casaco largo nas mãos do menor, que o vestiu meio a contra gosto. Chegava quase aos joelhos dele e Nao teve que puxar as mangas para cima para poder usar os dedos.

- Será que o dono não vai se importar? - perguntou, tentando se ajeitar dentro de tudo aquilo. - Isso não é roubo?

Kai deu de ombros. De todas as coisas que pegara sem permissão, duvidava muito que fosse justamente esta o seu grande problema.

- Bem, pelo menos você não está mais com frio. - disse, simplesmente, observando melhor o lugar.

- Mas você está Kai. Deve ter algum outro casaco por aqui... se bem que esse é tão grande que eu tenho certeza que nós dois cabemos nele. – disse rindo, procurando ao redor. Acabou por achar uma caixa de bentô vazia, encostada perto de algumas garrafinhas do que parecia ser leite puro, mas nada de casaco. Kai se aproximou e pegou as garrafinhas.

- Quem deixa leite num lugar como esse? - perguntou, rindo, fazendo uma espécie de malabarismo de uma mão só com uma das garrafinhas. Nao abriu outra e cheirou.

- Amantes de gatos, acho...

Kai encostou o corpo a um contêiner. Achava que finalmente aqueles drinks haviam subido a sua cabeça, pois já não sentia frio algum. E olhar para a silhueta do enfermeiro contra aquela paisagem toda romântica e misteriosa do mar o fez lembrar de lendas antigas de sereias. Riu sozinho.

- O que foi? - perguntou o menor, curioso.

- ...nada, é que você parece de outro mundo. - disse, simplesmente, uma expressão quase séria no rosto. Nao inclinou levemente a cabeça para o lado, dando um passo para trás. Kai, com aquela roupa toda preta contrastando com o fundo vermelho do metal, os braços musculosos de fora e brincando inocentemente com aquela garrafinha... também parecia de outro mundo. Um mundo onde lindos rapazes com incríveis sorrisos estavam a apenas poucos passos de serem alcançados. Mas Nao tinha um pressentimento que estavam pensando em mundos diferentes.

- Outro mundo?

- É, como uma dessas criaturas que saem do mar para encantar marujos...

Foi em dois passos rápidos. Nao não tinha idéia de onde viera a coragem para fazer o que fizera (daquelas tais Piñas Coladas, quem sabe), mas em dois passos todo o seu corpo havia se colado ao de Kai. Suas pernas entre as dele, os quadris encaixados, os tórax contendo juntos a respiração enquanto as delicadas mãos do enfermeiro agarravam com força a blusa cor de noite de Kai. E os lábios. Talvez aquele beijo tecnicamente não passasse de um selinho, mas Nao fechara os olhos e sentia o gosto dos lábios do outro sobre os seus. A textura macia. O calor suave que vinha dele. E tudo era muito bom, embora Nao estivesse esperando para ser empurrado a qualquer instante.

Kai porém, estava muito paralisado para agir. Só o que fizera fora conter a respiração, segurando com uma força desnecessária a garrafinha branca. E quando finalmente alguma onde cerebral se fez presente, foi apenas para que Kai sentisse os próprios olhos se fechando e os lábios se abrindo timidamente, uma curiosa sensação de que estava tudo perfeito. Baixou levemente os braços, e a garrafinha escorregou de seus dedos, estilhaçando-se no chão. Um liquido puramente branco formou um pequeno rio no concreto, correndo em direção ao mar. Kai escorregou os braços para dentro do casaco grande, abraçando-o pela cintura. Algo como a sombra de uma gigantesca preocupação passou pela mente do moreno, mas sumiu quando Nao suspirou em seus braços. Não importava.

Naquele momento, nada importava.

No banheiro da lanchonete, Kai soltou lentamente a respiração. Depois daquilo, a única coisa que se lembrava era de Nao dizendo timidamente que já estava amanhecendo, e que o levaria para casa. Kai não percebera o tempo passando, perdido naqueles beijos. Mas quando finalmente sentiu o carro do menor parar em frente ao prédio onde vivia, não tivera coragem nem mesmo de olhar para ele. Não o vira desde então.

 

"Eu não tenho frio nos meus versos
Mas também não sei dos outros universos
Que carrego paralelos
Eu não tenho elos, nem correntes
Meu fantasmas sempre foram diferentes"

Arrastando Maravilhas

 

Uruha odiava metrôs. Trens e metrôs, todos super-lotados e cheirando mal. Cheios de gente comum e detestável. Mesmo assim, se dispusera a pegar um para chegar até a longínqua e escondida Mansão Matsumoto. Com aquela pequena caixa florida nas mãos. Simplesmente porque estava cansado de mais para brigar com seu pai por duas horas para conseguir pegar o carro. Na verdade, ele estava simplesmente cansado de brigar com seu velho. Parecia... desnecessário.

Ao finamente chegar à estação, pode ver ao longe, da plataforma, o lugar onde queria chegar. Parecia uma mansão vitoriana incrustada a meio caminho do topo de uma montanha, uma estrada de cascalho branco subindo em ondas até ela. Uma casa ridiculamente grande, em sua opinião, e ostentosamente bonita. Suspirando, o rapaz loiro começou o árduo caminho de subida, revezando o presente de mãos. O dia ainda estava quente e a tarefa não era particularmente fácil para quem ia a pé – aparentemente ele era o único a fazer isso.

Ao finalmente chegar aos portões, estava um tanto quanto ofegante.

Ser recebido por seguranças com o dobro do seu tamanho e o triplo de sua largura também não era algo muito agradável, mas Uruha se submeteu a revista sem reclamar. Provavelmente era necessário em se tratando de uma das casas mais ricas do Japão. Um pensamento vago de que a alguns meses atrás não seria tão passivo e compreensivo com esses pequenos detalhes passou por sua cabeça, mas logo foi varrido pela aparição de Nao-san no topo das escadas, vestindo um moletom cinza que parecia um numero maior que ele.

- Podem deixá-lo entrar, é convidado do Ruki-san. – disse aos seguranças, e estes imediatamente lhe devolveram sua mochila e a caixa de presente, com um olhar surpreso nos rostos. Uruha lhes lançou um sorriso superior e voltou-se para Nao.

- Isso por acaso era um forte de guerra? Ou fizeram ficar tão longe por puro sadismo mesmo? – Uruha podia muito bem imaginar Saga mandando construir a casa no lugar mais longe possível apenas para ver pobres coitados como ele se matarem para chegar até lá.

Nao sorriu levemente, embora evitasse encara-lo.

- Era um hospital para doentes mentais a uns duzentos anos. Foi reformado pela família Matsumoto para se transformar na maior casa dessa parte do país.

“Mórbido” pensou o loiro, acompanhando Nao para dentro da mansão. O loob era imenso e decorado mais ou menos no estilo clássico e escuro do escritório de Saga. Uruha notou que toda a casa parecia ser assim. Subiram as escadas levemente curvas da primeira sala e Uruha pensou que estavam indo para um dos quartos, mas para sua surpresa logo Nao voltou a subir escadas, desta vez pequenas escadas estreitas que pareciam levar ao telhado.

- Já não acha que eu subi de mais pra chegar aqui?! A festa por acaso vai ser em cima de uma nuvenzinha cor-de-rosa? – perguntou, com sua recém adquirida paciência já se esgotando.

- Não vai ter festa. – respondeu o menor, indiferente. – Na verdade, Saga-san disse que eu não preciso estar presente hoje.  

Uruha notou uma leve fungada. Sorriu de canto, percebendo que haviam chegado ao topo da escada e em frente a uma porta. Segurou o pulso do moreno, quando ele estava prestes a abrir a porta.

- Ótimo, aproveite sua folga e vá visitar um amigo. – Nao piscou algumas vezes, confuso – Só é divertido dizer “eu sabia” quando o outro se dispõe a falar sobre o assunto, então vá lá e se resolva com ele.

Deixou que o rosto de Nao passasse de confuso para escarlate tão rápido quanto um piscar de olhos, e não lhe deu importância. Abriu a porta e recebeu em cheio a claridade de um sol de montanha no rosto, com o brilho resplandecente aumentado Uruha não sabia pelo que. Depois dos corredores escuros e elisabetanos, aquela luz toda o deixou momentaneamente cego. E quando o branco pareceu diminuir, finalmente, lhe deixou com uma das mais bonitas visões que já tivera.

A principio pensara que acabaria em pé sobre um telhado curvo de telhas de barro, mas isso devia ser apenas a frente da mansão. Ali, naquela parte, havia vidro, muito vidro. E tudo, desde o chão até as placas translúcidas do material, estavam semi-ocultos por plantas. Todo o lugar cheirava claramente a selva, uma mistura de aromas doces ou pungentes que chegavam a confundir os sentidos bastante acostumados a cidade de Uruha.

Uma estufa no telhado era uma coisa que deveria ter esperado de alguém como Ruki, pensou, quase rindo. E logo em seguida o localizou entre um amontoado de folhas verdes, um banco encoberto por plantas rasteiras.

- Olá Ruki. – disse, sorrindo um pouco mais. O menor sentava-se com as pernas cruzadas uma sobre a outra, e estava rodeado de flores. Parecia estar entretido em separá-las por cor. E quando ouviu a voz de Uruha, fez algo que até então nunca havia feito. Ergueu o rosto e sorriu.

Uruha congelou por um momento. Ele havia erguido mesmo os olhos e sorrido?! Sim, havia. Por apenas metade de um segundo, mas foi o suficiente para fazer Uruha se sentir invadido por uma inebriante sensação de felicidade. Era uma superação!

Para ambos.

Mas logo em seguida se sentiu um tanto ridículo por ficar tão exultante por um simples gesto, absolutamente normal. Contornou os vários vasos de planta e sentou-se ao lado do outro. Não falou imediatamente, preferindo observar o lugar melhor. Por mais bonita que a estufa fosse, quando se prestava atenção dava para ver que estava um tanto quanto abandonada. As plantas cresciam selvagens, as trepadeiras tropicais sem poda estavam começando a esconder as telhas de vidro e algumas plantas rasteiras tornavam impossível o caminho por certas partes do lugar.

Desviou os olhos para Ruki. Este vestia-se com apenas uma camiseta de manga comprida, branca, com escritos em vermelho na frente – algo como ‘It’s only rock’n roll’ -, e calças jeans. Nunca o vira com uma roupa tão informal, já que geralmente, no Circe, ele usava casacos por cima de camisas – tudo muito bem abotoado. O ramalhete que tinha entre as pernas cruzadas era um amontoado de flores selvagens coloridas, e no chão em frente ao banco, em um semi-circulo, ele as separava numa espécie de degradê que começava nas pétalas azuis e terminava nas vermelhas. Parecia um arco-íres.

 - Feliz aniversario. – disse, por fim. O menor não voltou a erguer o rosto, mas sorriu envergonhado e fez um breve gesto positivo com a cabeça.

- Ainda não quer falar comigo? – perguntou num tom casual, novamente voltando o rosto para as plantas. Ruki mordeu o lábio inferior e abriu a boca. Voltou a fechá-la e então estendeu uma grande flor branca e repolhuda para o maior. A única branca entre elas. Uruha a pegou entre os dedos, delicadamente, e aspirou seu perfume.

- É muito bonita. – disse baixo, sorrindo.

- Chrysanthemum morifolium – Ruki suspirou, e jogou mais uma flor alaranjada perto das vermelhas. Se queria falar, era bom ter algo sobre o que falar. De preferência, algo sobre o qual entendesse, para não bancar o bobo e anormal como sempre. E ele entendia um pouco de plantas. Mamãe ensinara a ele. – Só consegue crescer aqui em cima, onde é quente. O Imperador usa as amarelas como símbolo nacional, mas eu p-prefiro as brancas.

Uruha sorriu vitorioso. Ruki voltara a falar com ele. Na verdade, era provavelmente a frase mais longa que ouvira dos lábios do menor, e isso também era um tremendo avanço. Depois desviou os olhos para a flor. Se lembrava de sua professora falando sobre ela quando ainda era garoto, mas na época ela não parecia tão interessante ou bonita.

Então Ruki prendeu a respiração repentinamente e Uruha se voltou para ele. Viu que o menor tinha os olhos azul-esverdeados pregados na caixa que havia trazido. Sim, claro, como pudera esquecer?!

- Ah é, seu presente.  – disse, colocando a caixa entre ambos. Ruki virou o corpo para ela, ainda de pernas cruzadas, olhos fixos na tampa colorida.

- Se mexeu... – murmurou, incerto. Jurava que vira a caixa se mexendo, mas como poderia ter certeza?! Sua mente podia estar sendo obtusa mais uma vez. Por um momento pensou que era cansativo nunca ter certeza de nada. Mas logo sua mente categorizou este pensamento como inútil e pouco lógico e Ruki o ignorou.

- Tem que se mexer. – respondeu Uruha, despreocupado, e como o menor ainda parecia hesitante em abrir o presente, puxou a tampa para ele.

Uma pequena cabecinha peluda imediatamente pôs as orelhas em forma de triangulo para fora. Uma delas era preta e a outra laranja, mas a cara da criatura era branca como a neve. Os olhos arregalados do bichinho piscaram e suas pupilas se transformaram em fendas com a claridade repentina. O filhote miou alto e voltou a se encolher dentro de seu abrigo. Uruha observava a face do aniversariante, em expectativa.

Por um momento, Ruki apenas olhou para dentro da caixa, lábios cerrados, olhos temerosos, sério. Então aproximou o rosto e, vagarosamente, um sorriso começou a se formar. Primeiro apenas um entreabrir de lábios, surpreso, então um leve movimento nos cantos dos lábios cheios e vermelhos do menor. Aos poucos havia um sorriso genuíno, quase infantil em seu rosto claro. Levou ambas as mãos para junto ao rosto por um momento, então as baixou e seus dedos envolveram o corpo quente e magricelo do filhotinho, tirando-o da caixa. O gato miou outra vez, encarando Ruki, e este não se sentiu nem um pouco incomodado em retribuir o olhar amarelo do bicho. Animais... nunca haviam incomodado Ruki, e ele não sabia por que, só que era reconfortante quando brincava com um. E... este era dele! Tinha o corpo branco coberto por manchas laranjas e pretas, um rabinho curto e um pingente de coleira que parecia grande de mais para ele no momento, mas que com o passar dos meses ficaria perfeito. Era um pingente de borboleta, com as asas raiadas por matizes de opala.

“Fique com ele” Kai dissera, poucos dias depois do enterro da Baachan.

“Não, foi um presente!” protestara, recusando-se a aceitar de volta o colar de ouro-branco. “Akemi-san pode usar, ou vocês podem vendê-lo se for preciso”

Kai havia balançado a cabeça negativamente, e empurrado a jóia a força para as mãos do amigo.

“Ela iria querer que voltasse pra você” respondeu, um tanto duramente, para fazer Uruha aceita-lo de volta. “Foi a primeira coisa em anos que você comprou honestamente e acho que seria bom ter um lembrete de como isso vale a pena”

Então Uruha aceitara o colar de volta, e na noite em que foi convidado para o aniversario de Ruki, ficara olhando para ele, deitado em sua cama, balançando-o como um pendulo. Não queria ficar com o colar, não teria utilidade alguma para ele. Mas talvez... Ruki talvez gostasse dele. Porém não podia da-lo assim, era um colar de mulher. Foi então que surgiu a idéia de lhe dar um bichinho de estimação. Todo mundo dizia que era bom pessoas tímidas terem animais em casa. Porque não? Afinal, ele só era tímido de mais. Ou pelo menos era assim que Uruha via a doença do outro.

- ...então, gostou? – perguntou o maior, após vários minutos de silencio. Sabia que ele havia gostado, mas já que naquele dia estavam progredindo tanto, porque não tentar um pouco mais?

Ruki demorou mais outra eternidade para responder. Seus olhos se perderam dentro dos olhos amarelos do bichinho e ele sentiu-se feliz como não se sentia desde quando era muito criança, e as pessoas não lhe repreendiam por ficar horas observando o brilho de uma gota de orvalho ao sol. Sim, ele tinha gostado. Imensamente.

- ...gostei. – respondeu baixo. E num gesto que ia muito além da coragem que acreditara ter, Ruki desviou os olhos do animal e os pregou dentro dos olhos cor de mercúrio do maior. Lindos olhos aqueles, expressivos, contornados por cílios surpreendentemente negros. Eram de um cinza tão puro que quase não havia matizes na retina dele, apenas algo que parecia ondular como um oceano. E antes que notasse, Ruki já havia se perdido dentro desses olhos do mesmo modo como se perdia naquelas gotas de orvalho. Eram tão fascinantes! O faziam esquecer de todo o resto do mundo, e era difícil se concentrar em qualquer outra coisa. Como por exemplo a estranha cor rosada das bochechas de Uruha ao se ver encarado com tanta insistência após tantos meses sem que houvesse sequer meia dúzia de troca de olhares. Não que fosse desagradável finalmente ter toda esta atenção – em uma situação em que não estivesse sendo um perfeito idiota, pra variar -, mas o fazia ficar quente. De vergonha e de algo mais com o qual Uruha não queria lidar no momento.

- Ahn...hum. Certo, que bom. – disse, e desviou o olhar. Ruki piscou confuso uma ou duas vezes, voltando de seu transe, e corou duas vezes mais ao perceber o que havia acabado de fazer.

- Me perdoe. – disse tão baixo que Uruha mal o ouviu. – E-eu não... é errado...

- Tudo bem, não tem problema nenhum. Mesmo. – Uruha sorriu levemente e pousou uma mão sobre a do outro rapaz, que a apoiara no banco ao lado do corpo. O fato de Ruki não ter tentado retirar a mão foi imensamente gratificante.

Repentinamente, a porta da estufa se abriu novamente, e ambos puxaram suas mãos para si próprios tão rápido que apenas a leve coloração em seus rostos poderia denunciar que algo acontecera. Nao entrou apressado e parou repentinamente, erguendo uma sobrancelha.

- Tudo bem? – perguntou, dirigindo-se a Ruki.

- ...uhum. – resmungou o menor, voltando a acariciar o gatinho. Só então o enfermeiro o viu.

- ....onde...?? Esse é seu presente Ruki-san? Que bonitinho! – Uruha havia se levantado vagarosamente e afastara-se para acender um cigarro. Lançou um olhar de desdém ao moreninho, rindo-se internamente pelo fato de Nao ter se produzido inteiro em pouco mais que vinte minutos. Parecia que o enfermeiro ia seguir seu conselho, afinal.

- É. – resmungou Ruki, deixando que Nao-san fizesse um breve cafuné na cabecinha do filhote.

- Puxa, é um ótimo presente, não é?! Acho que você e ele vão se dar muito bem. Já lhe deu um nome Ruki-san?

- Choo[1].

Uruha sorriu internamente mais uma vez. Tudo bem que Choo era um nome extremamente comum para gatos, mas em se tratando daquele, não conseguia pensar em nenhum melhor.

- É um bom nome. – Nao voltou a endireitar o tronco, ajeitando a frente do casaco escuro – Bem, me desculpe Ruki-san, eu tenho que ir agora. Aproveite bem seu aniversario. 

E lançando um breve e constrangido olhar ao maior, Nao virou as cosas e desceu as estreitas escadas correndo, os coturnos ecoando no corredor após seus passos.

Uruha tragou profundamente.

- Você tem uma casa bem grande. – disse, casualmente. Era estranho, mas agora era ele quem se sentia um tanto tímido perto do menor.

- É. – murmurou Ruki, ainda brincando com o filhote. Podia sentir o calor da mão de Uruha sobre sua pele, ainda. E o calor do gatinho enroscando em seu colo, parecendo prestes a tirar uma boa soneca reparadora após todas as chacoalhadas que enfrentara pelo caminho. Seu rosto voltara a inexpressividade, embora Uruha pudesse jurar que ainda havia a sombra de um sorriso nele.

Alguns minutos se passaram antes de uma nova frase.  

- ...me mostra? – perguntou o maior, por fim, voltando a se aproximar.

- Hum. – foi toda a resposta que recebeu. Mas Ruki havia se levantado, arrumando o gatinho entre os braços, e pulou as flores que havia separado para se encaminhar a porta. Uruha apagou o cigarro no banco rapidamente e o seguiu.

Voltaram ao corredor onde Uruha imaginava que ficavam os quartos, desceram novamente as escadas principais e Ruki virou o corpo para a esquerda, olhando brevemente para trás para ver se havia sido seguido. Acabaram saindo em uma sala ampla, quase um salão, cheia de sofás verde-escuros e cor de vinho, onde havia uma lareira encostada a um canto.

- Sala de descanso. – murmurou Ruki, voltando a olhar Uruha pelo canto do olho. – Saga-sama... usa para ter reuniões importantes.

- Ahn... – Uruha olhou em volta. Se aquela mansão já fora um hospital psiquiátrico, aquela sala provavelmente havia sido onde eles jogavam os malucos durante o dia para interagirem. Não gostou dali.

- E... aqui. – O menor já atravessava o salão sem fazer barulho, seus pés tocando o tapete bordado sob eles com cuidado. – Aqui é a biblioteca. – disse, abrindo uma porta de madeira e folhas duplas com uma das mãos, enquanto a outra ainda segurava o presente de aniversario.

“Ah, um pouco melhor” pensou Uruha, entrando na sala também. Era quase igualmente grande, cheia de estantes altas de madeira escura e cobertas de livros, alguns muito antigos e alguns cheirando a tinta fresca. A diferença era que não havia cortinas e a luz atravessava os vidros das janelas com facilidade. No centro do lugar havia uma mesa redonda, grande, onde descansavam alguns papeis, um leptop aberto e dois volumes de um manga para garotas.

- Nao-san usa bastante a biblioteca. E eu também g-gosto daqui. – disse em voz baixa. Estava constrangido pela bagunça sobre a mesa, as coisas deveriam estar nos lugares certos. Diria a Nao-san para guardar melhor suas coisas da próxima vez. Sim, diria. E também pediria aqueles quadrinhos emprestados. Já tinha lido quase tudo da biblioteca, era bom ler coisas novas. Talvez devesse ler sobre gatos. É, talvez devesse.

- Eu gostei! – disse Uruha, expansivo, passando os olhos pelas estantes. Havia muitos livros americanos. Uma das prateleiras tinha apenas livros sobre negócios e finanças, e outras tratavam de desenho, arquitetura e literatura estrangeira. Mas havia uma seção inteirinha para musica! – Uau... – sussurrou, olhando os títulos.

- ..hum, é. – Ruki já o esperava na porta, a cabeça baixa novamente mimando o gatinho.

- Ah, certo. – Uruha voltou a acompanhar o outro. Se tivesse chance, gostaria de voltar e explorar mais aquele lugar.

- Ali fica o antigo escritório do papai. – murmurou Ruki, não parando para abri-lo - e do lado fica o escritório do Saga-sama... – saíram por um outro corredor que levava a um jardim interno, e Uruha não deixou de notar que Ruki não passara nem perto da porta do escritório daquele sádico. O jardim interno era mais ‘japonês’ que o resto da casa, embora pudesse lembrar também algum jardim de um palácio francês. Estava impecavelmente cuidado, como todo o resto.

- Quando neva, não se pode entrar aqui. – murmurou Ruki levemente, meio andando e meio saltando entre as pedras que formavam um caminho tortuoso até a outra entrada – Porque as portas ficam congeladas.

- Lá em casa, quando neva, o telhado fica parecendo um bolo de glacê. – disse Uruha, distraído, dando passadas largas entre as pedras. – e minha mãe sempre me faz pegar uma pá de neve e limpar a entrada. Por isso eu nunca gostei do Inverno. Mas acho que ficaria o dia todo limpando a entrada da sua casa. – rindo, ele se juntou ao menor. – E provavelmente pareceria um cachorro molhado depois que terminasse.

Ruki cobriu a boca com a mão livre e riu baixinho, os olhos voltados para baixo, enquanto o próprio Uruha abria a outra porta. Havia mais escadas, e salas amplas ali. Dava quase para sentir o declive da montanha, porque a cada lugar novo em que entravam, tinham que subir ou descer pelo menos alguns degraus. No entanto a casa não era tão apertado ou confusa quando o Circe, mas bem ampla e arejada. Quando suas janelas não estavam cobertas por cortinas grossas.

Passaram por uma imensa sala de jantar, por uma pequena sala de musica, e Ruki lhe mostrou a contra gosto a cozinha (não achava certo mostrar a cozinha a um convidado, mas Uruha insistira) onde duas mulheres preparavam uma refeição requintada. Uma porta grande, trancada a cadeados, levava ao subsolo que não era utilizado desde que a casa fora reformada pelos Matsumoto, segundo Ruki. E outra levava a um quintal todo irregular, coberto de pedras cinzentas e arvores baixas, e por entre estas alguém havia plantado hortaliças. Se continuassem subindo por aquele quintal, e ultrapassassem a cerca de madeira e metal que havia além, chegariam ao topo da pequena montanha em poucas horas. Mas Uruha estava cansado de subir e descer.

E sem que soubesse como, haviam voltado ao corredor dos quartos.

- Este era o quarto do papai, e este era o quarto da mamãe.[2] – disse Ruki, parecendo mais a vontade depois da excursão toda. Uruha notara que ele falava dos pais com uma curiosa indiferença. Como se preferisse não pensar neles.

- Estes desde lado são para convidados... este é o do Saga-sama. – novamente, Ruki não chegou a se aproximar da porta, e até diminuiu o tom de voz, já baixo, ao falar do tutor.

- E aquele? – Uruha apontou para um no fim do corredor. – É o seu?

- ...não...aquele é o quarto de ensinar. – disse Ruki, apertando mais o gatinho contra si. – Este é o meu...

Era quase na outra ponta do corredor. Ruki abriu a porta para Uruha e este entrou prestando atenção aos detalhes. Era bom em detalhes... tinha que ser rápido tanto com as mãos quanto com os olhos para sobreviver de pequenos furtos. Mas havia bilhões de detalhes ali. Diferente do resto da casa, que de um modo ou de outro estava decorada num estilo sóbrio e elegante, o quarto do menor era como... como entrar em um conto de fadas. Havia dois níveis, e no mais alto, onde havia janelas, também descansava um enorme piano de cauda negro. E este piano descansava sobre um tapete muito felpudo, totalmente branco. E em volta dele, dispostas quase que com auxilio de réguas, duas poltronas modernas de um vermelho claro. Em cima do piano Ruki organizara três pilhas de partituras, as quais Uruha provavelmente não sabia ler já que freqüentara pouco da escola de musica.

E havia estantes, muitas estantes. Estas bem mais baixas que as da biblioteca, mas igualmente abarrotadas. Não que estivessem desorganizadas ou confusas. Mesmo nunca tendo estado ali antes, Uruha poderia facilmente achar o que estava procurando nelas. Estavam repletas de cubos coloridos e quebra-cabeças emoldurados e postos em porta retratos. Estes quebra-cabeças também estavam pendurados nas paredes – Uruha tinha quase certeza que aquele ocidental afetado em cima da cama era o tal Mozart – e os cubos também dispostos perto da cama de casal grande escondida por cortinas vermelhas. Perto desta mesma cama havia um pequeno ‘estúdio de desenho’ ou fosse lá como Ruki chamasse aquela mesa inclinada e todos aqueles potes repletos de carvão e grafite. Lembrou-se imediatamente do dia em que o conhecera, de como fora rude com ele, e depois daquela tarde no Circe quando Ruki finalmente o perdoou pela sua imensa estupidez falando com ele através de rabiscos. Não fazia tanto tempo que essas coisas haviam acontecido. Mas pareciam toda uma vida para Uruha.

E o mais impressionante eram os origamis. Estrelas e cubos, e outras formas geométricas complexas, todos flutuando acima deles no teto alto, feitos em papeis semi-transparentes que filtravam a luz do sol de uma maneira muito interessante.

- Incrível... – disse baixinho, sem perceber. Então corou profundamente quando ouviu Ruki soltar mais uma risadinha. Ele se sentara em uma das poltronas perto no piano e agora o gato caminhava pelo tapete com dificuldade, pois as fibras quase o encobriam. – Hum, quer dizer, é um quarto... interessante, Ruki.

- ...é. – murmurou, olhando em volta desinteressado – M-mas... Uruha-san talvez ache que...que eu sou uma criança...com t-tudo isso.

- Bah! Você tem 23 certo? Não importa o que tenha no seu quarto. – E depois de uma breve relutância, acrescentou – Eu tenho miniaturas de motos no meu quarto... e uma coleção de...creme pra cabelo.

Mesmo com os olhos pregados na parede, fingindo muito interesse por todas aquelas coisas, Uruha pode sentir o olhar de espanto e depois mais risadinhas silenciosas do menor. Tão injusto que a dois dias atrás ele era o cara confiante e seguro de si e Ruki o autista tímido e inexpressivo! Agora, sentia-se extremamente incomodado em revelar esses pequenos fatos ao outro, como se fosse algo para se ter vergonha! E era ele agora que dispensava toda a atenção do mundo a um desenho de uma maçã.

Por fim Ruki parou de rir.

- Um dia... você pode me mostrar, Uruha-san?

Voltou a olhá-lo nos olhos, e por um momento foi retribuído antes que Ruki sentasse ao piano.

- Claro, você esta convidado a ir para a minha casa quando quiser.

E era um tanto estranho que a apenas dois dias atrás os únicos caras que haviam conhecido seu quarto eram Kai e Aoi, e mesmo assim depois de muita insistência. Mas que mal havia em mostrar a Ruki, que era quase tão mudo quanto era bonito?! Seria um prova de confiança...

Assentindo levemente com os olhos grudados nas teclas de marfim, Ruki começou a tocar. Não demorou muito para que Uruha reconhecesse a musica, apesar do tempo mais lento em que ela estava sendo tocada.

- Isso é Reila certo?!

- É. Eu fiz faz algum tempo. – disse, sem parar de tocar.

Uruha piscou.

- Você...fez?

- Hum...é. Porque..sabe, as vezes... bem, é o Nao-san que diz que é bom pra mim. – disse constrangido, parando de tocar. – Ganhar meu próprio dinheiro com algo que eu...faço. É.

- Você compôs?!

Uruha estava bastante perplexo. Aquela musica não era qualquer coisa. Era uma excelente musica! Muito difícil em algumas partes.

- Bom...é. Só a melodia. – Ruki parecia constrangido – Não é muito boa, me desculpe. – Ele começou a apertar as mãos uma na outra. Isso o impedia de se balançar. Podia se controlar agora. Mas aquela expressão no rosto do Uruha-san, o que queria dizer?! O que poderia significar aquilo? Que ele odiava a musica? É, devia ser isso. Não deveria ter começado a tocar...

- Não é muito boa?! Ruki, essa musica é uma obra de arte!

Uruha se aproximou, quase pisando no gatinho que achara um lugar bem confortável para dormir próximo ao pé do piano. Sentou-se ao lado do outro, no banco, e voltou o rosto para ele.

- Me mostra. – disse, num tom ansioso, quase o mesmo tom perigoso que usava com as pessoas que queria intimidar. Não que fosse esse o objetivo. Apenas não podia acreditar que aquele pirralho do parque viria a ser não só um dos caras mais ricos do país – seu chefe em ultima instancia, se pensasse bem – e um rapaz com uma doença tão diferente e de certa forma fascinante, e sua nova - porque não dizer - obsessão. E ainda por cima o compositor de uma de suas musicas preferidas!

Ruki pareceu assustado por um momento, mas então novamente assentiu e voltou toda a sua atenção para o piano. Ao voltar a tocar, seu braço roçava levemente no braço do maior. Eles estavam muito próximos. E depois da introdução, Uruha arriscou erguer a mão direita, acompanhando-o. Não era bom no piano, seu forte sempre fora a guitarra. Ao contrario de Ruki que aparentava poder tocar até com as mãos algemadas. Mas este permitiu que Uruha o acompanhasse e chegou a sorrir de canto, sentindo-se muito feliz pela primeira vez em muito tempo. E conforme as notas corriam, apenas um pensamento tranqüilo rodeava as mentes dos dois rapazes. Que era uma pena que em algum momento aquela musica chegaria ao fim. Que eles poderiam tocar, um ao lado do outro, por muito mais tempo do que alguns minutos.

Então, quando a musica já estava em suas notas finais, a porta do quarto foi aberta. Não bateram, ela simplesmente foi aberta. Ruki se assustou e tirou as mãos do piano e Uruha ergueu o rosto para o intruso. E o rosto do intruso era da cor de porcelana, embora seu olhar lembrasse mais duas cavernas escuras.

E embora estivesse sorrindo elegantemente, portando-se elegantemente, Uruha sabia – e Ruki também, em seu íntimo – que Saga não havia ficado contente em presenciar aquela cena.

- Ah, vejo que estão se divertindo. Que bom. Fico feliz que tenha aceito nosso convite, Takashima, é um prazer tê-lo em nossa casa. Mas são sete horas Ruki, é hora do jantar. Vamos, apressem-se, não seria gentil com a cozinheira deixar a comida esfriar. Certo?

Saga mantinha um tom de voz leve, gentil. Ruki havia parado de sorrir.

 

[1] Choo quer dizer ‘Borboleta’ em japonês, e aparentemente é um nome bem comum para gatos por lá. Nesse caso, ‘Borboleta’ também se relaciona com o colar da Baachan.

[2] É de se estranhar aqui no Ocidente que pessoas casadas tenham quartos diferentes, mas no Japão é bem comum que casais durmam separados. Tem alguma coisa haver com futóns.

 

oOo


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Notas finais do capítulo

Cena do porto... é, eu desenterrei! Foi sim inspirada em Zetsu, nos contêineres vermelhos do Ruki e naquela garrafinha esquisita com que eles ficam brincando. Acho que não ficou tão romântico quanto eu pretendia que fosse, mas vai se tornar mais romântico no futuro.
Quanto aquele verso no meio do capitulo, eu não ia colocar, porque nenhum outro capitulo tem algo parecido. Mas aí eu pensei... pô, essa história é minha! A graça de escrever histórias e poder fazer o que quiser! Right? Então eu coloquei. Será que alguém entendeu?
E no final, nem o capitulo teve o nome que eu tinha falado que daria, nem teve o jantar em si. Na verdade, foi bem mais fluffy do que todos os outros capítulos hein? Pra quem curte quando tudo dá certo, deve ter sido um capitulo legal. Eu que gosto mesmo é das complicações, achei que ficou faltando alguma coisa. Na verdade, eu reescreveria ele inteiro (principalmente a parte Kai x Nao), se já não estivesse horrivelmente atrasada com os prazos. E olha só, exatamente uma pagina de word maior que o capitulo anterior...