Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 1
Quando Uma fábula Começa




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Quando Uma fábula Começa

           

O que seriam das pessoas sem seus segredos? Seriam apenas caixas vazias, isso é que seriam. Pior se não existisse o desejo em desvendar cada um deles. Seria como... Não ter caixa nenhuma. Numa dessas, as pessoas se perdem. Os Perdidos estão por todas as partes, por nunca encontrarem nada que desse sentido ao grande vazio. Alguns, no entanto, encontram de tudo, e se perdem em meio a tralhas e segredos demasiados. Entre traças, livros e ilusões, nasce um mundo. Escondido na realidade.

            Quantos livros são vendidos, quantos outros são escritos. Histórias que foram contadas com o passar do tempo, lendas, mitos e outros seres do imaginário que instigam a curiosidade e, de forma frustrante, nunca puderam ser consideradas “mentira” ou “verdade”. Incapazes de discernirem a tênue linha entre esses dois extremos, acabam criando um meio termo: a fantasia. O Monstro do Lago Ness, por exemplo. Pescadores juram que viram o animal tragar pequenas embarcações, ou juram ter perdido algum membro do corpo durante um feroz confronto contra a serpente das águas. O Yeti, o abominável homem das neves, esse aí é famoso, apesar de não “existir”. Há quem afirme ter visto o animal ou, mesmo, ter tomado um chá em sua confortável caverna nas montanhas geladas.

            Admitam. Os mundos estão alicerçados em perguntas sem respostas. O frágil planeta Terra, com todos os seus dilemas, não poderia ser diferente. Afinal, onde foi que surgiu a primeira “história da Carochinha”? Quem foi o primeiro a contar uma fábula para assustar garotinhos levados ou fazer doces meninas embalarem no sono? Provavelmente alguém cheio de criatividade e nenhuma atenção. Mas a questão é: até onde as histórias são simples invenções? Bem, o mundo está cheio de muitas dessas coisas classificadas como “encantadas”, mas, decididamente, fábula é a última coisa que se encontra em Manhattam.

            O fato é, as fábulas estão nos livros. Desde Chapeuzinho Vermelho até os monstros tétricos habitantes dos mais mórbidos pesadelos. Mas toda história começa de um mesmo jeito, curioso e, inclusive, clichê. “Era uma vez...”.

            Bem... Era uma vez em Manhattam.            

   *******************************************************************

Ele tinha apenas seis anos. Charlie. Era uma espécie de garoto extraordinário. Não por ser genioso ou inteligente, ou por ter qualquer talento que realmente pudesse ser glorificado. Mas sua habilidade era igualmente chamativa. Era um perfeito mentiroso.

            O manual dos pais ensina que é normal e, inclusive, esperado quando os filhos lançam a culpa sobre os irmãos mais novos, ou mesmo sobre o cão de estimação. Não era bem isso o que acontecia com Charlie. Sua mente parecia trabalhar por contra própria. Era como uma fagulha criada por qualquer situação, em especial quando o menino entrava em alguma enrascada. Bastava ser pressionado para se esquivar das acusações da forma mais mirabolante e criativa que alguém pudesse imaginar.

           

Aquela foi a primeira mentira. A primeira de muitas.

Era jantar de ação de graças. A casa grande era confortável o suficiente para abrigar toda a sorte de parentes. A família Logan era extensa e, ainda que houvessem conflitos, todos sentiam a necessidade de manter os laços, reunindo, pelo menos, uma vez ao ano. O jantar de ação de graças era o mais conveniente.

A Sra. Logan tinha o pequeno Andrew em mãos, o irmão mais novo de apenas três anos. O Sr. Logan estava ocupado tentando explicar à irmã, Norah, como se faz para temperar um peru de verdade. A confusão na cozinha já estava estabelecida muito antes de Charlie chegar. Os ingredientes estavam espalhados e, decididamente, o banquete não estaria pronto a tempo.

Charlie havia deixado os primos na sala de estar, entediado pela companhia. Caminhou por toda a casa, em busca de um lugar silencioso, mas o cômodo mais inóspito era o seu próprio quarto, onde o tio Roy, um gordo de meia idade, roncava como um rinoceronte em época de acasalamento.

O garoto, normalmente, passava despercebido. Suas ações foram ofuscadas pela nova aquisição da família Logan. Depois da chegada de Andrew, o “belo menino das bochechinhas rosadas da tia Norah”, ele percebeu o quão invisível havia ficado. Andrew era o prodígio esperado pelos pais. Andou cedo, a primeira palavra dita foi “incrível”, além do seu talento em sorrir e mamar ao mesmo tempo. Era tudo uma fase, mas, para Charlie, um garoto de apenas seis anos, essa indiferença era quase uma traição.

Charlie entrou na cozinha, aproveitando-se da situação de completa desordem. O forno estava ligado, e a única coisa ao seu alcance era uma lata de extrato de tomate. Sua imaginação não precisou se esforçar tanto para decidir o que iria fazer. Talvez fosse a raiva por ter sua casa apossada pelos parentes impertinentes, ou o simples ócio. Mas ele o fez.

- Charlie! Você tem idéia do perigo que corremos com a sua brincadeira?! – gritou sua mãe, Lauren Logan.

O forno havia enguiçado, a lata estourado, ainda que todo o jantar tivesse desandado muito antes. O garoto estava sentado sobre a mesa, com o pai segurando-o firmemente pelo pulso, enquanto a mãe dava o sermão.

- Não foi eu, mãe! – falou o garoto.

- Vai dizer que foi o Andrew! – a mãe revirou os olhos, enquanto a primeira têmpora raivosa despontava em sua testa.

Charlie estreitou os olhos, encarando a mãe com desconfiança. Balançou a cabeça lentamente e disse:

- Mamãe, o Andrew estava no seu colo todo o tempo, como ele pode ter feito isso? A senhora está querendo colocar a culpa nele, mamãe?

Ela bufou, mas conseguiu controlar seus ânimos. O pai não conseguiu se conter, afrouxou o pulso do filho e segurou uma risada. Todos perceberam e, diante do olhar repreensivo da esposa, Michael Logan decidiu que era hora de sair da cozinha.

- Miachel, essa atitude só encoraja as peraltices do seu filho. – ela disse, enquanto o marido dava as costas e desaparecia de vista.

- Eu sou seu filho também, mamãe.

- Me diga, Charlie. Se não foi você, quem poderia ter sido? – ela falou, já impaciente.

- Ora, quem mais poderia ser? – ele deu de ombros, como se fosse óbvio demais.

Dentro daquela cabecinha, as engrenagens começavam a girar. Os primeiros sinais de seu “talento” começaram a aflorar.

- Mãe... – ele continuou calmamente, balançando os dedinhos no ar – Grimos esteve aqui. Ele não gosta do dia de ação de graças. Sua casa foi arrancada uma vez, por uns lenhadores muito maus. Construíram aquela mesa que colocam no Central Park, sabe? Aquela grandona que usam para dar comida aos homens sem dinheiro no dia de ação de graças. Grimos não ficou feliz. Disse que queria estragar o dia de alguém, como fizeram com ele.

- O que... Charlie, o que você está dizendo? – Lauren foi pega de surpresa. Era o tipo de resposta que não estava no manual dos pais.

- Eu sei, mamãe. Deveria ter impedido o Grimos, mas, sabe como ele é, adora pregar peças e fazer apostas. Ele apostou comigo que eu jamais conseguiria lamber o meu próprio cotovelo e... Eu não consegui. Imagine só, nunca pensei que fosse impossível.Mas, a senhora sabe, né... Palavra é palavra, então eu dei a lata pra ele... Mas se eu soubesse o que ele pretendia...

- Charlie, apenas... Pare de falar. – pediu a mãe, cobrindo a testa – você tem idéia do quão ridícula é essa mentira?

- Ora, mamãe... Tente lamber o cotovelo, se você se acha tão esperta.

Isso lhe custou uma semana sem sobremesa e o seu primeiro castigo oficial. O primeiro de muitos. Foi, também, o começo da primeira invenção de Charlie, sua primeira fábula, ainda que viesse em forma de mentira. Estava criando um mundo só seu, e não havia como pará-lo agora.

Só para constar. segundo Charlie, Grimos era um habitando das grandes árvores e, metade raposa, metade menino, não gostou de ter sua casa arrancada de forma tão insolente. "Coisa feia, o que fizeram com o pobre Grimos".


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Notas finais do capítulo

você comenta minha história, por favor? =DD