Desenho escrita por themuggleriddle


Capítulo 6
Sombra




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/128448/chapter/6

sombra


Era como se eu tivesse ido dormir no inverno de 1925 e só tivesse acordado um ano depois, no final do outono de 1926. Quando as luzes se apagaram, eu era um rapaz de vinte anos que estava pronto para pedir a mulher que amava em casamento, que tinha um ótimo futuro pela frente...

Quando as luzes voltaram a se acender, eu era um rapaz de vinte e um anos, deitado em uma cama ao lado de uma desconhecida que estava usando o anel caro e bonito que eu havia comprado para Cecília. Não sabia onde estava, mas tinha certeza de que não era a minha casa. Não sabia o que havia acontecido e nem há quanto tempo eu estava ali. Só sabia que estava ali e pronto.

Reconheci o rosto da estranha imediatamente e, na hora, não sabia o que fazer. Merope Gaunt não parava de falar, dizendo que havia feito aquilo para o meu bem, que não iria me machucar, que eu devia me acalmar, que eu não precisava chorar – Deus, eu estava chorando? – que tudo ia ficar bem, que nós tínhamos uma vida feliz e que tudo ficaria ainda melhor quando nosso filho nascesse.

Nosso filho.

Meu filho.

Filho dela.

Na realidade, não registrei nada do que ela disse na hora. A única coisa que conseguia fazer era balbuciar coisas sem sentido aparente enquanto olhava em volta, tentando achar algum lugar por onde pudesse escapar. Assim que Merope pareceu acalmar-se um pouco, abaixando os braços e suspirando, corri para escapar dela, apenas para ser seguido até a porta da casa onde estávamos. Nós dois estávamos desesperados, nós dois não sabíamos o que fazer e parecíamos duas crianças assustadas naquela hora... A diferença era que ela tinha medo que seu príncipe encantado fugisse, e eu tinha medo de que a bruxa me enfeitiçasse novamente.

Eu não ouvia e nem enxergava mais nada quando dei um jeito de sair daquela casa. Os gritos de Merope sumiram de meus ouvidos, mesmo sabendo que as outras pessoas na rua se viravam para ver a mulher histérica que implorava para que eu voltasse. Deve ter sido um entretenimento e tanto para os londrinos que moravam ali. O que será que os interessava mais? A esposa gritando na porta de casa ou o marido que saía correndo ainda de pijamas e descalço pela rua?

Eu ainda me lembrava de onde Charles morava e foi para lá que acabei indo no meu desespero. Não tenho a menor idéia do que as pessoas pensavam quando me viam na rua – nem queria ter, na realidade – e nem o que meus amigos pensaram quando me viram na sua porta, parecendo um louco e implorando para que me deixassem entrar. Fiquei um dia na casa deles, antes de tomar coragem de voltar para Little Hangleton. Era estranho... Eu tinha medo de ficar em Londres, afinal, Merope poderia me achar ali, mas também tinha medo de voltar para casa.

Acho que tinha razão de ter medo de ir para casa. O olhar que a empregada lançou na minha direção assim que me viu foi apenas a primeira coisa que me alertava para o quanto minha vida iria mudar dali para frente. Minha mãe ficou parada, em silêncio, como se não acreditasse no que estava vendo. Meu pai, de inicio, fez a mesma coisa, até que sua expressão transformou-se em uma máscara de irritação e todos os outros sentimentos que eu sabia que ele tinha guardado dentro de si desde o maldito ano em que eu decidira contrariá-lo na hora de escolher um curso vieram para fora na forma de gritos e palavras rudes.

No momento, não importava se ele realmente queria dizer tudo o que dizia, só importava que aquelas coisas estavam saindo de sua boca e machucando muito mais do que eu achava que meras palavras poderiam machucar. Minha mãe tentava acalmá-lo, mas sua voz era sempre abafada pelos gritos dele. Tudo o que eu queria fazer naquele momento era abraçá-la e deixar que ela me abraçasse, queria ouvir a voz dela murmurando que tudo ficaria bem... Queria que meu pai dissesse alguma coisa reconfortante, ou que pelo menos não dissesse nada ofensivo. Mas eu não a abracei e ele só parou de falar para poder me lançar o pior olhar que eu achei que poderia receber dele. Era impossível saber o que meu pai realmente sentia naquela hora, parecia estar desapontado, irritado e triste ao mesmo tempo.

Eu não havia falado uma palavra sequer desde que pisara dentro daquela casa e assim fiquei durante dias. Meu quarto era um tipo de esconderijo onde eu acreditava que ninguém poderia me incomodar ou me machucar. Merope não entraria ali para me enfeitiçar mais uma vez, meu pai não viria me humilhar ainda mais, nenhum dos empregados apareceria para dar uma olhada no patrão louco. Não, ali dentro éramos apenas eu e meus pensamentos. Chegava a ser estranho estar naquele quarto novamente. Eu não me lembrava de tê-lo deixado, mas, ao mesmo tempo, eu estranhava tudo... A cama na qual dormira desde pequeno, a escrivaninha onde passara horas e horas lendo ou desenhando, o armário onde estavam guardados todos os meus cadernos, o cheiro de livros... Tudo tão familiar e tão estranho ao mesmo tempo.

Dava para sentir o cheiro de tinta também, mas aquele cheiro não impregnava o meu quarto antes. Aquilo significava que minha mãe estivera ali, pintando. Não pude deixar de me perguntar a razão de ter ido até ali. Não havia nada para ser pintado ali dentro e a iluminação era terrível. Quem eu estava tentando enganar? Sabia muito bem a razão de ela ter ido até aquele quarto, mas não queria pensar nisso... Não queria pensar no quanto ela havia sofrido nesses meses que fiquei desaparecido. Não queria pensar no quando meu pai havia sofrido.

Os dias passavam e eu me recusava a sair daquele meu pequeno refúgio, arriscando abrir a porta apenas para pegar a comida que me deixavam na porta, antes de trancar-me novamente. Tudo o que eu fazia era ficar deitado, olhando para o nada, andar para lá e para cá dentro do cômodo, rascunhar algumas coisas em um caderno novo que encontrei, ficar olhando para o meu próprio reflexo no espelho, percebendo o quão horrível eu estava, vasculhar as minhas caixas do tempo de Eton e tentar me alegrar com os antigos cadernos de desenho, sorrindo muito sutilmente vez por outra, quando me lembrava da ocasião em que certo rascunho fora feito.

A primeira pessoa que deixei se esgueirar para dentro de minha vida outra vez fora minha mãe, que praticamente forçou a sua entrada. Mary Riddle era insistente. Se ela havia conseguido fazer Thomas se apaixonar por ela a despeito de suas diferenças, seria fácil conseguir fazer com que o filho saísse de seu estado de isolamento. Parecia que ela estava falando com uma criança enquanto murmurava coisas reconfortantes e penteava os meus cabelos com os dedos, antes de me encarar por longos minutos e me puxar para um abraço.

Acho que foi a primeira vez em que chorei daquela maneira perto dela – ou perto de qualquer pessoa. Agarrava o tecido de seu vestido como se tivesse medo que alguém fosse me arrancar dali, enterrava o rosto em seu ombro, sentindo o cheiro de tinta que me lembrava tanto àqueles tempos nos quais não sabia o que era ter com que se preocupar, soluçava como um menino assustado com um pesadelo... Se formos pensar bem, minha vida não estava muito longe de um pesadelo. Um pesadelo confuso e terrível que poderia ter sido evitado de uma maneira tão simples. Um pouco mais de atenção e tudo estaria bem naquela hora.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Desenho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.