Perspectiva escrita por mamita


Capítulo 14
Campo minado




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PDV Rosálie

Abri as janelas da casa e contemplei o esbranquiçado campo próximo a ela. Deixei a luz do sol estender seus raios em direção ao meu corpo, eu brilhei quando eles me tocaram. Lembrei-me de minha primeira vez com o Emmet, de como ele ficou sorrindo para os reflexos que meu corpo irradiava, enquanto estávamos na praia. Tive saudade daqueles dias, da sensação de segurança que me cercava.

Esse é um dos péssimos aspectos de estar aqui, às vezes eu o vejo muito pouco. Ele e Edward saem em missões de resgate pela Polônia, outro dia estiveram até na Alemanha. Como passamos por um jovem casal, eu pouco vejo Esme. Carlisle, ela e Edward se estabeleceram em outra cidade e a casa deles recebe mais judeus que a minha. Emmet só traz para cá mulheres e crianças, tem medo de como reagirei na presença de homens. Desde que me tornei vampira, não me aproximo tanto dos humanos.

Estar na Suíça quase me faz esquecer que existe guerra, não há nada aqui que me lembre isto. As cidades são encantadoras e a vida segue seu curso, os campos são lindos e a neve os cobre.

Mas estar aqui ativou minha memória, não sei se é a ausência de Emmet, a distância de Esme ou o olhar perdido e tristonho das mulheres que escondo até ter um destino seguro. Tenho tido muitos episódios torturantes de lembranças.

Elas chegam aqui com os olhos tão apavorados que é impossível não me lembrar o que é medo e terror.

Da última vez em que estive com os outros Esme me disse que Carlisle conseguiu uniformes dos exércitos envolvidos nas batalhas e os usa para tratar os mais feridos depois dos embates. Desta forma não desconfiam da ajuda de um completo estranho. Ele arregimentou outros vampiros para ajudar na migração dos judeus, um clã irlandês de uma velha conhecida, alguns nômades, até o ranzinza Alistair ajuda algumas vezes. Soubemos que os Volturi recolheram toda a guarda e está levando para Volterra todas as obras de arte que consideram inestimáveis para a humanidade e estão em zona de combate.

Esme também me disse que Carlisle lhe conta os horrores que vê como forma de expurgá-los, e estupro é um dos crimes mais recorrentes como eu desconfiava.

Sei que muitas mulheres que eu acolho sofreram esta violência, tento consolá-las. Mas não as toco, não podem descobrir o que somos. Para elas seremos bons samaritanos que as livraram dos campos de concentração. Elas estão sempre sujas, com fome e medo, posso sentir.

Emmet saiu há três dias, o que significa que ficarei no mínimo mais dois dias sem vê-lo. Já sinto minhas memórias se esgueirando sorrateiras. Ouço passos, não é comum, moramos em um sítio mais afastado. Sinto o cheiro reconfortante de meu marido, ele está próximo. Abro a porta antes que ele toque a campainha. Ele traz consigo uma mulher que aparenta ter 30 anos e três crianças. Eu o abraço forte, tento afastar a lembrança com sua presença:

- Estava com tantas saudades amor. Digo em inglês.

- E eu de você. Ele disse me beijando.

Eu conduzi a mulher e as crianças até o sótão, onde havia um quarto improvisado e era seguro escondê-los. A menor das crianças, que aparentava ter dois anos, estava de mãos dadas com a maior, uma mocinha de seus doze. Percebi que elas não pareciam ser ligadas a mulher, ficaram num canto do cômodo, encolhidas. Eu me aproximei e entreguei a elas um pedaço de pão e dois copos com leite. A maior pegou e primeiro alimentou a pequena. Eu perguntei em hebraico o nome delas, não dominava ainda a língua, mas falava o suficiente para me comunicar. O bom de ser vampiro é a velocidade com que seu cérebro processa as novas informações. Emmet e Edward já haviam ficado fluentes em várias línguas nesse período.

- Meu irmão se chama Shmuel, ele tem três anos e eu sou Mishka, tenho onze.

A menina me informou com os olhos tristonhos.

- Onde estão seus pais? Quis saber.

- Não sei, uns soldados chegaram, eles me esconderam e disseram para eu esperar eles irem embora e fugir para a floresta com o meu irmão. Disseram para eu não voltar e não me aproximar das cidades. Que eles tentariam nos encontrar. Não consigo encontrá-los. Eles nos esqueceram, como na história de João e Maria.

Eu e a mulher dividimos um olhar de pena. Seus pais deveriam estar em algum campo a este momento. A mulher aconchegou mais a menininha (que aparentava ter cinco) em seu colo, como se quisesse sentir que ela estava segura e não ia deixá-la por nada.  Contrariando todas as regras e recomendações de Carlisle eu abracei a menina. Então ela chorou, acho que se permitiu estar triste, já que não precisava se concentrar em manter-se viva. Aninhei seu corpo ao meu como a um bebê e acariciei seus cabelos enquanto a consolava:

- Shhh, Shhh. Tudo bem, agora está segura. Seus pais devem estar te procurando ainda. Tenho certeza que te amam e não abandonaram vocês. Os soldados é que não devem ter deixado que eles fossem procurá-la.

Ele chorou por um bom tempo, o menininho continuava a comer. Ela então se acalmou, me olhou e disse com a voz ainda embargada.

- Não sei há quanto tempo estamos na floresta. Mas faz muito tempo, as flores caíram, as árvores perderam as folhas e agora está nevando. Shmuel não chama mais a mamãe.

Prestei atenção em suas feições, ela estava magra e debilitada, o menininho também. Eu a deitei numa cama no sótão e pedi que me aguardasse. Fui até a cozinha e coloquei água para esquentar. Tínhamos uma sala com roupas de vários tamanhos (que eu ficava fazendo para passar meu tempo), separei roupas para as crianças e para a mulher. Enchi a banheira e coloquei a água quente, depois fui buscá-los para um banho.

Entreguei as roupas para a mulher e lhe mostrei o banheiro do sótão. Peguei o menininho no colo e a aconcheguei a mim com o braço livre. Descemos a escada e eu os conduzi ao banho. Emmet estava em nosso quarto e me olhou temeroso.

Tirei as roupas e joguei no lixo, ela tinha alguns hematomas no corpo e marcas de arranhões, provavelmente caiu durante a fuga. Também algumas feridas nos braços, como mordidas de insetos mal cicatrizadas e os pés estavam feridos (acho que do frio). Mas ao virá-la de costas vi três enormes cicatrizes paralelas que tomavam quase toda a extensão dos ombros até o quadril. Pareciam marcas de pata, como se um animal tivesse fincado as garras e arrastado por todo o comprimento. O menino tinha uns arranhões e uma cicatriz perto da sobrancelha, também tinha feridas pelo corpo e os dedinhos dos pés estavam rachados. Eu os coloquei na banheira e comecei a esfregá-los, ela sorriu quando eu lavei seus cabelos. Teria que cortá-los, eles estavam cheios de piolho. Quando saíram da banheira eu expliquei que teria de cortar os cabelos dos dois, ela ficou meio chorosa, mas não reclamou enquanto eu o fazia. Depois de secos e vestidos, eu os levei para o nosso quarto, pedi a Emmet para olhá-los. Ele me encarou preocupado, mas carregou o bebê, ele lhe sorriu.

Estocávamos comida para alimentá-los, mas eu não imaginava que meu marido chegasse tão cedo. Improvisei uma sopa com atum enlatado, batatas, ervilha, cebola e queijo. Tudo me parecia tão fedorento, odeio a parte de cozinhar comida humana. Levei um pouco para a mulher e sua filhinha e pedi ao Emmet que levasse as crianças para a cozinha. Mishka logo pegou um prato e se aproximou do irmão para alimentá-lo, mas eu tomei de sua mão e disse para ela comer. Ela devorou dois pratos e algumas fatias de pão e o bebê sorria enquanto eu lhe alimentava, era incrível como depois de passar por tanto sofrimento ele ainda fosse tão sorridente.

Assim que acabou ele estendeu os bracinhos em minha direção e eu me levantei para carregá-lo. Emmet me conteve pondo sua mão sobre meu ombro. Eu o olhei e disse:

- Sei o que estou fazendo, não se preocupe.

Ele me entregou um par de luvas, não notei que os estava tocando com minhas mãos geladas e eles não reclamaram. Eu carreguei o bebê e ele encostou a cabeça em meu ombro, eu o aconcheguei e comecei a cantar. Não demorou muito para que adormecesse. A menina estava quase dormindo sobre a mesa. Emmet percebeu e a carregou, mas se dirigiu à escada que dava acesso ao sótão. Eu segurei sua mão e apontei para o quarto de hóspedes. Ele me olhou severo, mas eu insisti.

Segurei o bebê com uma mão e com a outra puxei a grossa colcha, depois o deitei e o beijei. Ele não reclamou da temperatura de meus lábios. Emmet colocou a menina na cama e eu a ajeitei, e também a beijei. Quando tentei me afastar ela segurou no colarinho de meu vestido, eu soltei sua mãe e sussurrei em seu ouvido:

- Pode dormir, você está segura aqui.

Eu segui Emmet até nosso quarto, mal fechei a porta e ele me encostou à parede me beijando com paixão. Suas mãos percorreram meu corpo suspendendo meu vestido, enquanto deslizavam por dentro de minhas coxas. Eu gemi baixinho, não queria que nosso barulho fosse percebido nos outros cômodos da casa. Dentro de segundo eu já estava na cama quase despida, ele consegui aprimorar muito suas técnicas de sedução. Nos amamos muitas vezes aquela noite, eu adorava a sensação de estar tão próxima dele. Me fazia sentir eu mesma, sem culpa por ser bonita, sem medo do passado, sem memórias.

Odiava estar ali por que sabia que os rostos daquelas mulheres jamais sairiam de minha memória, que eu levaria para sempre a memória de Mishka, sendo mãe de um bebê aos onze anos, só por causa da vontade de alguns homens de terem mais poder. Quando o dia já ia raiar ouvimos gritos vindos do outro quarto.

Mishka chorava ainda dormindo, ela estava muito agitada. Eu sacudi seu corpo para acordá-la, ela me estapeou enquanto se debatia dizendo:

- Sai, sai bicho. Larga meu irmão.

Então era este o motivo, alguma fera havia atacado o pequeno e ela o defendeu. Eu finalmente achei que consegui acordá-la, ela se agarrou em mim e disse:

- Mamãe eu obedeci, eu tomei conta de Smu. O lobo quis morder, mas eu não deixei. Está doendo, doendo muito. Mamãe não me abandone. Eu estou com muito medo, me abrace.

Eu a abracei bem forte, quando senti seu corpo junto ao meu é que fui perceber. Ela estava queimando de febre, estava delirando. Nem percebi quando comecei a chorar, só sei que Emmet colocou sua mão em meu ombro e beijou minha cabeça. Depois com uma voz calculada disse:

- Isso vai te fazer mal. Sabe que não podemos ficar com eles, eles não são como nós Rose.

Eu assenti com a cabeça e disse:

- Ela está com muita febre. Por favor, traga Carlisle, vou tentar resfriá-la.

Eu fiquei só de camisola e retirei a colcha que a cobria, depois a carreguei e  continuei a abraçá-la. Minha temperatura deveria ser o suficiente. Eu comecei a falar com ela:

- Isso já vai passar.

O bebê acordou com a movimentação, ele não chorou, nem falou nada.  Apenas se aproximou de mim e ficou segurando a mão da irmã. Parecia mais velho que na noite anterior, como se entendesse o que estava acontecendo.

Carlisle chegou pouco mais de uma hora depois, Esme o acompanhava. Apesar de meu corpo ser gelado, ela ainda queimava de febre. Ele se aproximou e eu a deitei na cama para que fosse examinada, mas fiquei segurando sua mão.

Esme carregou o bebê e saiu do quarto. Carlisle olhou todas as feridas. Eu lhe mostrei a cicatriz e contei o que achava que fosse. Ele pediu que eu saísse, mas eu não quis. Ele me disse que precisava fazer um teste com sangue e eu lhe disse que conseguia ficar, era só parar de respirar.

Ele se aproximou do sangue que vertia de seu dedo e o cheirou, até hoje não sei como ele consegue. Ele estancou o sangue, mas eu preferi não respirar ainda. Me olhou com tristeza e disse:

- Suponho que muitas doenças associadas. Anemia, desnutrição, e com certeza uma infecção generalizada. Com certeza essa cicatrização é superficial, deve haver tecido necrosado debaixo da epiderme. Creio que ela não irá resistir.

Mesmo assim darei antibiótico, ainda tenho um pouco e a esperança é a última a morrer.

Ele saiu e voltou com soro, uma ampola e uma seringa. Fez um torniquete em seu braço e inseriu um acesso, depois colocou um soro e injetou uma ampola nele. Eu desci as escadas para falar com Esme, ela alimentava o menino que perguntava a ela:

- Cadê imã?

Eu disse:

- Ela está dormindo um pouco, pequeno. Está cansada. Hoje você ficará com essa moça seu nome é Esme. Pode dizer: Es-me. Você consegue?

Ele me olhou e disse:

- É-mi.

Eu sorri e minha mãe também. Ela se levantou e me abraçou:

- Emmet está preocupado, tem medo que se apegue às crianças. Como a menina está?

- Carlisle acha que ela não vai resistir. Parece estar muito doente.

- Emmet disse que ela a chamou de mãe. Ela me olhou temerosa.

- Sim, ela estava delirando. Falei com um pouco de rispidez, só me dei conta depois que já tinha dito.

- Filha, só não quero que sofra depois. Isso é tão perigoso.

- Desculpe Esme é que fiquei preocupada com ela.

Pedi a ela que levasse o café da mulher e fui para o quarto. Carlisle segurava sua mão, eu achei que ela estava um pouco inchada e ela gemia baixinho. Eu realmente fiquei preocupada de ter feito algo errado, ela chegou consciente e até sorriu no banho. Por isso reuni toda a coragem e perguntei:

- Fiz algo errado? Ela não estava inchada ontem, nem febril, na verdade estava consciente. Será que lhe dei algo para comer que lhe fez mal?

Ele me olhou terno e disse:

- A guerra lhe fez mal, Rose. Se você estiver certa ela está na floresta há quase oito meses, sem comer direito, sem dormir, exposta ao sereno e a insolação. É bem certo que esteve gravemente ferida ao enfrentar um lobo, deve ter perdido muito sangue. E além de tudo tomou para si a responsabilidade de ser mãe de seu irmãozinho e acha que foi abandonada pelos pais. Se o corpo não estivesse tão doente, ela certamente morreria das feridas na alma. Você sabe muito bem como a tristeza pode nos induzir a morte. Ela está inchada por que você a hidratou e alimentou, está tentando reunir forças para enfrentar a infecção. A febre é um sinal de que seu corpo está tentando reagir.

O silêncio se instalou no quarto enquanto eu refletia sobre suas palavras e ele controlava o fluxo do soro. Ela quebrou o silêncio, abriu os olhos e parecendo estar consciente disse:

- Cuide de meu irmão, ele é tão pequenininho. Ele gosta de encostar a cabeça no seu ombro para você alisar sua orelhinha.

Tem um relógio de ouro em minha sacola, era de meu pai. Guarde para ele.

- Você mesma pode fazer isso querida. Resista, seja forte! Eu disse enquanto acariciava suas mãos.

- Acho que não consigo, estou muito cansada. Smu já tem quem lhe tome conta. Eu não quero ser forte, dói muito. Só quero dormir.

- Por favor, Mishka, não durma, tente lutar. Eu pedi com carinho, mas ela já não estava lúcida.

- Mamãe, estou com frio. Por favor, me abrace. Não me deixe dormir sozinha.

Carlisle me olhou temeroso, eu fingi que não entendi seu olhar. Enrolei a menina como um charutinho e me deitei ao seu lado. Ela se aconchegou á mim e sussurrou:

- Eu adoro seu cheiro mamãe, cheiro de amêndoas.

Eu fiquei com ela todo o tempo, Carlisle voltava para vê-la. Ele me olhava com um misto de pena e repreensão, mas não me dizia nada. Emmet entrou no quarto para dizer que encontrou um lugar para eles e eu apenas disse que achava que ela não chegaria à outra casa.

Garças aos deuses Edward não foi até nossa casa, parece que ficou cuidando de uma família que resgatou na Polônia. Eu não suportaria que ele visse meus pensamentos. Como desejava que ela resistisse; que eu fosse de fato sua mãe; como eu estava adorando abraçá-la; como eu desejava que ela estivesse ao meu lado para sempre. Que eu queria colocar o bebê para dormir novamente, vê-lo brincar no chão de minha sala, levá-lo para minha cama e deitá-lo entre eu e Emmet como minha mãe fazia quando eu tinha medo.

A febre não cedeu, ela continuava a delirar, me chamando de mãe várias vezes. Sempre que acontecia eu a abraçava mais e beijava seus cabelos. Ela reclamava do medo e do frio e eu controlava minhas palavras para que Emmet e os meus pais não ficassem ainda mais alarmados, dizendo:

- Tudo bem querida, já vai passar. Não está só.

Mas na verdade eu queria dizer:

- “Mamãe está aqui com você querida, eu não vou te abandonar”.

“Pode dormir meu amor, eu velo seu sono, pode descansar, não precisa mais resistir.”

Levou quase oito horas até que ela desse o último suspiro, eu fiquei com ela em meus braços mesmo depois disso. Se alguém percebeu não foi ao quarto, talvez por temerem minha reação.

Depois de controlar meu choro, eu desci as escadas e encontrei os três reunidos falando sobre crianças como ela. Eu disse:

- Acabou. Ela já morreu.

Esme me olhou assustada e Emmet imediatamente se levantou para me abraçar. Eu me afastei discretamente, não queria ceder ao choro, ele certamente se preocuparia.

Após alguns minutos Carlisle, que havia subido assim que anunciei a morte, desceu as escadas com um olhar tristonho. Ele olhou para mim e eu disse fazendo um esforço enorme para me controlar:

- Pode enterrá-la próximo ao olmo que fica ao sul da casa. È tranqüilo e ela poderá descansar sob sua sombra e proteção. Acho que o irmão não entende o suficiente sobre morte, mas deve assistir.

Virei em direção ao Emmet e disse, sem mirá-lo nos olhos:

- Pode providenciar isso? Não quero que ela fique muito tempo no quarto.

Ele pareceu entender o que disse nas entrelinhas. Não queria vê-la morta, não queria ter que olhar para a menina sem vida e saber que se eu não fosse tão infortunada talvez pudesse um dia ser mãe de uma menininha.

Não suportava saber que foi negado a ela o direito de ser criança, que ela foi obrigada a ser mãe do irmão e que morreu de forma tão desesperadora, só porque alguém decidiu que a sua origem a condenava.

Eles saíram imediatamente do recinto. Carlisle se dirigiu ao quarto, mas antes de subir repousou a mão em meu ombro e beijou meu rosto, como se dissesse que entendia o que eu estava sentindo. Emmet foi providenciar uma cova e um caixão.

Assim que ficamos a sós, Esme se levantou e veio ao meu encontro:

- Filha, posso entender o que está sentindo. Já passei pela experiência de ter uma criança morta nos braços. Ela te fez pensar sobre a injustiça de não poder ser mãe. Não foi?

Eu me permiti sentir tristeza, e chorei baixinho. Apesar de saber que os dois poderiam ouvir, não queria que isso fosse tão significativo a ponto deles recordarem. Olhei para a mulher em minha frente, ela às vezes parecia me entender mais que eu mesma. Saí de minha imobilidade e me aproximei dela, ela abriu os braços e me abrigou em seu abraço maternal e protetor. Jamais poderia ser grata o suficiente pelo fato de ter sido criada para a imortalidade nesta família, por ter apoio e compreensão. Eu devia lealdade extrema a eles.

Ficamos abraçadas até que Emmet voltasse, ele passou por nós e eu pude ver pelo reflexo no vidro da janela da cozinha sua expressão de preocupação.

Esme percebeu quando tentei me afastar e me soltou. Eu caminhei até ele e disse ao abraçá-lo:

- Eu estou bem, não se preocupe. Só estou sentida, ela poderia ter uma vida. E agora o irmão está sozinho no mundo.

Ele não disse nada apenas me afastou e olhou longamente para meus olhos. Depois beijou minha testa e meus lábios e saiu em direção ao quarto. Ele desceu carregando-a envolta em um lençol branco e Carlisle trazia o menino no colo.  Para minha surpresa a mulher do sótão os seguia com a filha agarrada a sua saia. Esme envolveu minha cintura e aproximou meu corpo do dela como se me apoiasse para que eu conseguisse andar. Fomos ao olmo e lá havia uma escavação recente, ela já estava no caixão improvisado. Nós a enterramos em silêncio, até que a mulher começou a recitar um texto em hebraico:

- Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer. Tempo de chorar e tempo de rir.

Eu disse no meu coração: Deus julgará o justo e ímpio; porque há um tempo para todo o intento e para toda a obra.

Carlisle disse (também em hebraico):

- Salomão era um homem muito sábio. Eu também gosto muito deste trecho de Eclesiastes.

A mulher o olhou surpresa por reconhecer o texto e talvez pela fluência ao falar em sua língua. Sabia que recitar aquelas palavras era uma forma de passar por aquilo. O conforto que ela tinha de que alguém, em algum momento, pagaria todo o sofrimento imposto àquela menina e ao seu povo.

Ao voltarmos ela parou na escada e disse a mim:

- Seu marido me disse que me levaria a um lugar seguro, onde eu pudesse recomeçar e que proveria os meios para isso. Nunca serei grata o suficiente pelo que estão fazendo por mim e por minha filha. Tinha certeza de nossa morte.

Não sei se tem a intenção de ficar com o menino ou se podem.

Ele passou todo o dia brincando com minha filha, me afeiçoei a ele. Se for conveniente para todos fico com ele. Garanto que ele será bem cuidado e amado como se fosse meu também. Terá amor, carinho, cuidados e uma educação de acordo com nossas crenças.

Antes que eu pudesse reagir, Emmet que estava atrás de mim respondeu:

- Ficamos muito gratos. Seria difícil encontrar uma família para ficar com ele, saber que terá uma família nos conforta. Ouvi os risos dos dois juntos, serão bons irmãos.

Amanhã o meu irmão virá buscá-la, ele a conduzirá até um navio que te levará aos Estados Unidos, outros irão também. Terá um endereço para procurar e dinheiro para que inicie por lá uma nova vida.

Ela nos olhou com os olhos marejados:

- Muito obrigado, muito obrigado mesmo. Nunca poderei agradecer.

Eu disse muito baixo:

- Apenas cuide dele. Faça com que saiba sobre a família que tanto se sacrificou para que ele tivesse o direito de viver. Principalmente sua irmã, como ela foi corajosa e cuidou dele com amor em tempos difíceis. Se assegure que ele não desperdice sua vida, que honre a vida e a morte de sua irmã.

Depois que ela subiu em direção ao sótão com as duas crianças, Emmet me pegou pela mão e me conduziu à floresta ao redor de nossa casa. Ele não falou nada no caminho, apenas corria e eu o seguia. Depois que paramos, ele tomou meu rosto em suas mãos e me beijou ternamente. Não sei quanto temo se passou, a sensação de estar em seus braços comprometia minhas percepções. Ele rompeu o silêncio, falando com gravidade:

- O que fez foi arriscado e desnecessário. Não podemos nos envolver assim, sabe disso.

Eu me irritei com sua falta de compreensão e gritei:

- Deixei bem claro que não queria vir, minha vida estava ótima na península Olympic. Eu estava feliz e segura, podia te ver todos os dias, passávamos quase todo o tempo nos amando. Não via mulheres sofrendo, possivelmente violadas, ou crianças morrendo naquele estado deplorável. Não me lembrava todo o dia o que é ter medo, não sentia mais medo.

Sussurrei a palavra medo no fim, a sensação era que brigar com ele tinha tomado as últimas forças que me restavam depois de um dia tão exaustivo. Eu estava emocionalmente em frangalhos.

Ele virou-se para o outro lado e ficamos mudos novamente. Sentia o veneno queimar minha garganta, não acreditei que ele pudesse me condenar por ser humana. Nesse dia eu fui plenamente humana, senti medo e tristeza, isso era fato. Mas senti por aquela menina emoções humanas, as melhores eu acho: empatia, ternura, misericórdia, afeto, solidariedade.

Acho que nem em meu tempo como humana pude experimentá-las com tamanha intensidade. Não era isso que esperavam de mim? Que eu me comportasse de forma mais humana? Que eu fosse mais sociável e serena? Como agora podiam estar me condenando?

Pensei no bebê, queria ir ao sótão e carregá-lo, queria protegê-lo. Mas isso não era possível, eu não era boa o suficiente para ser sua mãe, ou de ninguém. Eu era uma vampira, imutável, estagnada no tempo, condenada a eternidade com este corpo e essa natureza selvagem e instintiva.

Ele se aproximou novamente, tentou tocar meu braço, mas eu me esquivei. Ele me olhou e eu desviei o rosto. Depois corri floresta adentro, podia senti-lo em meu encalço, mas não olhei para trás.

Senti o cheiro de herbívoros, desviei minha rota para um córrego perto e me lancei para o maior cervo do bando. Eu o devorei em segundos, os outros tinham se afastado pouco quando terminei. Por isso consegui alcançar mais um macho e o bebi também. Mas caçar não aplacou minha ira, eu usei toda a minha força para esmurrar a árvore com o tronco mais largo. Ela se quebrou com facilidade, mas não me satisfez. Então eu gritei, o mais alto que pude, um grito dolorido e desesperado.

Ele enlaçou seu braço ao redor de meu corpo, me prendendo em um aperto de aço. Estava tão furiosa, que não senti sua aproximação. Eu tentei me desvencilhar debatendo meu corpo entre seus braços, mas não era possível. Então cedi, ao seu abraço e ao choro que controlei todo o dia. Ele me virou para que eu me abrigasse em seus braços. E eu enfim chorei com vontade. Depois que o pranto cessou, ele me obrigou a olhá-lo e disse:

- Sei que não é o que desejava, que preferia a nossa outra vida. Também sinto falta de estar sempre com você. Mas precisa enxergar mais que o seu umbigo, o que estamos fazendo aqui é importante. Devia ser menos individualista.

Eu sabia o significado daquelas palavras, ele disse que eu era egoísta. Eu sentia o sofrimento dos outros, estava fazendo tudo que me pediam, era gentil com as mulheres que chegavam, suportava sua ausência. O que mais eles queriam de mim? No que estava falhando?

Não disse nada, apenas me afastei dele e baixei minha cabeça. Ele prosseguiu:

- Quando disse que foi desnecessário, quis dizer que você não precisava sofrer tanto. Não podemos nos apegar, não pode ser mãe deles, não são como nós. Não queria que se machucasse, ou sofresse. Só isso.

Eu controlei a ira para responder:

- O que você queria que eu fizesse? Deixá-la morrer só?

Não foi a menina que me fez sofrer, eu sofro por estar aqui.

Por ver todas essas mulheres e seus sofrimentos e ser invadida pela memória de meu sofrimento. Você está em movimento, sempre fazendo algo, adorando a companhia de Edward, eu fico aqui só.

Eu as ouço chorar, gemer, se maldizer. Eu assisto o isolamento.

Me desculpe se isso é egoísmo de minha parte. Se isso significa que só vejo meu umbigo.

Mas não acho que devo ser obrigada a assistir esse sofrimento, não acho um absurdo querer voltar para casa, me sentir segura novamente.

Eu não esperei sua resposta, voltei correndo para casa. Ao chegar lá percebi que Esme olhava a janela apreensiva, ela sorriu aliviada ao me ver. Carlisle se aproximou de mim e segurou meu rosto pelo queixo, depois me elogiou:

- O que fez hoje foi heróico, mais até do que resgatá-los. Sabe disso, não é?

- Devia dizer isso ao Emmet. Eu retruquei com um péssimo humor.

- Como sempre, um doce de pessoa. Não é Rose?

Só então me dei conta do telepata sentado no sofá. Esme me olhou com pena, mas eu não respondi a ele. Emmet chegou logo depois, e sentou-se ao lado dele. Eu ia subir, mas Carlisle me deteve, colocando sua mão em meu ombro.

- Precisamos tomar uma decisão. È importante que fique.

Ele tentou ser gentil. Eu pensei:

- “De que adianta, não serei ouvida mesmo.”

Edward sorriu.

PDV Edward

- “De que adianta, não serei ouvida mesmo.”

Rosálie pensou e depois sua mente foi tomada por imagens de si mesma. Ela pensava em como era ainda mais bela, se comparada às humanas em tempos de guerra. Ver sua mente era tão monótono, ela era um lago raso. Por isso eu fazia o máximo para ignorá-la.

Emmet começou a falar:

- Identifiquei um problema ainda maior, existem algumas crianças perdidas nas florestas. Foi o caso da que morreu.

Elas estão sós, não tem a menor noção de orientação, vivem a margem de vilarejos, roubam comida quando podem, mas a maior parte do tempo comem o que encontram.

Estes órfãos que encontrei comiam um coelho cru, eles estavam sujos de sangue. A menina fez xixi nas calças quando me viu de tanto medo. A mulher olhou com nojo, acho que não faz parte do cotidiano alimentar dos humanos, comer animais crus.

Emmet tentou deixar o clima mais ameno. Ele sempre seria ele mesmo, ainda que as circunstâncias fossem horrendas.  Continuou:

- Sei que o que estamos fazendo é importante, mas acho que deveríamos nos concentrar em tirá-los da floresta.

Para isso precisamos da ajuda de vocês, Esme e Rose.

Elas precisam ser acolhidas em casas o mais próximo possível de onde estejam. Não resistem a viagens longas, vejam o que aconteceu a menina.

- Mishka.

Esme o corrigiu, tentando lembrá-lo de que era uma pessoa. Rose virou-se para ela ao ouvir o nome. Ela se concentrava em pensar em como era bonita e se dirigiu para o espelho sobre o console para ver seu reflexo. No entanto pude ver flashes de uma menina sendo consolada, uma menina de cabelos raspados, pele pálida e ferida, lábios rachados, suando e gemendo. Não reconheci a imagem deveria ser a menina que morreu.

Não acredito que ela usou a referência de uma menina naquele estado para comparar sua beleza. Como ela podia ser tão narcisista a ponto de se regozijar com a enfermidade de uma menina? Eu sinceramente me sentia cada vez mais inclinado a me distanciar dela.

Emmet olhou para Rose e pensou:

- Por isso é tão importante que não se apegue amor, só iremos transportá-los.

- Ela não poderia fazer isso Emmet, não consegue pensar em ninguém além de si mesma.

Eu disse respondendo a seu pensamento, mas ela compreendeu o que o marido estava tentando dizer e pensou que meu comentário era sobre a proposta que ele faria. Então respondeu bruscamente.

- Isso mesmo Edward, não vou participar disto e já estou cansada deste lugar. Quero voltar para casa. Aliás, nunca deveríamos ter partido, odeio este lugar.

Esme me olhou severo, ela raramente fazia isso. Pensando bem, nem mesmo em minhas piores brigas com Rose ela me olhou daquele jeito. E pensou com a mesma severidade:

- Não fale do que não sabe e não pode avaliar. Só por que lê pensamentos, não é habilitado para julgar as atitudes. Retrate-se com sua irmã.

Eu permaneci mudo. Ela olhou Rose com pena e eu pude sentir a dor que ela sentia. Ela foi muito cautelosa com seus pensamentos, mas pude ver uma imagem distorcida, uma imagem humana. Um bebezinho morto, envolto em uma rebuscada manta bordada a mão, e um pranto. Levei um tempo para perceber que era a voz humana de Esme. Ela estava se recordando da dor de ver seu filho morto. Não entendi o porquê do pensamento, mas ela insistiu na sua conversa silenciosa comigo:

- Filho, por favor, tente ser menos severo com ela, não sabe o quanto está se esforçando.

Ela aceitou vir conosco e está cumprindo sua parte. O que disse foi cruel e desnecessário. Se ouvisse o mesmo sobre você se sentiria magoado, ela também tem sentimentos. Mesmo que não acredite nisso, ou ela demonstre.

Se não por ela, por mim. Por favor, Edward, se retrate.

- Desculpe-me Rose. Esme acha que fui muito severo, ela acredita que tem sentimentos e não devo feri-los. Se os feri, me desculpe.

Não pensei muito em Esme ao responder. Senti a tristeza dela pelo que disse. Ela considerou que ao invés de me desculpar, reiterei minhas ofensas. Minha mãe me fitou com olhos marejados por lágrimas que seriam vertidas se não fosse vampira. Ela virou o rosto na direção de Rose e pensou:

- Não foi isso que pedi. Foi ainda mais injusto. Ela também é minha filha, e eu a amo. Não gosto quando as pessoas que amo estão sofrendo.

Eu baixei a cabeça envergonhado por ter magoado minha mãe, senti os olhos de meu pai sobre mim. Então eu disse:

- Desculpe-me por tudo que disse, de verdade Rose. Falei sem pensar.

Eu não tive coragem de encará-las (Rose ou minha mãe), mas o olhar de Carlisle era de repreensão. Continue Emmet, ele ordenou sereno:

- Penso que devemos nos estabelecer na Polônia, é onde elas estão concentradas. Levamos as crianças para nossa casa, os escondemos ou fingimos que são nossos filhos. Quando estiverem fortes o suficiente, podemos fazer viagens até lugares onde estejam seguros.

Rose subiu virou-se em direção às escadas. Esme olhou-a e ela respondeu:

- Sei que não serei ouvida, farão o que considerarem conveniente. Só quero deixar bem claro que não irei cooperar como fiz até agora. Especialmente tomando conta de crianças. Você sabe minha opinião Emmet.


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