A Dança das Bonecas escrita por Ryoko_chan


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Na falta de uma img decente, coloco aqui uma foto das minhas bonecas vitorianas favoritas: Emilie Autumn e suas lindas Bloody Crumpets



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Era uma vez, em uma antiga e conhecida loja de brinquedos, duas lindas bonecas.

A primeira se chamava Laura, uma boneca muito doce e meiga. Tinha belos e brilhantes olhos de vidro azulado que sempre pareciam sempre admirar um horizonte desconhecido. Seus cabelos eram compridos e lisos, de um louro brilhante e pálido, semelhante aos frios raios de sol das manhãs de inverno. Esses cabelos estavam sempre adornados por ricas tiaras ou chapéus – e lhe caiam com leveza pela lateral do rosto delicado e bem moldado. Trajava gracioso e elegante vestido bege, repleto de rendas e laços, que lhe cobria até os pés pequenos. Nas mãos ternas envoltas por luvas brancas, ela segurava uma bolsa pequena. Tinha pele feita da mais fina e alva porcelana, com bochechas rosadas e maçãs levemente salientes. A boca pequena pintada de carmim nunca se abria, de modo que era claro que aquela boneca era uma verdadeira dama, educada, prendada, membro da alta-sociedade.

Por ser tão rara, delicada e frágil, o dono da loja, compreendendo o tesouro que tinha em suas mãos, mandou que um vidraceiro construísse uma fina redoma de cristal para Laura. Deste modo a boneca poderia ser exposta na vitrine e ainda assim permanecer protegida de qualquer mal que o mundo pudesse lhe oferecer, como a suja poeira e os nefastos insetos.

A outra boneca se chamava Amanda e, apesar se sua origem ser considerada vulgar, era tão bela quanto Laura. Tinha a pele feita de madeira escura e comum, mas brilhante e sedutora, de aparência quente e alegre. Seus cabelos eram fartos cachos negros que esvoaçavam soltos com alegria ante a ação dos frescos ventos da primavera. Suas roupas eram feitas de algodão e chita surrados, mas nelas imperavam as cores vibrantes como os vermelhos e amarelos, os quais só não chamavam mais atenção que os verdes intensos e misteriosos dos olhos pintados com cuidado sobre o rosto levemente anguloso.

O dono da loja de brinquedos havia comprado aquela boneca de um pitoresco bando de ciganos que passara por ali, provavelmente encantado pela peculiar beleza dela e pelo fato de ela já ter conhecido o mundo inteiro por suas andanças. Sem falar que os tais ciganos afirmavam com veemência que a tal boneca era dotada de magia e vivacidade.

Todavia, ele se arrependeu de sua aquisição tão logo notou que Amanda era um tipo diferente de boneca: era uma marionete com defeito. Ela tinha seu corpo todo articulado, assim com qualquer outra marionete, mas nem seus pés, nem suas mão e tampouco sua boca detinham os condões necessários ao seu controle. De que serviria uma marionete que não poderia ser manipulada, afinal?

Furioso ante tão grave defeito, o dono da loja viu-se sem opções senão deixá-la jogada em um canto onde ele jogava todos os seus brinquedos defeituosos, até que o tempo e as traças a consumissem, sem saber que na verdade a magia da qual os ciganos falavam era que Amanda só ia aonde tinha vontade, só dançava quando queria e só falava aquilo que realmente pensava. Prova disso era que, ao final de cada dia, quando ele saía e as luzes se apagavam, Amanda fazia jus à sua falta de cordões e se levantava do seu infeliz canto empoeirado. Colocava-se então a dançar por toda a loja, alegrando e dando vida a todos os brinquedos de lá com suas lindas formas e movimentos.

Com o passar do tempo pelúcias, bonecos e carrinhos de madeira passavam a esperar ansiosos pela noite, apenas para poder assistir Amanda dançando, e quem sabe ter a honra de ser convidado para bailar junto, como foram o Boneco Quebra-Nozes e o Ursinho Teddy. Todos lá amavam a marionete sem cordas, e Laura não poderia ter sentimento diferente.

A boneca vitoriana, tão linda e elegante, que antigamente passava as noites olhando para seu reflexo no vidro da vitrine, não conseguia deixar de então de voltar-se a fim de admirar aquela bela dança repleta de mistério que Amanda executava todas as noites com tanta desenvoltura e leveza. Por crepúsculos e mais alvoreceres, viu-se perdida nos movimentos da boneca defeituosa, na alegria que ela demonstrava e transmitia, na beleza de suas formas.

Laura desejou poder dançar como ela, dançar com ela... Sentir em suas frágeis mãozinhas a firme pele escura feita da madeira perfumada que era o carvalho negro, sentir em seu corpo os vaporosos movimentos da dança noturna. Mas por ser feita de porcelana, Laura era dura, não conseguia se mover com habilidade e destreza... Isso para não falar que seu vestido era tão suntuoso que seria um crime arrastá-lo pelo chão.

Amanda, todavia, com a mente tomada pela simplicidade daqueles que não compreendem o valor da seda chinesa e da fragilidade da porcelana italiana, desejou também dançar com aquela lindíssima boneca que mais parecia um anjo. Por isso que a cada noite sua dança se tornava mais vívida, e seus olhos pintados de verde não se desviavam do brilho dos olhos azuis feitos de vidro. Ao menos em seus corações as duas bonecas dançavam juntas, e era isso que importava para ambas.

Mas como em todos os contos de fada sempre há uma vilã muito malvada, nesse não será diferente. Durante uma das inertes tardes na loja de brinquedos veio uma menina se encantou com a boneca de porcelana e disse que não seria feliz enquanto não a tivesse para si. O pai da menina prometeu que a compraria sem falta no dia seguinte. A menina conformou-se e saiu sorrindo da loja, com a certeza de que logo teria sua queria boneca apenas para si.

Laura reagiu àquela notícia com grande susto, apesar de saber que aquele dia chegaria. Toda boneca espera sua vida inteira apenas pelo dia em que encontrará sua dona e será amada por ela pelo resto de sua existência – ou até a dona achar um brinquedo mais interessante, é claro. Afinal, bonecas são feitas para isso: para serem compradas por pais de meninas e então fazer suas donas felizes.

Mas...

Isso significaria que jamais veria Amanda dançar novamente?

Assim que Laura deu-se por si, já era noite. Suas mãos já se encontravam rente a sua redoma de vidro, enquanto seu peito se comprimia em dor e seus olhos ansiavam pela capacidade de chorar. Não queria, não queria mesmo ser comprada! Queria ficar lá, na loja para sempre, junto da sua amada marionete sem cordas!

Aquela foi a única noite em que a boneca de madeira não dançou, também muito aturdida pela certeza que aquela seria a última vez que veria Laura. Como, como poderia dançar quando seu coração – este feito de cedro, madeira mais suave do que poderia se imaginar – doía tanto ante a certeza da separação?

Mas como poderia Laura partir sem ver Amanda dançar ao menos uma ultima vez?! E como poderia partir sem ter ao menos tocado naquela a qual destinava todo seu amor, no alvo de todos seus olhares?! Não, não poderia! Não aceitaria aquilo! Tomou coragem, e dessa coragem veio a mais insensata de todas as decisões: sairia de sua redoma!

Com as mãos pequenas e frágeis finalmente lutou contra sua proteção! Empurrou a redoma de cristal! Não poderia ficar lá presa, ao menos não em sua última noite. Tinha que conhecer a liberdade, tinha que conhecer,tocar Amanda! Empurrou, tomou mais coragem e empurrou novamente, de lá, do alto da sua magnífica prateleira de destaque, a redoma caiu, e Laura caiu junto.

O mundo era, afinal, um lugar muito perigo, principalmente para uma dama tão sensível quanto a boneca vitoriana. Sua frágil porcelana italiana partiu-se ante a brutalidade da queda e do chão. Um de seus belos olhos de vidro se desprendeu e rolou pelo piso, perdendo-se por debaixo de um armário. Seus cabelos embaraçaram-se e seu vestido se rasgou graças aos tantos cacos da redoma de cristal estilhaçada.

Não era mais a belíssima boneca que costumava ser, mas ainda assim, Amanda acolheu-a em seus braços articulados, e as duas puderam enfim conhecer a pele uma da outra. As duas então dançaram, repletas de amor uma pela outra, a mais magnífica dança que poderia existir. Dançaram e dançaram, pela noite e pela madrugada, sem parar e sem cansar, até que o sol raiasse e o dono da loja descobrisse horrorizado que sua mais preciosa boneca havia se quebrado.

A garotinha que seria a nova dona de Laura obviamente não a quis mais, e o dono da loja não teve opções senão deixar a boneca de porcelana jogada no mesmo canto em que ficavam todos os brinquedos com defeito.

Junto de Amanda, onde poderiam então dançar eternamente.


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