Revestida de Palavras-imersão. escrita por anicullenpaula


Capítulo 2
Capítulo 2




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Minha cabeça ricocheteou as perguntas com força. Estava com uma tremenda enxaqueca. Até ‘aqui’ de deveres escolares. Não iria me torturar com tais perguntas absurdas. Não pude deixar de sorrir ao dizer que o diário era parte da minha vida. Eu não sabia por que aquele diário idiota era tão importante.”É só um pedaço de papel”eu tentava mentalizar,mas minha mente respondia

Houve um silêncio desconfortável e continuamos a caminhar até o ponto, este há cem metros, mas que parecia bem próximo. Já meus amigos, há poucos centímetros de mim, nunca pareceram tão longe.

Eu tentei quebrei o abismo entre nós.

“Mariah não veio?”

Rosemary respondeu num sussurro quase inaudível:

“Não, não veio. Teve dentista. Sorte dela. Já que vir aqui só serviria pra você magoar mais uma pessoa.”

“Olha pessoal... hm. desculpem ta legal? Eu não queria machucar vocês, sinto muito por isso e me odeio por tê-lo feito, mas vocês têm que entender, eu estou magoada também e não muito bem”.

Eles não responderam, mas eu sabia que eu tinha sido perdoada.

Eu sorri pra Theo, que devolveu um sorriso tímido. Ele era lindo sorrindo, principalmente vermelhinho como estava.

Theo sempre foi meu melhor amigo. Entre todos, entre John,Sophie, Rosemary, Samuel, Lucas e Mariah ele sempre se destacou.Esteve sempre presente,e desde pequeno éramos como carne e unha.Ele nasceu no mesmo ano que eu .Mas eu sou mais velha um mês.As vezes ,nossas mães faziam nossas festas de aniversário juntas.Ele me safou de muitas enrascadas,me deu colas em provas,me libertou de castigos se intitulando culpado.E nas minhas travessuras,ele me acobertava.Theo sempre me ajudou.

Nós brigávamos muito,quando pequenos,ele puxava meu cabelo e eu o mordia, mas ele sempre vinha me pedir desculpas. Pegava minha mão e limpava minhas lágrimas. Nunca me deixava ficar triste por muito tempo. Ele sempre cedeu aos meus caprichos, submetendo-se aos mais variados tipos de brincadeiras, que me convinham, claro. Ele sempre me chamou de “minha pequena”, mesmo quando era quase do meu tamanho. Agora sim faz sentido, já que ele é muito mais alto, forte e saudável que eu. Ele sempre foi muito atlético e bem disposto, sempre se mantém alegre e sem reclamar, até por que seria difícil agüentar minhas vontades se não fosse resistente. Antes, eu poderia bater nele, porque tínhamos só alguns centímetros de diferença. Agora, ele é capaz de dar a volta na minha cintura inteira só com um braço. Não pude evitar dar um abraço nele. Ele corou  ainda mais, eu sabia que ele só era grande por fora, mas ainda era um garoto tímido por dentro.

Ele retribuiu meu abraço. E eu pude sentir o calor subindo por baixo da sua pele ao me tocar.

Karolaynne nos afastou com um grito de escárnio:

“O ÔNIBUS!”

Ele já estava bem à frente e corremos feito loucos pra conseguirmos alcançá-lo. Ainda bem que o motorista era amigo nosso, camarada mesmo, e parou bruscamente ao nos ver pelo retrovisor.

Subimos no ônibus correndo numa extrema afobação.Claro que atraiu olhares,um bando de desajeitados pulando a roleta de tão lotado que estava o ônibus. Havia uma senhora no banco da frente com uma cara azeda e uma expressão de “Ótimo, adolescentes”. Eu conti a vontade de mostrar a língua pra ela, de tão gélida que estava sua face. Ela foi pra parte traseira rapidamente e eu sentei no lugar dela só de pirraça. Imaginei que aquela mulher deveria achar que os direitos adolescentes deveriam ser burlados e nós deveríamos ir pra o fundo do ônibus,como no apartheid.”Velha pré-conceituosa...” sussurrei eu por sobre meu ombro,só pra meus botões.Resolvi me vingar.O ônibus estava silencioso.Todos calados.Percebi que o Lucas estava com o violão,(O Lucas nunca deixa o violão,ou melhor,o violão nunca deixa o Lucas),perguntei baixinho em seu ouvido se eu poderia tocar um pouco.Ele se assustou,mas cedeu,passando ‘o braço’ do violão devagar pra minha mão,como se receasse deixá-lo.

Peguei o grande violão negro lentamente, quase solenemente. Sentei novamente em meu lugar, e fui baixinho afinando melhor as cordas. Nem precisei muito, a maior ocupação do Lucas era aquele violão, apesar dele também tocar piano e saxofone.

Comecei devagar e baixo a tocar, mas nessa hora já havia muita gente olhando, já que eu quebrei o imaculado e melancólico silêncio tumular daquele ônibus. Eu queria agitar literalmente aquela gente toda e comecei a cantar o sucesso de Madonna ‘Papa don’t preach’ devido seu conteúdo desafiador.

“ (...)Aquele a respeito de quem você me advertiu
Aquele com quem você disse que eu não precisaria viver
Estamos numa bagunça terrível, e eu não quero dizer talvez - por favor

Papai, não discuta, Estou com um problemão
Papa, não discuta, estou perdendo o sono
Mas eu me decidi, vou manter meu bebê, oh
Eu sei, vou manter meu bebê (gravidez)

Ele diz que vai se casar comigo
Podemos construir uma pequena família
Talvez nós fiquemos bem
É um sacrifício
(...)”
As pessoas gostaram da minha singela apresentação.Algumas até cantaram junto.Eu realmente não sei por quê diabos fiz aquilo mas,”dane-se,eu fiz e ponto.’’pensei eu triunfal.Já avistávamos a praça onde fica,no centro,a triagem de achados e perdidos.

O motorista parou no ponto.

A roleta girou algumas vezes.

Muitas pessoas desceram inclusive a senhora azeda. Notei certa mudança em sua face, não estava tão carrancuda, estava até simpática. Quando descemos, ela segredou-me baixinho: ”Queria que minha neta fosse assim’’ e saiu cantarolando baixinho.

Meus amigos me olharam pasmos. Eu entendia, não costumava cantar muito. Apesar de eles protestarem, por considerarem minha voz ‘lindíssima’. Eu me limitava a cantar no chuveiro no momento              , e não acreditava na opinião deles, pelo menos nesse aspecto.

Eu cantar bem?

Rá.Eu ri.

A sessão de achados e perdidos estava vazia. Atravessamos um corredor fino, em fila reta, por não cabermos lado-a-lado.Por todo lado havia entulho,guarda-chuvas,livros,roupas,carteira ,bonecas e carrinhos,até dentaduras.Todo tipo de porcaria.Tudo cheirava a mofo,e eu não em lembrava de já ter entrado naquele lugar pavoroso.

Só havia uma senhora quarentona no balcão. Parecia ter poeira nas rugas finas da face e usava um terninho azul-marinho que também parecia antigo. Ela lia revista de moda ultrapassada, com certeza pegou entre os objetos perdidos pra tentar se distrair. Tive de limpar a garganta quatro vezes pra ela poder prestar atenção em mim.
 “Com licença...?”

Ela soltou um ‘aham’ arrastado, virando seu corpo robusto pra nós, mas sem tirar os olhos das páginas daquela revista.

“Eu procuro... procuro... procuro...?”

Repetia eu tentando chamar sua atenção.
“Siiiim...?’’

“Procuro saber onde fica a sorveteria, eu e meus amigos estamos perdidos.”

Virei pra meus amigos. Eles tinham na cara um ponto de interrogação gigante.

“Segunda rua à direita, siga em frente e certamente achará”

Respondeu a mulher ríspida, como se duvida-se da nossa sanidade e inteligência pra achar algo há duas ruas dali.Parecia que ela própria tinha se perdido ali dentro,de modo a ser parte daquele mundo.

“Obrigada”

Respondi sem vontade a tão frio tratamento.

A mulher devolveu-me um “aham “semelhante ao primeiro.

“Coitada,”-pensei eu-” Deve estar aqui há tanto tempo que ela própria já pegou pó.Vejo que até ela  já cheira a mofo”.

“Vamos cair fora. ’’

Disse eu aos meus amigos. Saímos do mesmo jeito que entramos,em fila.


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