Black Liliana escrita por Petit Ange


Capítulo 1
Passo em Falso (I)


Notas iniciais do capítulo

Nota Inicial: Acho que faz tempo ao menos, dois anos e alguns meses é muito tempo para mim que eu não começo uma história com tanto interesse e vibração. Acredito fazer dois anos, porque é desde ironicamente Seven Sisters que não me sinto assim, como dizer, preparada e completamente absorvida. Tive experiências maravilhosas com a série SS; ainda hoje acho que foi meu maior acerto. Aprendi muitas coisas como escritora e graças a ela conheci muita gente também e algumas dessas pessoas continuam falando comigo mesmo hoje em dia. Acredito que cabe aqui alguma história antes de começar a história de fato: porque acredito que, mais do que nunca, Black Liliana é um retorno às origens. Não é uma tentativa de se igualar à Seven Sisters, mas meramente pegar tudo que aprendi com aquela série e transportar, de uma forma um pouco mais original espero para este ambiente. E até onde está constando no meu planejamento de quinze capítulos, estou conseguindo o que quero.

(In)felizmente, quando se trata de Black Liliana, tudo remete à série SS; até mesmo seu próprio nascimento. Há dois anos, em alguma parte de Abril, Seven Sisters literalmente nasceu de um sonho que foi imediatamentre transformado em fiction pela madrugada adentro. BL seguiu o mesmo caminho, também consumindo uma madrugada produtiva no processo. Como as duas fictions eram parecidas demais para deixar passar a oportunidade, tomei a liberdade de roubar Lily para ela. Originalmente, era Lily Tuckfield quem devia ser a Aileen Dawson de SS, mas graças ao fato de que, na época, eu achava que, pelo clima que a história evocava, eu precisava mesmo era de outro tipo de protagonista, Lily foi trocada (e, meu Deus, eu juro que hoje não consigo imaginá-la no lugar da Aileen ou, PIOR, vice-versa...). Desta vez, nada mais justo que seja posta em uma história muito semelhante à qual devia ter estreado.

Falando da história em si, de novo, vejo as várias semelhanças entre as duas obras (estou mais levando em conta apenas a primeira parte da série SS as outras duas foram conseqüências da primeira, óbvio), mas também vejo, em meio a todo o terror psicológico em jovens adolescentes como temática, a diferença que reside exatamente no leitmotiv: em Seven Sisters, ele era, na figura de Alice, o lado ruim do amor incondicional: a sensação de vingança e amargura quando ele parece quebrar. Em Black Liliana, eu diria que é exatamente sobre o lado bom disso: as vontades e os sonhos que ele possibilita que vejamos. Sonho por si só é um tema freqüente aqui, vocês verão. E, claro, também vejo a diferença que é quando você se inspira ou parece até inconscientemente plagiar os autores certos: não consigo deixar de ver influências do Duma Key de Stephen King ou de Sad Cypress, de Agatha Christie, por exemplo.

Mas de qualquer forma, só o que espero é que aproveitem. Eu aproveitei cada linha. E me sinto ótima por finalmente voltar às origens. Espero que também o sintam.



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Pitch-black flowers, memories of oblivion,
Unprecedented flowers that keep blooming and dying
Flowers of chaos, repeating miseries,
In this eclipsed garden”.
Corruption Garden (Luka Megurine).

Sonho.01: Passo em Falso (I).

Ela lutava desesperadamente para manter os olhos abertos,

(enquanto aquela sombra rondava sua alcova solitária coberta de flores mortas. A sombra rondava e somente esperava)

pois só o que via quando dormia eram pesadelos.

XXXxxxXXXxxx

Ela sempre achara que aquele enjôo que a maresia provocava era algo que só acometesse os, em poucas palavras, “babacas”.

Quer dizer... Qual a grande coisa em sacolejar algumas horas em um barco? Era mais ou menos como viajar de carro ou ônibus, não? Cercar-se de azul marítimo era um tédio – não tinha dúvidas –, mas não era nenhum inferno. Sempre achou, em filmes, livros e outras mídias, muito exagerado as cenas de pessoas que passavam mal e até vomitavam em alto mar.

Tudo bem, ela não era uma observadora confiável, porque também achava um exagero desnecessário pessoas que torciam o pé chorarem – mas ela nunca torceu o seu próprio pé, para de fato confirmar a tese.

E tudo bem, agora estava confirmando que ela era uma “babaca”: aquilo que apertava com mãos de aço seu estômago era um inconfundível enjôo.
Agarrada com força nas barras de metal (e preferindo observar os nós dos dedos brancos pela força ao invés do mar azul ou das ondas que o movimento do barco formava), a jovem respirou fundo de novo. “Maresia faz milagres”, dissera a mãe. Ela havia dispensado as recomendações da progenitora com um movimento de sua mão, mas agora bem que queria ter ouvido-os. Talvez a senhora Tuckfield tivesse um conselho realmente sábio – ou, melhor ainda, um remédio.

Não que ela acreditasse realmente nisso, mas... Um pequeno consolo naquela imensidão azul e enjoada seria muito bonito.

A jovem curvou-se perigosamente, tossindo de forma rouca e pressionando o estômago já pressionado pela ânsia no suporte de metal do barco. O som do motor penetrou em seus ouvidos longamente; ela desistiu de encarar seus dedos e olhou o mar, o barco movimentando-se. Esperava pelo vômito que nunca veio. Foi só um alarme falso.

Respirou fundo.

Diabo de maresia.

- Escuta... – ela ouviu-se falar, após mais uma profunda inspiração só para garantir. Mal reconheceu sua voz, na verdade; estava assim tão mal? – Falta muito pra chegarmos à Sorin Island?

O “capitão” (sério, aquele termo fora de moda desde... Sabe-se lá quando, ainda era usado?) daquela embarcação branca como as nuvens de sua adorada Redruth (nunca achou que sentiria tanta falta da boa e velha civilização – e ela mal havia saído da mesma) virou-se por um momento, entregando-lhe um sorriso de dentes levemente amarelados.

- Só mais vinte minutos até lá, minha jovem – e encolheu os ombros. – Mal-estar?

- E como – assentiu.

- Acho que se você se sentasse, melhoraria.

A menina tossiu de novo; um palavrão quase brotou, automático, em sua boca. O gosto de bile era amargo e próximo.

- Estive sentada até agora a pouco, obrigada – meneou a cabeça. – Se eu ficasse sentada mais ainda, tinha medo de acabar vomitando em seu chão.

O senhor voltou a encarar sua frente – o vasto oceano azul.

- Você não sabia que ficava enjoada em alto mar?

- Não fazia idéia... – bem, não que tivesse andado de barco antes em sua vida. – E, sinceramente, nem de outro jeito, eu gostaria de ter descoberto isso.

O “capitão” ergueu a sobrancelha.

- Então, não é fã do mar?

- Não muito, confesso.

- Que curioso uma menina da sua idade não gostar dele – comentou.

- Eu até fazia natação quando era menor, mas... Acho que nunca fui uma fã da água – e, percebendo as implicações de sua frase, tossiu de novo, recobrando a compostura. – Não que eu fuja dos banhos e tal, claro. Só detesto piscinas e mar. Principalmente mar.

- Compreensível. Minha caçula mora em uma ilha e não gosta dele também.

Ela sorriu um pouquinho:

- Isso deve ser triste...

- Na verdade, você até que me lembra ela, mocinha – sorriu o senhor. – Ela costumava se curvar no barco, quando íamos pescar, do mesmo jeito que você.

Puxa... Estou honrada que sua filha gorfe igual a mim, meu senhor”, resmungou em seus pensamentos. A conversa era boa para distrair sua ânsia de vômito – mas não apagá-la –, mas aquilo já estava começando a ficar ridículo. Começava a se perguntar onde deixara a mochila com seus fones de ouvido.

- O mar é traiçoeiro em mais de um sentido, acho – disse, por fim.

- Uma observação muito inteligente – concordou ele.

Minha especialidade: sarcasmo em alto mar”, resmungou de novo.

- Acho que vou entrar um pouco... – sussurrou, então.

Os dedos, inconscientemente, apertaram o apoio de metal de novo quando o barco sacudiu devido a uma pequena onda, como quando um carro sacode em uma lombada. O estômago da jovem pareceu dar um giro digno de ginástica olímpica e não querer mais voltar ao seu lugar.

Então, engoliu alguma coisa definitivamente amarga que desceu queimando de volta por sua garganta. Jurava por tudo de sagrado, se vomitasse mesmo teria uma conversa muito séria com aquele estômago quando chegassem à Sorin Island.

- Eu não acho uma boa idéia, mocinha.

- Hum? Por que? – ela virou-se.

Olhando-a de soslaio por um momento, o “capitão” apenas dignou-se a sacudir a cabeça, reafirmando a sua negação anterior.

- Entrar só vai piorar a situação, apesar de parecer que o inverso é verdadeiro. Minha mãe costumava dizer que a maresia faz milagres.

A jovem teve de sorrir um pouco.

A minha também.”

Ela suspirou fundo – mas não tão fundo para não provocar mais um espasmo de vômito – e deu de ombros.

- Certo. Posso me sentar no canto do barco, então?

- Sim. Dentro de poucos minutos, a silhueta da ilha já vai ser visível no horizonte – ele avisou. – Eu a chamarei quando isso acontecer.

- Tá. Obrigada.

Mas a garota – que já pensava em se enrolar no banco e abraçar a si mesma como um gato, uma pessoa ameaçada de morte, uma mulher com a pior das cólicas, ou sabe-se lá que outro exemplo passasse pela cabeça na hora – não achava que fosse se interessar pela silhueta de uma ilha minúscula e isolada.

Pelo contrário, achou que seria melhor não estragar a surpresa e só a olhar quando fosse obrigada a descer do barco. Poderia até chorar se a visse antes.

XXXxxxXXXxxx

- Chegamos, menina.

Eis a história de como ela chegara naquele lugar esquecido por Deus: Liliana Sarah Tuckfield era a filha única de um casal cuja crise marital começou no exato momento em que se conheceram. O pai era um “artista”: ou era isso o que ele dizia. Ela compartilhava mais da visão da mãe – de que o pai era simplesmente um “babaca” que se dizia um “artista” porque assim seria um pouco menos vergonhoso. Era um pintor qualquer que não vendeu mais de dois quadros. Passava de emprego em emprego sem nunca se fixar em nenhum realmente. Um completo idiota, o pai que nenhuma menina devia ter, em suma.

Não que Liliana Sarah Tuckfield também admirasse sua mãe. Longe disso. A megera, uma dentista branca e impecável como seu consultório e jovem secretário (que ela suspeitava estar dormindo com a mãe – mas tudo bem, isso já não era seu problema) era absolutamente distante e exigente. Difícil pensar em como ela e seu pai se conheceram e, pior, até se casaram – os dois eram tão opostos! Ela era, basicamente, quem realmente sustentava a casa; e, mesmo sendo uma dentista, não costumava ficar muito. Estava sempre fora. O pai não parecia se importar – Liliana Sarah Tuckfield importava-se muito menos.

Num belo e surpreendente dia, a megera apareceu com os papéis do divórcio. O artista babaca os preencheu sem maiores palavras. Liliana Sarah Tuckfield não se surpreendeu – estava esperando, em verdade, desde os sete anos para que os pais se separassem logo e acabassem com aquela opressão silenciosa que enchia a casa e os quadros do idiota. Ela achou que tudo acabaria com aquele divórcio, mas os problemas só começaram: entre eles, o de precisar aturar o agora oficial “namorado da mamãe”, o secretário idiota que a garota já sabia que dormia com ela há séculos. E, claro, o pior de todos:

Eu gostaria que a Lily viesse para Sorin Island nestas férias.”

A literal idéia de jerico de seu pai – e eventual concordância da mãe –, unida ao fato de que ela era uma menor de idade sem emancipação para ir morar sozinha e longe daquela palhaçada (não que reclamasse disso – na verdade, ninguém sabia que ela queria ir embora – nem desconfiavam. Afinal, ela nunca reclamou de absolutamente nada daquele casamento de mentira. E talvez esse tenha sido um erro seu), fez com que Liliana Sarah Tuckfield, conhecida por todos e todos como Lily (Liliana só era usado pelo Diretor. Só) fosse a escolhida da vez para passar suas preciosas férias em uma ilha isolada do mundo, onde seu pai estava “se recuperando” do divórcio e recuperando a inspiração perdida há tempos para suas pinturas ainda mais idiotas que ele.

E ali estava ela, então. Em Sorin Island. Uma ilha idiota e minúscula em algum canto esquecido da Cornualha cuja população não passava de 60 pessoas. Cercada por todos os cantos por um mar desanimadoramente longo e azul, só se podia entrar e sair dali de barco – e a pesca, óbvio, era a principal fonte de sobrevivência dessas pobres almas.

TV com bom sinal? Internet decente? Tomadas adaptadas para seus preciosos eletrônicos? Podia esquecer essas coisas. Teria sorte se houvesse internet!

Estaria isolada do mundo pelos próximos meses, literalmente.

- Certo, já estou descendo, capitão! – ela disse, de seu lugar. Conteve-se para não deixar o sarcasmo escorrer como veneno na última palavra (Capitão! Sério?!).

Pegou a mochila do chão, colocando-a nas costas. O enjôo de alto mar ainda estava ali presente, não querendo ir embora tão cedo, mas ela podia lidar com aquilo, agora que estava indo para território firme e seco. O que ela não podia fazer muito bem era sorrir como se estivesse gostando: mas se esforçaria. O pai era um idiota – mas era bem menos idiota que a mãe. Ele ao menos se importou com ela: ele, ao menos, bateu nela certa vez por algo que fizera de errado. Talvez fosse bizarro ser agradecida por violência, mas sentia-se assim diante do fato.

Deixara a mala com o capitão, já que ela era mais pesada, e ouvia agora uma conversa lá fora. O pai, provavelmente.

Respirou fundo outra vez. “Vamos lá, um sorriso simpático, Lily!”.

Descendo, a jovem pôde vislumbrar conversando com o tal “capitão” – este de costas – o homem cujos olhos castanhos como os dela iluminaram-se (de verdade – foi até um pouco triste) ao vê-la.

- Lily!

Rezando para que seu sorriso fosse convincente o bastante (mas ela não sentia que seu pai era próximo o bastante dela para saber a diferença. Era engraçado, mas não sentia que ninguém o era), a garota acenou de leve.

- Oi, pai.

Ele parecia... Mais velho, precisava admitir. Para sua infelicidade, ele era o tipo que parecia mais velho do que realmente era. Mas agora, ao descer do barco (com aquele enjôo ainda maltratando-a), ao olhá-lo bem em meses, de verdade, desde o divórcio, Liliana Sarah Tuckfield percebeu que seu pai estava “velho”, não exatamente no sentido convencional, mas por dentro. O que lhe parecia mais alarmante. Uma sensação de “memento mori” invadiu-a.

Ele tinha os mesmos cabelos castanho-claros que os dela, os mesmos olhos de mesma cor. A mesma tez branca, os mesmos dedos bonitos de pianista (mesmo que ele fosse pintor), o mesmo formato de rosto... Eram semelhanças que a própria Lily não podia deixar de notar.

E, de alguma forma, ela sempre fora grata por não se parecer com a impecável mãe e seus olhos verdes e cabelos loiros sedosos. Gostava de ouvir – mesmo que não admitisse nem para si – os outros dizerem que ela se parecia com seu pai. Ao menos, aquele homem se importava um pouco com sua existência; do jeito idiota e estranho dele, mas se importava.

Parecia um pouco dramático – típico de adolescente – colocar as coisas assim, mas as pessoas que são amadas pelos pais não entenderiam jamais o que é ser abertamente esquecido pelos que deveriam amá-la em primeiro lugar. Certo, continua soando dramático, mas era assim mesmo. Lily levava na esportiva a maioria dos sentimentos ruins que a invadiam; afinal, a vida é uma só e um pouco de humor sempre a melhora. Mas haviam coisas que ela evitava visitar – e aquela amargura silenciosa era uma dessas coisas.
Os braços do pai passaram-se pelo pescoço dela, abraçando seus ombros.

Lily sentiu-se subitamente exausta quando isso aconteceu.

- E então, capitão? Ela deu muito trabalho? – Tuckfield riu.

- Pai... – ela resmungou.

O velho também o fez:

- A mocinha enjoou um pouco com a maresia, não? – e deu-lhe uma piscada cúmplice. Lily forçou-se a devolver um sorrisinho. – Mas comportou-se muito bem.

Ah, que ridículo”, gemeu. Ser tratada como criança era ridículo.

- Ainda está enjoada? – perguntou o homem.

- Só um pouco – mentiu Lily. – Mas nada que eu não agüente.

- Lembra-se do que eu disse antes de pararmos?

- Sim, senhor – assentiu, contendo-se para não revirar os olhos. – Só preciso me deitar e isso logo passa.

- Funciona melhor do que qualquer remédio!

Até porque eu duvido que aqui tenha realmente uma farmácia, né?”, ela tornou a ironizar em pensamentos.

A súbita visão do futuro de suas férias veio com uma força desumana: ela passaria o dia de shorts (odiava bermudas, mas era impossível sobreviver ali sem elas) e chinelos de dedo, caminhando pela praia e acumulando areia até dentro de sua alma. Voltaria para casa, onde o pai estaria cozinhando algo humanamente impossível de se comer ou estaria no atelier (ou no local mais isolado da casa), pintando. Ela teria que cozinhar. Ela teria que lavar a louça – talvez também secá-la. Ela teria que limpar a casa.

Ela teria que ficar lendo. Ela provavelmente sobreviveria com uma recarga de bateria, porque se a tomada não fosse aquela de seu PSP, estaria acabada. Ela passaria o dia vendo o sol se pôr no horizonte, e as noites insones olhando as ondas baterem na praia. O tédio supremo. E assim seriam suas férias; longe de civilização, de tecnologia e de diversão.

Oh meu Deus, se estiver me ouvindo, mate-me logo! Com um raio na cabeça, seja lá o que for!”, implorou.

Se soubesse que poderia ter sido atendida, ela teria se mantido quieta.

XXXxxxXXXxxx

Lily abandonou a mochila em cima da cama, e sentou-se. O colchão era macio. A janela estava aberta e as cortinas tremeluziam como velas ao vento; o sol estava se pondo e enchia o quarto de várias nuances de laranja. Ela não sorriu, mas pensou com seus botões que, afinal, o pôr-do-sol em Sorin Island não era de todo ruim. Ao menos, aquilo.

Esteve o resto do dia, desde sua chegada, a arrumar suas coisas no armário. Sabia que era uma ilha, mas em sua inocência, achou que fosse ser algo um pouco mais... Com “classe”? Ao menos, parecido com as ilhas normais. Não que tivesse uma população de menos de 60 e um só maldito pub (ela não saíra explorar nada, só ouviu do pai enquanto voltavam para a casa dele). Por isso, não trouxera muitas roupas: agora, estava se arrependendo.

A casa, em si, era relativamente grande e solitária. A madeira abaixo dela, que sustentava a casa de não cair literalmente no mar, rangia; era um pouco medonho, confessava. Ter o som do mar bem debaixo de seus pés era ao mesmo tempo reconfortante e nojento.

Iria se acostumar com o tempo, é claro, mas até agora, só lhe trazia um pensamento de “como eu vou dormir com esse som pavoroso debaixo de mim?”.

O atelier do pai ficava no segundo piso, no último quarto à esquerda. Ela não queria visitá-lo: nunca gostou do cheiro de tinta. Em verdade, não quis explorar a casa em geral. Preferiu arrumar suas coisas e, depois de acabado, sentar-se e pensar em sua rotina.

Tinha só seus eletrônicos, porque duvidava que encontraria pessoas de sua idade por ali. Sorin Island, pelo que seu pai contou, era como um “retiro”; só adultos que precisavam descansar ou fugir estavam por ali.

Nenhum adolescente. Nem criança. Na atual situação, até uma criança servia, mas não. Achava até que teria de agüentar o mesmo tratamento infantil do “capitão”... E não sabia se agüentaria meses daquela palhaçada.

Acho que vou ter que engolir meu orgulho e nadar...”, suspirou.
Ia ficar bronzeada. Uma pena; gostava da pele branca.

A garota jogou-se sobre o travesseiro, fechando os olhos. Ouviu, logo então, passos pelo piso de madeira e deduziu que fosse seu pai. De fato, o homem apareceu à porta no instante seguinte àquele pensamento.

- Lily?

- Sim? – respondeu.

- Ainda está enjoada?

Ela não se levantou de onde estava, mas sorriu um pouco.

- Estou melhor agora.

Um breve e quase constrangedor silêncio os envolveu. Lily sabia que eles nunca tiveram maior intimidade; e era um pouco assustador pensar que eles estariam ali sozinhos, dois “estranhos”, pelas próximas semanas.

- Já está anoitecendo – ele falou. – Quer jantar fora ou prefere algo daqui?

- Acho que estou um pouco cansada para sair hoje... – ela sussurrou em retorno. – Posso cozinhar eu mesma.

- Ah, sim...

Mais um silêncio.

Lily não gostava, mas naqueles momentos, quando ele baixava a cabeça, envergonhado, silencioso, ela sentia-se quase como sua mãe: achava aquele homem um frouxo patético.

- Tudo bem pra você? – ela insistiu.

- Claro, não tem problema...

- Tem o que por aqui? – agora, ela sentou-se na cama. – Ou eu preciso ir ao mercado? Digo... Ou ao local onde se compra comida...

- Não – Harold Tuckfield meneou a cabeça. – Abasteci a geladeira quando soube que você viria mesmo.

A morena sorriu:

- Obrigada, pai.

- Não é nada...

- Eu vou ficar só mais um pouco aqui, tá? – voltando a se deitar na cama, emendou: – O enjôo logo passa.

- Tem certeza de que não quer um remédio?...

- Acho que agora eu não preciso mais disso.

Lily Tuckfield fechou os olhos, e o pai entendeu que era a hora dele sair dali. A distância entre eles voltou a ser aquele mesmo abismo intransponível de sempre, com eventuais brisas que os uniam em uma comunicação longínqua.

As mãos de dedos longos estavam preparando-se para fechar a porta, sem um som, quando a voz da filha elevou-se.

- Pai?

- ...Sim, Lily? – ele surpreendeu-se, confessava.

- Você anda pintando muito agora?

Harold Tuckfield viu-se incapaz de responder a pergunta da filha por um momento que julgou excepcionalmente longo. Ele não viu aquela mesma distância, mas um caminho abrindo-se; não depositou todas suas esperanças, é claro, naquela pequena brecha, mas... Mas ela trouxe felicidade.

Por um breve instante, ele esteve feliz por ter ouvido aquela pergunta.

- Sim – assentiu. – Mas ainda não acabei esse quadro.

- Será que eu posso ver quando ficar pronto? – Lily silenciou-se de novo por alguns segundos. – Eu... Meio que gosto de vê-los lá, finalmente terminados.

O homem de cabelos castanhos com os primeiro fios brancos finalmente se revelando respirou profundamente. As mãos empurraram a porta, fechando-a.

Antes disso, porém, ele respondeu:

- É claro que sim.

XXXxxxXXXxxx

Ela lutou bravamente, como sempre o fazia, o máximo que pôde,

(enquanto a sombra, de algum lugar de sua alcova solitária, sorria porque venceu outra vez aquele jogo imposto das duas. Seus dedos úmidos tocavam a pele alva – deixando na mesma um rastro pegajoso de horror)

mas houve um momento em que os olhos fecharam-se, pesados e derrotados.

Ela estava sonhando de novo.

XXXxxxXXXxxx

Lily acordou, sobressaltada. A respiração prendeu-se na garganta enquanto ela se sentava na cama, sem saber exatamente onde estava.

Abaixo dela, o som do mar era tranqüilo e metódico. Foi isso, na verdade, que a assustou: de alguma forma, naquele instante, entre a vigília e o sono profundo, pareceu-lhe que as ondas rebentando nas fundações abaixo da casa mais parecessem o som de esqueletos se chocando um contra o outro. Um pouco besta, pensou, mas foi essa sensação que a fez se arrepiar e acordar num salto.

Virou-se de imediato para a janela. Lá fora, a lua cheia e prateada iluminava as ondas da praia quase que ali ao seu lado. Para Lily, uma garota que havia se acostumado com a dureza das cidades grandes – com um cenário cinza e de poucos atrativos naturais –, aquilo pareceu ser feito de uma beleza quase surreal. Imaginou se (quando ninguém estivesse olhando, claro) poderia tirar algumas fotos. Talvez, pensou ainda mais longe, ir diretamente à praia, de madrugada, onde a visão devia ser ainda mais bela, e fotografar aquilo.

Sentindo-se desregulada (será que foi a viagem?), ela tateou à procura de seu celular. Não o achou ao seu lado; deduziu, então, que nem o tirara da mochila.

Será que alguém já me mandou alguma mensagem?”, pensou enquanto se levantava, passando a mão pelos cabelos castanho-claros ainda revoltos do tempo em um travesseiro. Bem que seria bom manter contato com um ou dois amigos da civilização; ia parecer que não estava, de todo, isolada do mundo em uma ilha do tamanho de um feijão.

O som do zíper da mochila pareceu anormalmente alto naquele eco silencioso que era a casa do senhor Tuckfield. E, só então (céus!), Lily percebeu aquilo: a casa estava realmente silenciosa.

- Será que ele foi realmente no mercado? Aliás, existe algum mercado por aqui? – pensou alto. – Mas eu falei para aquele teimoso que não precisava!

Mas diabos, estava realmente silencioso. Era até um pouco perturbador.

Lily pensou em chamar o pai, mas temeu que sua voz saísse um pouco assustada no processo. Ele podia pensar que ela estava com medo e rir da sua cara! Oras, ela não estava com medo! Era só um pouco estranho ver a casa tão silenciosa daquele jeito, mas era só ligar a luz de seu quarto e, pensava, a sensação ruim iria embora no mesmo instante.

As ondas do mar embaixo da casa... Era isso um assunto que a preocupava. Perguntava-se quando ia, de fato, se acostumar com aquele barulho arrepiante.

- Isso aqui parece até um conto do King, viu – bufou.

Tirando o celular da mochila, ela percebeu duas coisas: a bateria não estava tão cheia quanto devia estar (droga!, foi seu primeiro pensamento), e já passava das onze da noite.

Que diabos, será que ele também dormiu e esqueceu do jantar, é isso?”

Ou talvez, finalmente Liliana Sarah Tuckfield pensou, ela é quem teria que descer e fazer seu próprio sanduíche. Belo começo de férias no fim do mundo, chegar e ficar sem jantar graças à cabeça adorável de seu dileto papai.

Mas primeiro, ligar a luz. Maldita casa às escuras.

Levantando-se, ainda com o celular na mão, a garota deu um passo e sentiu o chão ranger. Porcaria de madeira, pensou, sentindo-se besta por estar suando frio daquele jeito. “É só uma casa”, disse a si mesma. Mas aquele som embaixo dela... O som do mar batendo nas fundações... Era mesmo horrível. Como seu pai conseguia dormir em cima daquilo?

A morena ponderou; trouxera eletrônicos e livros. Podia sentar-se, ao invés de reclamar de fome, e ler um pouco enquanto ouvia música. Tinha mesmo várias leituras que precisava pôr em dia (na capital – na doce e nostálgica capital –, ela sempre saía e no fim, nunca lia o que tinha de ler. Quem sabe ali, pudesse não ter mais essa desculpa) e, além disso, também tinha seus eletrônicos. Podia testar as tomadas de uma vez (e ver se precisaria comprar um adaptador, um T ou simplesmente chorar de tristeza porque não conseguiria usar nada).

Ou – uma opinião que pareceu ao mesmo sensata e engraçada – podia voltar a dormir. Sentia-se muito cansada da viagem. O enjôo que antes a dominou havia passado quase completamente – só uns vestígios ignoráveis restavam –, mas ela ainda estava exausta de toda aquela agitação e da arrumação do quarto. E, mais do que tudo, do quanto tinha de ser condescendente com Harold Tuckfield.

Ao chegar perto da porta, deu uma boa olhada no corredor. Vazio.

Lily não se acostumara com o som do mar abaixo de si – e se perguntava se ia mesmo conseguir se acostumar algum dia com aquilo – e ali, naquele instante, vendo o corredor escuro e aquele som que pareciam esqueletos se chocando embaixo de seus pés, ela pensou estar de fato dentro de um conto de King ou de Matheson.

Igualzinho à Duma Key”, sua mente analisou na mesma hora. “Se bem que, no caso, é meu pai o pintor por aqui, não eu.”

- Pai? – chamou-o. Nenhuma resposta.

O maldito estava dormindo mesmo?

Bufando, a garota ligou a luz sem delongas e abandonou o quarto. Não achou o interruptor da luz no corredor. Diabo de casa.

Uma idéia passou por sua cabeça – a de procurá-lo em seu quarto. Talvez estivesse dormindo. Ou talvez, no tal atelier. Sabia que ficava no fim do corredor, à direita (e ela seguia a esquerda)... Mas não parecia lógico. Seu pai teria ao menos acordado-a para jantar. Ele devia estar lá embaixo ou, na pior das hipóteses, ainda fora de casa, fazendo sabe-se lá o quê.

- Beleza, Lily. Jantar por sua conta, hoje!

Olhou, por um momento, para o celular outra vez. Passava das onze e meia. E, como o esperado de Sorin Island, o sinal era mais do que péssimo. Poder enviar algum trecho de suas desventuras pela internet? Nem em sonhos.

Onze horas e trinta e quatro minutos.

Liliana Sarah Tuckfield, enquanto caminhava pelo corredor de uma casa arrepiante e às escuras em uma ilha no meio do nada, só pensava no que teria para fazer uma janta (algum instantâneo, será?) e onde seu pai estaria enfiado. O resto das preocupações – bom, talvez um pensamentozinho naquele som de mar batendo nas fundações da casa. Era sinistro! – era só um borrão, algo que não existia.

(Liliana Sarah Tuckfield, no mesmo horário do dia seguinte, estaria pensando que sim, sentia pena do destino de seu pai, que se pudesse mudar aquilo, o faria, que foram aqueles seus passos despreocupados que chamaram a atenção, que foi a sua voz – totalmente alta e desnecessária, que causou aquela desgraça, que devia ter acordado e imediatamente saído pela janela se visse uma casa totalmente às escuras – e que tivera muita sorte de não ter sido infectada antes, tipo, em seu sono, por aquele negócio bizarro –, que precisava de um médico, porque não pensava que seu joelho ainda latejando e mancando fosse sarar, assim, só abusando de descanso, em como ela faria para sobreviver dali para frente, em como devia estar sempre junto daqueles dois bizarros, do quanto precisava deles, o quanto eles eram invejavelmente incríveis – será que ela seria assim também dentro de algumas semanas? – e, mais do que tudo, pensava que nunca devia ter deixado que a mãe ou o pai, ambos idiotas, controlassem seu destino e a mandassem para onde Judas perdeu as botas para morrer da forma mais digna de ficção e idiota de todas.)

(A vida é avara, muito avara.)

Talvez, se tivesse jamais virado a direita, em direção às escadas que levavam ao primeiro piso, este seu eu que só pensava no jantar não teria desaparecido jamais.

E, talvez, isso fosse a coisa realmente assustadora. Ela poderia ter se fundido àquela ilha e seus horrores assim, sem nenhum medo. Como provavelmente

(ou era isso que esperava)

fora com seu pai.

Mas ela virou, ela pôs o primeiro pé na escada amadeirada, e ela rangeu, tudo rangeu abaixo dela, enquanto o som do mar ainda pareciam esqueletos se chocando – e ela arrepiou-se. Então, Lily selou seu destino quanto seus olhos e os orbes injetados, num misto de veias vermelhas e o globo totalmente branco de alguém que já está morto há tempos e tempos se encontraram.

Mesmo na escuridão iluminada parcamente por uma faixa prateada da lua que entrava pela janela da sala, Lily não teve dúvidas do que viu.

(Entretanto, enquanto vivesse, ela preferia jamais voltar a se lembrar do quão horrível foi ver algo que meramente se parecia com seu pai ali, parado perto da escada – a face contorcida, mas estranhamente calma, como se houvesse morrido sem saber aonde estava ou o que acontecia, um olho fechado, numa eterna e enojada piscadela, o rosto sujo de algo que podia parecer sangue ou sujeira naquela escuridão, e... Mais do que tudo... Os seus lábios... Oh meu Deus, a boca dele...)

Nem de sua primeira – e mais instintiva – reação: correr para a direção oposta.

(Não foi gritar nem nada do tipo – algo típico de mulherzinhas que ela achava que faria, se um dia pudesse ser posta em uma situação do tipo. Não. Ela correu. Mais tarde, quando tivesse tempo para avaliar a situação, Liliana Sarah Tuckfield teria sentido um breve orgulho de sua atitude na hora.)

Lily pensou – talvez em sua mesma arrogância de quando pensava que não ficaria enjoada em barcos – que, numa situação de horror, a mente entraria em um estado de branco caótico e pararia.

Isso não aconteceu com ela.

De fato, houve um caos em seus pensamentos, mas enquanto ela corria de volta para a ilusória salvação de seu quarto e, lá embaixo, ouvia um grunhido que mais se assemelhava ao daqueles doentes terminais nos programas médicos

(e o som dele subindo as escadas – daquela coisa que ela não queria lembrar subindo as escadas – e logo abaixo deles, o som do mar. Aquele som nojento de mar.)

mas mesmo aquele caos não foi o suficiente para deixar sua mente em um estado de branco, como ela achou que seria.

Invés disso, uma miríade de pensamentos invadiu-a, sem ordem ou sentido:

(O que é isso?)

(Os livros dizem que devemos trancar tudo.)

(AH! Ele tá subindo!)

(O que é isso?)

(O que tá acontecendo?!)

(Não tem nenhuma arma.)

(Não existe mira. Não vou conseguir.)

(Preciso olhar pra trás.)

(O meu quarto! O meu quarto!)

(O que eu faço?!)

(Não posso olhar pra trás.)

E, contrariando toda a falta de lógica deles – ou quem sabe, a lógica que ela não conseguia entender, tremendo daquele jeito, Lily fechou a porta do quarto, sem um olhar sequer para trás.

(Não queria olhar para aquela coisa.)

Ela gemeu quando não encontrou a chave

(ONDE ESTÁ A CHAVE!?)

e, enquanto ouvia um som que tentava acreditar não ser aquela coisa que se parecia com seu pai atravessando o corredor em direção ao seu quarto

(por favor, por favor, por favor, que ele não tenha me visto, por favor)

(não, sua idiota, ele deve ter te ouvido do mesmo jeito)

(por favor, por favor)

seus olhos fixaram-se na janela. Na grande lua prateada lá fora da janela.
Se Lily fosse qualquer outro tipo de pessoa, ela poderia ter ficado ali parada e ter sido devorada? Morta? Ferida? Não sabia. No mínimo, traumatizada. Ela poderia ter se encolhido em posição fetal e esperado pela morte passivamente. Poderia até mesmo só ter pensado e pensado e não agido.

Mas houve só um pensamento quando ela viu a janela, e ele foi: “PULE!”. E ela o obedeceu sem pestanejar, porque ela não ia contra ordens.

Se tivesse ido contra ordens, para começo de conversa, não estaria na ilha.

Mesmo a contragosto, ela abandonou a segurança de encostar-se na porta

(mesmo que a parte racional que ainda restava em si em meio ao seu pânico soubesse que sua força não seria párea contra a de um homem adulto)

e correu com o que achou ser toda sua velocidade para sua cama. Pulando sobre ela, debruçou-se na janela, sentindo o vento fresco da noite.

Alto”, pensou. Não parecia tão alto assim, vista de fora.

Mas, de novo, aquela era uma casa de dois pisos. Já devia ter esperado que não seria assim tão pequena a distância entre ela e o chão.

Como vou pular disso?”

(Não importa. Só pule.)

“Mas vou me machucar.”

(Não importa. Só pule.)

“Se eu me machucar e mancar... Eu não vou conseguir correr.”

(Se não sobreviver, não vai conseguir correr idem.)

Ao perceber aquela simples e fatídica verdade, Lily ajoelhou-se e se preparou para o salto. Seu corpo condicionou-se, instintivamente, a esperar a qualquer momento a queda que sem dúvidas machucaria suas pernas. A morena sabia que areia não era um grande amortecedor.

Naquele momento de últimos resquícios de indecisão, a porta atrás de si foi abatida com um só baque amadeirado que gelou sua alma

(eu sabia, ele me ouviu.)

(ou será que foi a luz? Ela continua ligada, afinal...)

(NÃO IMPORTA! PULE!)

e a fez abandonar toda e qualquer reticência que ainda pudesse ter.

Lily, então, pulou.

Ou ao menos, foi o que pensara que tinha feito.

Uma mão a agarrou antes que pudesse dar o grande salto – e, assim, sentiu seu corpo balançar como um pêndulo, batendo no exterior da casa no processo.

O som do mar – um som assustador – abaixo de si parecia mais alto do que nunca enquanto duas vozes lutavam em sua cabeça

(NÃO LEVANTA A CABEÇA!)

e

(LEVANTA A CABEÇA!)

pela supremacia.

A segunda pareceu levar vantagem – ajudada por aquele resquício de um pânico curioso –, quando a morena ergueu os olhos acastanhados.

Enquanto vivesse, Lily percebeu, se arrependeria de um dia ter erguido a cabeça para encarar o que destruiria toda e qualquer lembrança que já tivesse tido de Harold Tuckfield até então em seus quinze anos de vida.

Ela poderia ter se fixado nos olhos – esferas brancas salpicadas de veias de sangue, perturbadoras. Podia também ter se fixado na pele – parecia descamada e podre, como cascas de frutas jogadas no lixo por muito tempo. Podia ter se fixado no cheiro – um aroma pútrido e fortíssimo que ameaçava fazê-la perder os sentidos de nojo. Mas no que ela realmente se fixou em meio à todo o seu medo por uma mão gelada e úmida a estar segurando pelo pulso e a impedindo de cair – deixando-a, desse jeito, totalmente à sua mercê, era a boca.

Não era uma boca humana. O formato. Era como se os ossos da mandíbula tivessem quebrado e a pele só pudesse acompanhar essa queda, esticando-se o máximo que podia. Lily jurava que podia ver o interior daquele

(monstro)

homem por aquela boca anormalmente grande. Os dentes eram amarelados e tão fétidos quanto a pele. O hálito...

A boca...

Ela gemeu – incapaz de gritar como queria – e debateu-se. Seria irracional lutar para cair, mas seria ainda mais irracional não lutar para viver. A jovem achou que seria como em filmes de zumbi e que, agora, ela seria devorada viva. Um clichê aceitável.

Ledo engano.

Aquilo era Sorin Island.

A coisa inclinou-se – como um príncipe encantado, oh ironia – e a boca enorme estava perto da dela. Lily via-se incapaz de se mover.

(Era tudo simplesmente tão errado.)

Ela via o que parecia ser a escuridão infinita e cheia de promessas no fundo da garganta daquela coisa. Via os grandes dentes. Ela via sua própria vida sendo ceifada ali mesmo, naquela janela, porque ela não pulou quando devia.

Então, algo veio da garganta dele.

Lily achou que fosse vomitar.

Um... Uma espécie de inseto. Como se fosse uma lagarta. Algo enorme e negro, cujo rastejar pela língua imensa daquilo que pareceria seu pai, se não fosse pela boca, fazia um barulho molhado que ela só podia relacionar com...

(não)

(NÃO)

...com morte.

Quando aquela coisa estava a meio caminho do seu próprio rosto

(Era isso que pretendia, então?)

ela entendeu.

- Vai me fazer engoli-la, coisinha? É isso? – ela perguntou, em voz alta, mesmo sabendo que isso era um erro.

Perguntou em voz alta, porque pareceu-lhe tão fora do normal aquela situação toda que, se não a verbalizasse, não acreditaria nem mesmo vendo-a diante dos próprios olhos.

E então, ela viraria algo assim, como seu pai?

(Quem fez meu pai engolir uma das suas irmãs, coisinha?)

“Duma Key que nada!”, sorriu por dentro, atônita. “Isso é puro Alien!”

Mas ela era Liliana Sarah Tuckfield.

Harold Tuckfield podia ter sido morto e aquela coisinha podia ter se infiltrado à força na boca dele e o deixado daquele jeito – monstruoso –, mas ela era Liliana.

Ela não ia deixar aquela coisinha entrar em seu organismo.

Este pensamento pareceu provê-la de todas as forças e a coragem que Lily precisava para, não mais se debater e esperar que o monstro soltasse

(ele não faria isso mesmo)

mas para atingi-lo.

Não precisava de uma arma e munições infinitas para isso. Tinha a si própria.

A testa doeu quando a mesma atingiu com tudo o que pareceu ser a coisa mais dura com que já tivera contato. Lily não teve tempo de nem ver no que havia batido.

Ouviu um ganido profundo que a arrepiou por completo e, então, aqueles dedos pegajosos e gelados a soltaram. Em algum lugar de sua mente, ela pensou em gritar, mas achou que aquele vermezinho negro pudesse entrar em sua boca se assim o fizesse. Gelou outra vez.

O mar quebrou na madeira da fundação outra vez, quando Liliana Tuckfield viu-se caindo do segundo piso de sua casa, enquanto a criatura e seus olhos brancos e disformes

(não, era um só olho. O outro estava fechado.)

a observava.

Lily escondeu os lábios com a mão – e escondeu junto seu grito.

Continua...


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Notas finais do capítulo

Sobre o título: O lírio (lily) é a flor do qual o nome Liliana (e conseqüentemente, seu apelido) deriva. Na linguagem das flores, o lírio (branco) significa "pureza". Portanto, o lírio negro (Black Liliana) representa algo maculado, distorcido, mas que aparentemente parece puro à primeira vista.



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