O Grande Ladrão de Cavalos - Livro I escrita por Uzi


Capítulo 2
Gomer




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/126937/chapter/2

Sahyt Orakel entornava goela a baixo sua caneca de cerveja enquanto admirava o estranho ambiente do salão. Não estava acostumado a beber, nem se lembrava da última vez que visitara uma taverna, o trabalho que executava para a SRS não permitia esse tipo de distração. Da última vez que tentara contar sua idade e seus dentes, encontrou-se com pouco mais de 35 anos, porém tinha a aparência de um jovem de 21, já os dentes estavam todos ali, brilhantes e brancos como leite. Seu corpo era muito fino e frágil, a barba era rala como a de um adolescente, os olhos azuis muito claros eram vivos como o de um bebê curioso e os cabelos eram castanhos, mas quase loiros, porém com um estranho tom esverdeado. Em sua mesa o acompanhavam quatro homens que faziam sua segurança, mas também o impediam de fugir. Fora esses, todos os demais rostos do salão eram desconhecidos. Sabia apenas quem era o bardo que cantava sobre o pequeno palco. Nunca tinha o visto pessoalmente, mas todo mundo no condado já ouvira falar pelo menos uma vez sobre o Grande Menestrel.

O bardo tinha muitos nomes, mas os elfos o chamavam de Izai. Era pequeno, talvez não tivesse nem um metro de altura, e era velho. Vestia uma calça cor de vinho, uma camisa branca e um colete vermelho de detalhes dourados. Tocava habilmente uma rabeca. Sua voz era limpa e suave, percorria por cada nota de suas canções com uma afinação impecável, mesmo depois de quase uma hora de apresentação ininterrupta. Quase todas as suas cantigas falavam de amor e de saudade, e de uma terra distante que foi deixada para trás. De um jeito ou de outro, a música mexia com as memórias mais antigas de cada pessoa no recinto, e elas se sentiam como se já tivessem realmente morado no país descrito pelo trovador.

Sahyt, mesmo comovido, procurava não se distrair. Enquanto ouvia a música, executava mentalmente uma parte muito importante do seu trabalho, ele estava sonhando acordado. Sahyt Orakel era um vidente a serviço da SRS, porém não era um vidente qualquer. Enquanto a maioria dos oráculos e profetas procura ter suas visões através de rituais malucos, usando drogas alucinógenas, fazendo jejuns prolongados ou ficando em posições incomodas por dias, Orakel previa o futuro de uma forma muito particular e interessante. Ao ouvir uma história, ler um pergaminho, escutar uma canção ou estudar a arquitetura de algum prédio antigo, ele via pequenos flashes dentro de sua mente, partes ocultas da narrativa se revelavam como se ele mesmo tivesse presenciado os eventos. E uma vez conhecendo o passado ele, apesar de nem sempre conseguir antevê-lo, tinha uma forte intuição sobre o futuro. Por isso ele era servo e prisioneiro da SRS a mais tempo do que conseguia se lembrar. E por isso estava ali hoje naquela taverna, assistindo ao grande Mestre dos Bardos.

O velho terminou mais uma canção e pela primeira vez na noite pediu um copo de água. Logo uma das moças que servia na taverna trouxe um copo e um jarro e colocou ao pé do cantor. Depois de beber um pouco ele se levantou e estendeu o braço segurando o arco da rabeca. Com um movimento rápido desenhou um pequeno círculo no ar, e com isso várias lanternas se apagaram. Então mais uma vez ele moveu o arco, dessa vez fez um corte vertical, então as chamas que ainda estavam acesas se tornaram mais intensas e deixaram o salão com cor avermelhada. Todos permaneceram em silêncio. O mestre retirou um cachimbo de um dos bolsos da calça e preparou o fumo, pronunciou baixo umas palavras mágicas e o cachimbo se acendeu. Depois de alguns minutos concentrado apreciando seu fumo, ele finalmente falou:

— Esta história aconteceu há muitos anos, no distante reino de Namalkah, o país das montarias fantásticas. Em Namalkah os homens tem uma ligação profunda com a natureza e grande respeito por todas as criações de Allihanna, principalmente pelos cavalos, que para eles são animais sagrados. Cada namalkahniano, quando ainda é criança, recebe de presente um potro que será seu companheiro pela longa jornada da vida. Hippion, o cavalo-deus, é a divindade mais cultuada por ali, e alguns acreditam que o mesmo habite no reino caminhando entre os mortais sob o disfarce de um garanhão selvagem...

Enquanto Izai continuava sua história descrevendo as peculiaridades daquele país, Sahyt observava as reações do público, todos pareciam hipnotizados pelas sábias palavras do ancião. Uma das características que faziam do bardo ser reconhecido como mestre de todos os seus colegas em todos os lugares que passava era sua capacidade de adequar a linguagem da narrativa ao público que o acompanhava. Ele poderia contar a mesma história num baile da nobreza, numa aldeia de gnolls, ou diante de um deus poderoso, e todos eles demonstrariam um grande respeito por suas habilidades de narrador.

— (...) E naquela aldeia havia um clérigo de Hippion chamado Gomer, um dos maiores heróis de sua época. Quem me contou essa história tinha certeza de que, caso o cavaleiro não tivesse caído em desgraça, ele se tornaria o sumo-sacerdote de Hippion.

Sahyt era todo ouvidos a Izai. E sem perceber, sua visão foi se modificando. Aos poucos ele não estava mais na taverna da vila, fora transportado a Namalkah. Seus olhos eram os de Gomer e o bardo contava a história do vidente.

— (...) Gomer partiu para sua missão sagrada acompanhado apenas de seu fiel baio Claudico. Por seu atraso para iniciar a jornada, Gomer resolveu passar por um lugar no reino que era evitado pela maioria dos cavaleiros, o Campo de Sal. A história desse campo que hoje ninguém mais sabe onde fica, é que no passado uma tribo de nômades inteira fora destruída ao passar por ali depois de terem insultado Allihanna. Os espíritos dos nômades ainda habitava o lugar e atacavam qualquer animal que cruzasse o campo, como uma forma de se vingar da deusa da natureza. Gomer achava ridícula aquela história e nunca tivera medo de assombrações, então, e desafiou os espíritos para cortar caminho...

— (...) como eu já havia dito antes, cada namalkahniano tem uma ligação única com seu animal, e quando um deles está montado sobre seu cavalo, as almas de ambos se fundem, tornando-se como uma só. Quando concentrados num objetivo, os desejos de ambos se confundem, eles são como almas gêmeas. Gomer e Claudico eram naquele momento a mesma pessoa. E foi quando tudo aconteceu...

— (...) Uma pata de Claudico afundou num buraco e se partiu. Gomer foi lançado a alguns metros de distância e ficou desacordado por um dia, tal foi a força de sua queda. Ao acordar, não teve tempo de se despedir do amigo que por tantos anos o havia acompanhado, Claudico não resistira ao ferimento. O cavaleiro entendeu que havia sido vítima de algum mal feito pelos espíritos dos nômades que habitavam o campo e entrou em desespero. Sua alma fora serrada e metade dela havia deixado o mundo dos vivos junto com seu cavalo. O homem enlouqueceu, e aos gritos e espumando pela boca passou a correr sem rumo pelas planícies de Namalkah. Em seu interior ele clamava pelo pedaço que lhe faltava. O instinto o mandou tocar em outros animais, e de cada um ele roubava um pedacinho de alma, a fim de recompor a sua. Então Gomer se tornou um monstro dentro da pele de homem. Um selvagem feroz que atacava sem dó qualquer um que se aproximava.

Sentindo a loucura de Gomer, Sahyt que estava sentado em sua mesa na taverna, saltou e deu um rugido de tristeza, assustando a todos. Percebendo o que estava acontecendo, o Mestre dos Bardos pôs um dedo diante da boca e soprou, fazendo o vidente se calar. Em seguida pegou sua rabeca e cantou mais uma canção. Uma música de Namalkah, mas traduzida para o lalkhar. Todos então esqueceram de Orakel e continuaram com sua atenção voltada a performance do contador de histórias. Ao terminar sua música, o bardo voltou a narrativa.

— Alguns meses depois, numa aldeia de centauros no extremo oeste do reino, um xamã de nome Kabaz teve uma visão com a dama das florestas, a sábia Allihanna. Nela a deusa contou-lhe do infortúnio de Gomer e convocou seu servo para curar o herói, ensinou-lhe uma prece e um ritual que deveria ser feito para romper com a maldição. Kabaz partiu ao amanhecer, e depois de dois dias de viagem, encontrou o louco ex-clérigo dos cavalos. Houve luta, pois Gomer não escutava a ninguém e seu raciocínio era muito confuso. Depois de quase quatro horas de combate, o centauro finalmente dominou seu adversário, conseguindo executar com sucesso o ritual de cura. Ao recuperar sua consciência, Gomer foi informado por Kabaz tudo o que havia acontecido desde o incidente nos Campos de Sal. O cavaleiro entristeceu-se muito, cobriu-se de cinzas, e chorou por um dia e uma noite. Após isso, o xamã ordenou ao cavaleiro que cumprisse uma penitência para pagar por seus crimes. Ele deveria servir por um ano a boa gente da vila de Juipfer, que ficava três dias ao norte dali, depois esperar uma revelação dos deuses para o segundo passo de seu castigo. Também alertou-o que a maldição era muito forte e impossível de ser quebrada totalmente. Portanto ele deveria evitar de todas as maneiras ter qualquer forma de contato físico com seres que não fossem comprovadamente benignos. Depois disso os dois se despediram, Kabaz voltou para sua tribo, e Gomer rumou para Juipfer.

— Gomer serviu por um ano ao povo da cidade. Num primeiro momento foi tratado com desconfiança, mas aos poucos foi provando seu valor quando enfrentou e venceu todos os malfeitores que tentaram atacar o povoado durante aquele período. De homem maldito Gomer passou a ser conhecido como a benção de Hippion para o povo de Juipfer. No aniversário de sua libertação, recebeu a visita de um amigo e antigo clérigo de Hippion, dizendo a segunda parte da penitência. Ele foi enviado para a cidade de Oma, onde o povo era mau e estava destruindo a natureza. Ele deveria pregar a boa mensagem de Hippion e Allihanna, e punir todos os criminosos que moravam ali. Porém ele deveria tomar muito cuidado para não deixar sua pele ser tocada por nenhum Assim Gomer fez, e por um ano morou em Oma.

— Oma se tornou uma das cidades mais respeitáveis daquele país, e todos os seus habitantes, inspirados pelos feitos do herói, passaram a respeitar a vida dos animais e de seus concidadãos. Porém Gomer ainda estava muito triste e ficou meses deprimido, até que soube de uma tribo nômade ao norte do rio dos deuses que cometia verdadeiros crimes a sua crença. Os nômades comiam carne de cavalo e destruíam tudo por onde passavam. Gomer, tomado por sua impulsividade natural, partiu em direção ao norte a fim de punir aqueles pecadores.

— Para o herói, os tais nômades do norte eram muito parecidos com os que antes habitaram nos Campos de Sal. E tomou como dever seu purificar a terra sacrificando todos eles. Os bárbaros cultuavam a Megalokk e a espíritos malignos do caos e das trevas. Um dia, tomados de ódio e de loucura, aprisionaram Gomer e fizeram com ele um ritual antigo que envolvia uma grande orgia com o prisioneiro. Gomer enlouqueceu mais uma vez, e se tornou um dos mais sanguinários xamãs de Megalokk já vistos na região. Ele passou a liderar os bárbaros num grande ataque ao reino de Namalkah.

— Mais uma vez, vendo a paz do reino dos cavalos sendo ameaçada, Allihanna convocou seu fiel clérigo Kabaz em sonhos. Ordenou que ele fosse sozinho aos Campos de Sal e encontrasse o cadáver de Claudico, que ainda estava misteriosamente conservado no mesmo local onde toda a tragédia se iniciara. Kabaz então removeu um olho do baio e fez com ele um amuleto sagrado. Então partiu para a cidade de Oma, a qual Gomer preparava para fazer seu próximo ataque. Kabaz lutou ao lado dos homens de Oma e conseguiu proteger a cidade. Quase todos os bárbaros foram mortos na batalha e Gomer foi finalmente capturado. E de novo Kabaz fez o ritual de purificação, mas desta vez colocou o amuleto feito com o olho de Claudico no pescoço de Gomer. Com ele o herói nunca mais seria tomado pela maldição, e nunca mais se renderia a loucura. Depois disso Gomer partiu em peregrinação e nunca mais foi visto. Reza a lenda que entre os bárbaros ele havia tomado uma mulher como esposa. Dessa união nasceu um menino que carregava a maldição do pai de forma mais branda. Dizem que a antiga tribo dos homens sem cavalo de Namalkah, hoje já extinta, era descendente de Gomer. E foi assim que tudo aconteceu.

Então o Mestre dos Bardos estalou os dedos e todos da estalagem foram despertados de seu transe. O bardo havia desaparecido, e Sahyt dormia tranquilamente com sua cabeça apoiada sobre a mesa. Os denares de seu bolso haviam misteriosamente desaparecido.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Grande Ladrão de Cavalos - Livro I" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.