Aquele Tempo escrita por Anya Tallis


Capítulo 1
capítulo único


Notas iniciais do capítulo



”Aquele tempo” é uma música de autoria de Lucas Oliveira e Ana Luísa Simas , faz parte do repertório da banda independente Baka Now, da qual faz parte a autora deste conto.



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O sóbrio prédio de apartamentos ficava em uma com prédios exatamente iguais dos lados e na frente. Todos da mesma altura, aproximadamente da mesma cor. A vista da varanda, portanto, era tediosa. Ele, porém, mantinha a janela aberta, e olhava para fora, deitado com o queixo sobre as mãos, acompanhando com o olhar as tropas do exército que circulavam pela cidade, defendendo e atacando, protegendo e provocando pânico.

Ele não era ainda um adulto, ainda, mas lembrava com saudade da época em que descia as escadas do prédio, com uma bola debaixo do braço, e chamava os vizinhos para jogar uma partida de futebol no meio da rua, parando poucas vezes para esperar a passagem dos carros; e voltando para casa somente quando a mãe dos jogadores mais novos começava a gritar através das janelas. Agora, pensava ele, seria impossível jogar bola em frente ao prédio. As tropas estavam sempre lá, de um lado para o outro, procurando alguma irregularidade ou simplesmente perturbando a paz da vizinhança.

Ele era para estar ali, no meio deles, vestindo uma farda do exército e empunhando uma arma, com o cabelo raspado e o rosto jovem e confuso fingindo autoridade. A perda quase total da visão de um olho, por causa de um estilhaço de granada que o atingira no início dos confrontos, o livrara da responsabilidade de atuar diretamente no conflito. O que ele imaginara ser um azar havia salvado-o. Agora estava ali, sentado em frente à janela. Não havia mais escola, o prédio de aulas fora bombardeado. Seus pais, trabalhadores da área da saúde, tinham trabalho dobrado e os plantões ficavam cada vez mais longos. Sentia-se sozinho, mas não tinha medo. Se acostumara. Não se lembrava mais de como era o céu sem a fumaça, não se lembrava da noite sem explosões, nem ao menos se lembrava de como era sair na rua com tranqüilidade, ir à escola, paquerar a moça da sorveteria, viver como um rapaz da sua idade, que deveria estar terminando o colegial e se preparando para um futuro. Futuro. A palavra parara de fazer sentido. Seu futuro poderia nem mesmo existir. Só havia passado e presente. Sua dor finalmente se anestesiara.

Uma criança vestida com trapos parou na calçada, olhou para cima e pediu-lhe algo para comer. Ele não tinha vontade de descer do segundo andar para dar-lhe o que quer que fosse, mas a única coisa que tinha em casa era leite em pó e um pouco de farinha láctea, e ele não poderia jogar o copo de mingau da varanda do segundo andar. Foi obrigado a descer, não iria se sentir bem se mandasse o pequeno mendigo embora com fome.

Era a primeira vez, em muitos dias, que saía do prédio. Tateou pelas escadas escuras; embora ainda fosse dia, as luzes costumavam ser mantidas acesas porque não havia janelas perto das escadas. No entanto, fazia meses que não havia luz elétrica. Quando finalmente chegou ao térreo, caminhou até a calçada, entregou o copo à criança e ela agradeceu, caminhando para longe enquanto bebia.

Ele acompanhou-a com o olhar, não acreditando que ela tivesse a petulância  de se afastar dali sem devolver o copo. Não a seguiu, apenas suspirou impacientemente e olhou à volta. Estava parado na calçada. Há quanto tempo não fazia isso? Há quanto tempo estava trancado em casa?

Não sabia que horas eram. Poderia ser o final da tarde, mas com o céu cinzento o dia inteiro, era difícil a tarefa de adivinhar se era manhã ou tarde. Quando acordara, ele já encontrara o dia cinza. Para piorar, permanecera na cama, acordado, por um tempo indefinido. Não se preocupada em contar as horas desde que levantara da cama, e não se lembrava se ainda havia algum relógio na casa.

Assim que as tropas deixaram a rua vazia, fez-se uma estranha calmaria que só era interrompida pelo som longínquo de explosões e helicópteros. Não havia ninguém na rua. Não havia nada lá, além do rapaz, do vento frio e das cápsulas de bala e cacos de vidro espalhados pela rua cinza. Ele sentiu o coração acelerado, as mãos começaram a suar frio. Tinha medo da calmaria. Medo do silêncio. Um pensamento louco, louco mas amedrontador, o acometeu: de que a guerra havia matado a todos enquanto ele não estava olhando, e que agora ele era a única pessoa viva no mundo. Não voltou para casa, porque sabia que a casa vazia o deixaria ainda mais neurótico.

Ouviu uma voz cantar no prédio em frente, e correu para a porta de entrada. Aquele era o único vestígio de humanidade ao alcance dos seus sentidos e, para não se sentir tão sozinho, correu pelas escadas escuras seguindo aquela voz. Seu desespero era tamanho que o simples som de uma panela caindo em uma casa próxima o assustou a ponto de fazê-lo tropeçar no topo da escada na altura do segundo andar, fazendo-o voltar rolando para o primeiro.

— Errou de prédio?

A voz parara de cantar; havia uma pessoa em pé, ao lado do rapaz caído no chão. Mesmo com a dor, ele conseguiu sorrir. Que bobagem, achar que estava sozinho no mundo. Sentiu-se um idiota pela situação inusitada.

— Você é Mikhail, a gente jogava bola junto. — falou, surpreso, tentando se levantar.

— Eu sei.

Mikhail não se moveu, nem mesmo para ajudar o antigo colega de brincadeiras. Tinham a mesma idade, aproximadamente. Apoiando o cotovelo no chão, o rapaz caído tentou se erguer, mas somente conseguiu se sentar com uma careta de dor.

— Eu sou Viktor, talvez você lembre de mim.

— Eu lembro.

— Eu não errei de prédio. Apenas ouvi uma pessoa cantando algo que me pareceu um chamado. — estendeu a mão para Mikhail, e somente assim o rapaz entendeu que deveria ajudá-lo a ficar de pé.

Era estranho, aquele Mikhail. Tinha um olhar de desânimo tão grande que era possível sentir sono apenas olhando para ele. Sua consciência parecia estar longe. Convidou Viktor para entrar em sua casa, somente até a dor da queda passar. E, após um longo silêncio, falou.

— Era eu.

— Era você ... o que? — Viktor franziu as sobrancelhas.

— Era eu que cantava. E não estava chamando ninguém. Estava terminando de escrever minha música.

— Fantástico! Você compõe! Eu não sabia... na época em que a gente jogava junto você nunca me falou isso.

Nunca haviam sido muito próximos; eram apenas vizinhos que haviam passado a infância juntos. Na realidade, Viktor sempre achara aquele rapaz muito estranho; embora não soubesse o motivo, tinha receio de conversar com ele, com aqueles olhares e conversas incompreensíveis. Desde muito antes do início da guerra, não haviam mais se visto, embora morassem de frente um para o outro.

A despeito da atmosfera de medo, o apartamento de Mikhail mantinha portas e janelas abertas. Um leve cheiro de cigarro se dispersava com o vento que circulava pelos cômodos. Sim, ele era estranho.

— Pensei que estaria servindo — Viktor falou, erguendo-se do sofá com dificuldade, aproximando-se da janela e apontando um destacamento de soldados aparentemente desocupados ao longe. — Como o resto dos caras da nossa época.

— Eu estava — Mikhail acendeu um cigarro, com as mãos levemente trêmulas e o mesmo olhar de tédio — Eu estive no exército por seis meses. Um dia eu fui mandado para casa, não sei por quê.

Tinha uma aparência tão neurótica que Viktor quase conseguia adivinhar o motivo que levara Mikhail a ser dispensado. Soltando baforadas de cigarro pela sala, o jovem anfitrião estendeu para o visitante um pedaço de papel dobrado.

— O que é isso? — Viktor indagou, desnecessariamente desconfiado. Começava a temer que estivesse adquirindo algum problema psicológico. 

— A música que escrevi. Vou tocá-la ao piano, quero que escute.

Viktor não notara o piano no canto da sala com poucos móveis. Só agora reparara o quanto o apartamento estava mal cuidado. Não teve coragem de perguntar se o jovem morava sozinho, ou onde estava a sua família. Eram tempos difíceis, e ele não desejava ser indiscreto.

Mikhail sentou-se ao piano e seus dedos deslizaram pelas teclas agilmente. A canção soou de seus dedos e seus lábios, suave, mas ao mesmo tempo golpeando o peito de Viktor com melancolia.

Janeiro chegou

E como um fardo este mês começou

Ver que tudo mudou

E mesmo sem asas meu tempo voou

Eu já não me lembro mais

Do que eu era quando pensava e agia em paz

Mas nos tempos de outrora

Perdi a minha história e o tempo passava por mim.

Sei que o fim já chegou

E como uma chama o tempo apagou

O que o tempo mudou

Reacenderemos com o nosso amor

Você se lembra sem ter problemas

Vivíamos sem sentir dor

Uma longa pausa se seguiu. O jovem compositor não encarou sua solitária platéia; apenas acendeu outro cigarro enquanto murmurava a melodia. E, após uma eternidade, deu um leve sorriso.

— Terminei a letra agorinha. O que achou?

Antes que Viktor pudesse responder, antes que sua voz embargada pudesse transmitir sua opinião, uma explosão longínqua precedeu uma rajada de tiros bem em frente ao prédio. Correria, gritos e sirenes se ouviam. Ele lançou-se ao chão, quase automaticamente. Procedimento padrão. Já não tinha mais tanto medo, mas advertiu Mikhail.

— Vem para o chão também! — seu tom de voz era um apelo.

Calmamente, Mikhail deixou o banquinho do piano e aproximou-se da janela aberta com um sorriso, completamente alheio aos tiros e à gritaria. Viktor rastejou até ele e, em meio ao som do combate, berrou enquanto puxava seu tornozelo.

— Você quer levar um tiro?

— Você se lembra?

— O quê? — Viktor largou-o, e franziu as sobrancelhas.

— Se lembra do lugar onde jogávamos?  Era em frente à casa dos Ivanov, posso ver daqui. Levante-se, veja também.

— Você é louco, você quer levar um tiro. — Viktor repetia.

E, para seu desespero, Mikhail segurou uma bola de futebol que estava caída ao lado da porta e caminhou para a saída. Estava claro que ele desejava descer as escadas e sair do prédio. Viktor hesitou. O que fazer? Que ele morresse sozinho, não tinham qualquer laço de amizade que os unisse. No entanto, quando deu por si, estava seguindo Mikhail pelas escadas escuras, tateando e pisando nos degraus com cautela. Havia vindo até ele por não querer ficar sozinho. Se fosse deixado para trás no apartamento, não suportaria.

Chegaram à calçada e viram a poeira, o pânico, a correria, as janelas de todos os prédios fechadas, apenas soldados correndo com fuzis, carros com vidros quebrados abandonados no meio da rua. Mikhail caminhava à frente, a bola debaixo do braço, perigosamente despreocupado. Estava indo ao local onde costumavam jogar bola, porque não suportava enterrar o passado. E Viktor o seguia porque não suportava ficar sozinho. Já não se sentia mais a única pessoa no mundo.

E, alheios a tudo, chegaram em frente à casa dos Ivanov. Mikhail virou-se repentinamente e jogou a bola no companheiro, o sorriso de menino travesso aparecendo em seu rosto pela primeira vez em muitos anos. E, quando Viktor não conseguiu pegar a bola, caçoou. O outro retrucou.

— Desculpa — Viktor cruzou os braços — esqueci de te contar, só enxergo de um olho e por isso não consegui ver a sua jogada. Mas, como você me parece meio doido, vamos ter uma partida justa! Um contra um, o gol é embaixo daquele carro branco!

E deu um sorriso desafiador. Estavam ali, em meio à destruição, mas estavam vivos e livres porque a eles — um meio cego e o outro meio louco — a guerra não conseguiria alcançar.


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