O Cam do passado ainda estava de pé em frente a porta de Margarett - minha porta, quero dizer - e foi bem estranho olhar pra ele no passado e vê-lo de pé no presente, do meu outro lado. Era como se houvessem dois Cams ao mesmo tempo, só que um era muito mais estiloso que o outro. Diferenças a parte, ambos estavam com uma expressão muito semelhante e isso é que era mais estranho.
- Pronta pra segunda parte? – o Cam “atual” me perguntou divertido, e eu pulei ao som de sua voz.
- Segunda parte?
Ele ignorou minha pergunta e minha cara de total desentendimento, pra variar, e começou a fazer um jogo intrincado de sinais com suas mãos e braços, ao mesmo tempo em que sussurrava palavras em uma língua que eu não conhecia.
Como num passe de mágica, tudo a nossa volta começou a se dissolver e a girar. O jardim, o banco de ferro branco, a linda noite de luar e a casinha simples em que eu vivia na época, tudo parecia sumir e se misturar com outras imagens que, ao poucos, começaram a tomar forma.
Levaram poucos segundos para estarmos em um local totalmente diferente, mas eu logo percebi que a época ainda era a mesma. Avistei Margarett e Cam no meio de uma praça. Ela segurava um sorvete em uma das mãos enquanto a outra estava entrelaçada a dele - !?!?! – Como assim?
O casal conversava alegremente e era nítida a felicidade deles. Crianças brincavam e corriam pela praça, o chafariz central jorrava uma água fresca e transparente, o sol brilhava no céu azul, gaivotas branquinhas sobrevoavam a cidade e as pessoas ao redor deles estavam contentes com tudo isso; era como se o mundo a volta deles estivesse se rendendo a tanta alegria. Se eu tirasse uma foto, ela seria o quadro perfeito de uma tarde de domingo dos anos 20.
- Isso foi em torno de dois meses após a noite que você e eu nos conhecemos. – Cam falou sorrindo, aproximando-se de mim – Foram os melhores meses da minha vida.
- E... – eu perguntei encabulada – o que aconteceu nesse período?
- Bom, - ele começou – eu deixei alguns dias se passarem depois daquele incidente com Paul. Retornei a sua casa um dia a tarde com o pretexto de recuperar meu casaco. – o sorriso travesso inundou seu rosto – E depois disso a gente começou a se ver constantemente. Nós adorávamos a companhia um do outro e ficamos amigos bem depressa.Foi muito estranho pra mim, pra ser sincero.
- Estranho? – perguntei.
- Sim. Eu tinha acabado de chegar na cidade e estava tentando me ambientar. Era sempre assim que eu fazia, pulava de cidade em cidade, me instalava e fazia o que eu queria. Depois de zuar com tudo, ou com todas, eu enjoava e me mudava. Era o meu jeito de encarar a vida aqui embaixo.
Ele falava isso de um jeito tão sincero e sem pudor, estava totalmente relaxado, como podia?
- Bem como um demônio mesmo... – falei cruzando os braços, desgostosa. Por algum motivo eu não tinha gostado de saber dessas coisas.
Cam riu.
- É... bem como um demônio. – ele me olhou e continuou – Mas quando eu cheguei aqui eu conheci você... e as coisas ficaram um pouquinho diferentes.
- Diferentes como? – perguntei.
- Eu não sei, apenas diferentes. – ele coçou a cabeça e torceu de leve o nariz antes de continuar - Eu até pensei ... pensei em fazer com você o que sempre fazia com as moças que encontrava... eu iria ser gentil, amigo, cavalheiro até ter tudo o que eu quisesse, depois eu partiria pra outra. – ele soltou uma rápida risada - Mas com você foi tudo tão diferente, eu não tive coragem de fazer isso.
Minha boca teve que ser aparada com a mão, porque meu queixo estava no chão, eu simplesmente não sabia o que dizer. Nós estávamos ali, parados no meio de uma praça do
passado com lembranças de pessoas e ele estava simplesmente dizendo essas coisas, tão simples, tão direto.
- A gente ficou muito próximo um do outro e eu, pela primeira vez - e única, devo acrescentar, senti uma coisa especial por alguém.
- Você quer dizer que se apaixonou por Margarett? – Perguntei respirando fundo.
- É... eu me apaixonei por você.
- Eu não sou ela.
- Você não é, você foi. – ele disse me olhando profundamente com todo o poder daqueles olhos verdes.
Um verdadeiro vulcão de sentimentos explodiu dentro de mim. Veio tudo misturado de repente, e quente. Parece que tudo o que Margarett – eu – sentia por Cam aflorou naquele instante e conflitaram imediatamente pelo o que eu sentia por Daniel. Fiquei parada, apenas tentando me controlar enquanto Cam continuou sua história.
- Nós ficamos bem por alguns meses... até... até outro cara aparecer na cidade.
- Daniel. – falei sem pensar.
- Daniel. – Cam confirmou em um tom que eu não saberia explicar.
- Ele estava fugindo de você, como sempre – Cam continuou, meus ouvidos escutavam sua voz atentamente, enquanto meus olhos acompanhavam o casal – nós - a meia distância, se divertindo e se curtindo – Mas como sempre, ele acabou encontrando você. Desde a primeira vez que você o viu... eu não sei... vocês se reconheceram, sei lá, eu só sei que as coisas mudaram entre nós. Eu sabia que você estava apaixonada por mim, mas também sabia que sua atração por ele era irresistível blá blá blá. – ele desdenhou sinicamente.
- E então? – perguntei seca.
- E então eu percebi que você estava se controlando muito para não assumir o que sentia por Daniel e que você não queria me magoar. Você sempre teve princípios, sempre foi honesta e sincera e sentir isso por nós dois começou a magoar você demais. Daniel tentou se afastar de você, mas não conseguiu, então eu o fiz.
- Você foi embora? Tipo, me deixou ficar com ele pra que eu não sofresse?
- Não. Eu fui embora pra que EU não sofresse, Luce.
Cam era um demônio, eu sabia disso. Mas toda essa história – nossa história – me fez pensar sobre tudo, sobre como ele pode ter um lado bom, capaz de amar e se sacrificar. Pensei que ele tinha alcançado isso, mas o fato de ele ter ido embora foi apenas para protegê-lo, não foi por mim ou por Daniel. Uma pontada de tristeza invadiu meu coração.
- Mas... – continuei – Daniel não me deixou. Ele sabia de tudo isso e não me deixou. Ele foi egoísta.
- Não. – Cam disse colocando as mãos no bolso – Egoísmo característica que anjos não possuem, apenas demônios. Eu fui egoísta, mas Daniel só não deixou você porque não suportaria vê-la sofrer. Ele nunca se importou com o que ele sentiria. Essa é a diferença entre nós.
- E por que você está me contando tudo isso? Parece até que está defendendo ele.
- Não estou. Estou apenas dizendo a verdade. Eu não tenho que esconder minha natureza, eu sou assim, Luce. Eu só queria mostrar a você que um dia você me amou e que você foi capaz de me fazer sentir coisas que eu nunca tinha sentido antes... – ele se aproximou e pegou minhas mãos entre as suas – ...e ainda faz.
Eu o encarei firme, não podia me perder em seus olhos e suas palavras agora. Minha mente começou a processar todas as informações, começou a juntar tudo.
- Você também sabia que me contando toda a verdade minha alma se lembraria de você e eu ficaria confusa, não é? Você sabia disso o tempo todo, Cam! Foi só por isso que você me contou que Daniel era uma Dominação, foi só por isso que você o fez contar a verdade a mim, pra que eu me lembrasse, pra que eu sentisse por você o que eu sentia antes! – eu estava explodindo e cada palavra saía de mim como um raio, minhas mãos empurrando seu peito – Você me fez acreditar que era só pela verdade, mas não era! Você armou tudo para que eu sentisse por você o que sinto agora!
- Era a minha única opção, Luce! – ele me interrompeu tentando me explicar, seu tom exaltado – Como eu podia tentar algo com você se você só tinha olhos pra Daniel? Eu tinha que fazer com que sua alma lembrasse que me amou, que me amou muito!
- E pra que, Cam? Pra você poder terminar o que começou nos anos 20?! Pra você se divertir com o que você causou à minha relação com ele? Por que você fez tudo isso?
- Porque eu te amo! – Ele me encarava fervorosamente, seus olhos brilhavam. Tudo a nossa volta era apenas um cenário, um borrão insignificante. Ele cuspiu as palavras em mim sem nem ao menos pensar no que dizia – Porque desde a primeira vez que eu vi você eu me apaixonei e fiquei confuso! Porque depois que você morreu naquela década eu passei anos esperando reencontrar você novamente e eu tive que me contentar em ter que encontrar você e me apaixonar por você sempre e sempre e ver você morrer por ele!
Meu corpo tremia, minha garganta doía com o nó que se formava. Cam havia realmente conseguido seu objetivo e eu tinha sido estúpida o suficiente para cair na dele. Agora, minha relação com Daniel estava estremecida e eu estava apaixonada por ambos, confusa e impotente.
Cam e eu nos encaramos por muito tempo em silêncio e ele foi, aos poucos, se acalmando.
- Vamos voltar. – ele disse pouco antes de começar a fazer aqueles sinais e gestos estranhos. As imagens novamente se embaçaram a nossa volta e tudo começou a girar. Fechei meus olhos bem apertados e em segundos eu pude voltar a sentir a pedra firme aos meus pés e o
cheiro de água salgada do mar a minha frente. O vento frio que me atingiu foi como um aviso para que eu abrisse os olhos e voltasse à realidade do meu confuso presente.
- Nossa! – exclamei assim que percebi que já era final de tarde. Anunciadores eram assim, sugavam nossa energia e nos fazia viajar através da história... mas o tempo real passava muito depressa.
Em uma fração de segundos, muita coisa aconteceu rapidamente. Assim que abri os olhos e reparei que já estávamos no fim do dia algo violentamente atingiu Cam ao meu lado, derrubando-o na areia gelada. Foi rápido demais para meus olhos perceberem o que tinha acontecido, mas pela forma graciosa como ele pousou na areia, deduzi que já esperava por isso. Eu não entendi nada, nem vi o que ou quem o atacou. Meus instintos de luta imediatamente se acenderam e me pus em posição de batalha. Mas toda a tensão de meus músculos não foi o suficiente para encarar cena que vi a minha frente: Cam fora atacado por Daniel, que estava prostrado de pé em cima da pedra, ao meu lado, com as asas abertas e sua espada dourada apontada na direção do outro, que se posicionou de forma defensiva na areia, com suas asas também abertas.

Eram dois leões se encarando, duas forças da Natureza, e meu coração simplesmente não sabia como lidar com isso.