4:28 escrita por Namine


Capítulo 1
Olhos




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Tudo começou com os pesadelos.

Era a terceira noite seguida na qual acordava exatamente 4:28 da madrugada, suando frio, coração aos pulos e respiração descontrolada. Enquanto tentava em vão acalmar-me, coloquei a mão na testa, esfregando-a. Aquele mesmo pesadelo viera me perturbar mais uma noite.

Havia aquela garotinha... Por deus, aqueles olhos vermelhos me aterrorizavam mais do que a própria morte. Eram de um escarlate tão vivo, intenso e liquido que pareciam ser feitos de puro sangue. Aqueles seus braços, que se mexiam de uma maneira estranha como se tivessem sido brutalmente quebrados, se projetavam em minha direção, como se me desejassem.  Andava arrastando sua perna esquerda, pois seu pé estava também quebrado – na verdade, estava virado num ângulo medonho. Vestia um pijaminha rosado, manchado de sangue, o seu sangue. Seus cabelos era pretos e compridos, tal que madeixas caiam na frente de seus olhos, tapando em parte aqueles grandes olhos redondos que pareciam ter brilho próprio.

Deveria ter uns seis, sete anos. Mas era assustadoramente macabra. Contudo, também me dava pena de olhar para o estado que ela se encontrava. Provavelmente havia sofrido muito.

Em meus pesadelos, a criança não dizia absolutamente nada, não fazia absolutamente nada. Apenas ficava estática, me encarando fixamente, com os seus olhos escarlates. Então, quando ela finalmente entreabria os lábios para dizer-me algo, eu acordava; quatro e vinte e oito da manhã.

Estava ficando preocupado, é claro. Mas não queria contar a meus pais, iam pensar que eu estava ficando louco, e não duvido nada que iriam me internar se eu insistisse. Fora que eles já tinham problemas suficientes; principalmente minha mãe. Meu pai estava chegando bêbado em casa frequentemente, e sempre batia na minha mãe. Os hematomas eram visíveis por quase todo o seu corpo.

E além do mais, havia também meu irmão mais velho. Eu e minha mãe estávamos suspeitando dele estar usando drogas. Ele quase nunca estava em casa, e várias das joias de minha mãe já haviam sumido.

Todos esses fatores me levaram a acreditar que os pesadelos não passavam de uma mensagem de socorro que meu subconsciente estava tentando me passar. Aqueles estavam sendo dias difíceis.

Mas pioraram quando eu passei a ver a garotinha acordado.

Ela começou a aparecer para mim em pleno dia, quando estava a caminho a escola. Apareceu bem na minha frente, do nada. Sua forma era um pouco trêmula, mas definitivamente era real. Era como em meus sonhos – olhos vermelhos, braços e pé quebrado, pijama sujo e ensanguentado – porém, ninguém parecia notá-la ali. Todos passavam apressados em suas vidas mundanas, deixando a pobre garota para trás.

Eu estava mais calmo do que pensei que estaria, encarando-a. Meu coração batia controlado, e eu conseguia olhá-la no fundo de seus olhos, o que não tinha feito antes. Me arrependi de algum dia tê-la achado um monstro.

Não importava a cor deles, eram olhos de crianças. Inocentes e doces olhos de criança.

Ela sorriu para mim, rasgando toda a pele rachada de sua boca.

–Pode me fazer companhia até chegar a hora? – ela sussurrou com a voz arenosa, de quem não falava a anos.

Franzi as sobrancelhas, e agachei-me, para ficarmos numa altura aproximada.

–Porque eu? – era a pergunta que me estava na minha cabeça há alguns dias.

–Eu quero ser sua amiga... Para poder te perdoar. Sei que não foi de propósito.

Franzi ainda mais o cenho, esperando por respostas mais claras. Ela apenas me estendeu a mão, o que fazia seu braço de projetar num ângulo arrepiante. Aquela cena me encheu de calafrios, mas segurei a mão da garotinha.

Depois disso ela quase nunca saia de perto de mim.

Tentava, de consciência pesada, evitá-la às vezes, pois ninguém mais a via e não queria que pensassem que eu era louco. Talvez eu fosse, mas não queria que descobrissem, pois nem eu queria descobrir.

Uma semana se passou assim, a garota sempre ao meu redor. Durante essa semana também, meu irmão fora preso: envolvimento com o tráfico de drogas. E as coisas em casa só pioraram, mas fingi não me importar. Aquilo parecia tão sem importância agora, e eu queria só descobrir mais sobre a menina.

De começo é claro, fiquei desconfortável. A condição em que ela se encontrava, era de dar pena. Mas depois percebi que, apesar de tudo, ela ainda continuava uma criança, como eu tinha reparado pelo seus olhos, quando realmente encarei-os. Ela me encheu de perguntas curiosas, e eu extrapolava meus limites de paciência tentando respondê-las.

Durante a noite porém, ela sumia. Dava um determinado horário – depois da meia noite, geralmente – ela simplesmente desaparecia. Mas voltava a aparecer nos meus sonhos. E eu sempre acordava aquele mesmo horário.

4:28.

Pelo menos já não acordava pelos pesadelos. Eram simplesmente sonhos com a garotinha. Todavia, eu continuava despertando. Lá pelas cinco horas, ainda acordado, perguntava-me toda vez o porque da garotinha querer me perdoar.

Certa noite porém, acordei mais cedo, em torno das 4:00. Não por causa de meu sonho, mas pelos gritos da minha mãe. Ela berrava de dor.

Calcei um par de chinelos e desci as escadas correndo, quase caindo nos últimos cinco degraus; e o que eu vi me deixou fervilhando de raiva.

Meu pai havia extrapolado dessa vez, extrapolado MUITO. Pensei que ela estava morta, até perceber que respirava. Um movimento tão insignificante do seu peito, que me pareceu apenas uma ilusão.

Meu pai chutava seu estomago, fazendo cuspir sangue em cada golpe. Ela me encarou por alguns segundos, seus olhos demonstravam o puro desespero.

Empurrei meu pai com brutalidade contra a estante de livros encostada na parede atrás dele, e alguns livros caíram na sua cabeça, mantendo-o meio zonzo por algum tempo. É claro que a bebida também ajudava.

–Chave... – minha mãe murmurou com a voz tão baixa que mal pude ouvir. Apontou para a mesa perto da porta de entrada, e em cima dela vi a chave do carro – Vá.

E então, pode finalmente descansar em paz.

Agi por impulso, meio descontrolado. Corri até a mesa e peguei a chave, que quase deslizou entre meus dedos. Corri para fora de casa, derrapando na grama molhada. Ainda estava noite, até um pouco frio – mas não tinha tempo pra analisar o clima. Liguei o carro e sai em disparada, sem rumo. Eu não sabia o que fazer, eu só tinha em mente que colocariam a culpa em mim pelo assassinato da minha mãe. Talvez pelo fato de meu irmão ser drogado e meu pai ser um executivo que esconde o vício do álcool. Eu seria o principal suspeito.

Lágrimas de frustração começaram a escorrer pelo meu rosto enquanto eu dirigia. Injusto, aquilo era tão injusto! ... Mas me lembrei da garotinha. Aquilo que fizeram com ela era sem duvidas muito mais injusto.

Só em pensar na pequena, reparei de soslaio nela, sentada no banco de carona do carro. Olhava-me com um olhar preocupado e cheio de culpa.

–Me desculpe. – ela murmurou, soluçando – Eu não acredito que duvidei de você... Como você está agora, não o culpo; não foi de proposito! Agora que a hora chegou, eu te desculpo, mas só peço que não se culpe. A culpa foi totalmente minha... Me desculpe de novo! – fechou suas mãos viradas com força, e começou a derramar lágrimas, junto comigo.

–Mas do que você está falando?! – solucei. Meu coração agora batia acelerado. Fechei os olhos com força para conter as lágrimas.

Foi então que aconteceu.

Um baque forte me fez voar para frente, batendo com a cabeça no vidro. Um corte na minha testa tinha sido aberto e já havia começado a pingar sangue. Minha primeira reação foi olhar para o lado, para ver como a garota estava.

A pequena não estava mais lá.

Sai do carro, ainda cambaleante pela pancada, para ver no que eu havia batido.

O que eu vi me fez morrer por dentro. O sangue fugiu da minha face, meu coração pareceu parar de bater, meu estomago desapareceu.

Deitada na calçada havia uma garotinha. Seis, sete anos no máximo. Seus braços, os quais eu havia passado por cima, estavam numa posição desumana. Sue pé esquerdo estava amassado debaixo da minha roda dianteira. Seu pijama rosa estava manchado de sangue e também com marcas de pneus. Manchas negras. Seu cabelo estava cobrindo seus olhos escarlates abertos, olhando para o nada.

Olhei no relógio.

4:28.



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