Quarto 402 escrita por Yuna Aikawa


Capítulo 1
Uma Noite de Chuva




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/117465/chapter/1

                A chuva soava forte contra o parabrisas do carro. Fazia poucas horas que Matthew Halen havia entrado na rodovia, e já se arrependera de ter deixado sua cidade natal. Mesmo que estivesse lá somente para o enterro de sua mãe e não tivesse lugar para ficar, era melhor ter parado numa lanchonete e esperar a chuva passar do que se aventurar entre as gotas insistentes do céu.

                Amaldiçoou sua religião quando o rádio começou a ganhar os ruídos típicos de interferência e, como se a escuridão da noite não bastasse, o tempo não lhe deixava ver as placas mal iluminadas na pista. Matthew respirou fundo e agarrou sua carteira de cigarros, pronto para se sufocar com a fumaça que faria em sua BMW. Já estava em sua segunda dose de nicotina quando avistou, com certa dificuldade, um prédio.

                Foi se aproximando até conseguir ler a placa com o nome do hotel. Uma placa ligeiramente suja, com muitas letras apagadas e nenhuma luz. Sorriu para si, como poderia ter tamanha sorte? Estava quase parando no acostamento para esperar aquela chuva que provavelmente duraria a noite toda.

                Fez uma breve reza para que o hotel fosse melhor do que a placa e estacionou em frente à entrada. Uma última tragada no cigarro foi necessária para encher-lhe de coragem para sair do carro e enfrentar poucos metros de água.

                O rapaz teve uma entrada triunfal no estabelecimento. Estacionou há apenas 3 metros da pesada porta de madeira e vidro, mas esses três metros foram o suficiente para encharcá-lo dos pés a cabeça. O recepcionista sorriu para ele, esticando-lhe uma toalha de rosto que sabe-se Deus de onde havia saído. Matthew não pensou duas vezes em aceitá-la.

- Obrigado.

- Imagine, rapaz.

- Uhn... – Matthew pousou a toalha sobre os ombros, analisando o homem a sua frente – Um quarto, por favor.

                O recepcionista era gordo, tinham um cheiro doce e seu cavanhaque era torto. Tinha os cabelos presos num rabo-de-cavalo e estava usando uma regata branca, manchada de algo que parecia graxa. Pousou o jornal local que estava lendo no balcão e entrelaçou os dedos sobre ele, exibindo uma enorme aliança de ouro.

- Você deu sorte, rapaz – Sorriu – Só temos mais um quarto vago hoje. Parece que a chuva pegou todos desprevenidos. 

                “É realmente muita sorte”, pensou, evitando puxar qualquer tipo de assunto. O recepcionista tocou uma pequena sineta que guardava sobre o balcão escuro, chamando uma camareira ligeiramente mais jovem e muito loira.

- Leve-o até o quarto 401, Alice.

                A garota sorriu para o hospede e lhe pediu educadamente para segui-lo até a escadaria de madeira, onde subiram três lances. Alice tirou um molho de chaves do bolso de seu avental branco que, de um modo sugestivo, marcava-lhe bem as curvas, e abriu a porta.

                Não era o melhor quarto do mundo, mas, para a ocasião, parecia perfeito. A cama de solteiro acompanhava a parede da esquerda; o criado mudo, preenchido com uma bíblia, uma chave “401” e um telefone, ficava sob a janela quadrada, que tinha vista para a rodovia. Havia uma porta que Matthew supôs que fosse o banheiro, onde um pequeno espelho retangular estava preso à porta.

- Bem, senhor – Alice já estava se retirando do quarto – Trago-lhe suas toalhas em breve.

- Tudo bem.

- E, outra coisa, senhor – A loira fez uma pausa, como se fosse revelar a localização do Anel, mas seus olhos verdes brilhavam preocupados – O quarto ao lado, o 402... Por favor, não vá até ele.

- Por quê?

- Apenas não vá.

                Aquele era, sem dúvidas, um pedido estranho. Matthew resolveu segui-lo, estava cansado demais, irritado demais. Tirou seus sapatos e se jogou sobre a cama, sentindo o terno molhado ceder à gravidade. Não se passaram nem dez minutos e Alice já batera novamente na porta, anunciando as toalhas.

- Apenas entre – Fora quase um sussurro.

- Com licença.

                Matthew apenas a olhou de relance, mas pode notar que o avental havia sumido. Antes, apenas notara que seu quadril era acentuado, mas agora podia admirar as coxas da jovem sem nem se levantar da cama – obrigado, Senhor, por inventar a saia justa. Alice sorriu mais uma vez, um sorriso doce de dezenove anos, deixando as toalhas brancas aos pés da cama e logo se retirou do quarto.

                O rapaz pensou em tragar mais um cigarro antes de tomar um banho, mas o cansaço foi mais forte, e logo adormeceu naquela posição desconfortável. A noite passava sem pressa, com a mesma chuva insistente que prendera Halen ali.

                Um raio, seguido de um estrondo.

                Matthew acordou na hora, reclamando algo sobre não estar sentindo seu braço. Percebeu que as roupas ainda estavam úmidas e sorriu sem graça ao pensar que poderia adoecer e, com isso, tornar sua viagem de volta pra casa um festival de espirros e lenços. Levantou num suspiro, juntando as toalhas sobre a cama.

                Uma única encarada no pequeno espelho retangular foi o suficiente para saber que, além de precisar fazer a barba, aquelas eram olheiras de gripe. Deixou escapar um palavrão entre os dentes enquanto abria a porta do banheiro.

                Era um cômodo realmente pequeno, de um branco de doer os olhos em contraste com as paredes azuis do quarto. Possuía uma pia embutida na parede, em frente a privada, com apenas uns 20cm entre os dois; e, ao fundo, um box minúsculo com um chuveiro de plástico. Papel higiênico? Talvez fosse preciso pedir na recepção.

                Mas nada disso importava para o rapaz. Matthew largou suas roupas sobre a privada, imaginando que teria que dormir nu já que não trouxera uma muda de roupa, e lavaria seus cabelos negros o sabonete da pia mesmo.

                Halen sorriu com toda a ironia que ainda lhe restava quando apenas água fria caia do chuveiro. Irritado, vestiu sua calça novamente, disposto a ir até a recepção, solicitar a porcaria da água quente, mas se deteve assim que pôs seus pés para fora do quarto.

                Ele era perito em reclamar, mesmo que isso significasse usar seu vocabulário chulo, mas algo lhe prendeu a atenção naquele corredor escuro: uma luz. A julgar pela hora, seu quarto deveria ser a única fonte de iluminação ali, mas se surpreendeu ao ver que o quarto ao lado, o tão temido 402, também deixara suas luzes acessas.

                “Não vá ao quarto ao lado”, lembrou. Por um momento, pensou em apenas seguir o seu caminho até a recepção e ignorar aquilo, mas estava instigado demais, curioso demais. Pousou a mão sobre a maçaneta e a forçou, mas a porta estava trancada. Não satisfeito, aproximou seu olho da fechadura.

                Matthew sabia, como qualquer pessoa no mundo, que espiar era feio, errado e infantil, até pensou em parar na metade do caminho, mas quando deu por si, estava observando o quarto 402 como um todo.

                Era um quarto branco, sem cama, sem janela, sem armário ou criado mudo. Havia apenas um colchão no chão e, ao seu lado, uma garota. Primeiro Matthew pensou que deveria ser a filha do recepcionista ou qualquer coisa assim, até perceber que não sabia dizer que era uma menina ou uma mulher. Parecia alguém muito bonito, com seus longos cabelos castanho-escuro espalhados pelo chão, pele de porcelana e vestido vermelho. A pessoa estava de lado para a porta, em direção ao quarto 401, com seu olhar fixo em qualquer coisa na parede do fundo, onde deveria ter, pelo menos, uma janela.

                Ele quis bater na porta, apenas para perguntar se ela estava bem, se precisava de alguma coisa, mas decidiu não fazer isso. Primeiro, estava apenas trajando suas calças sociais, depois, eles eram completos estranhos, e ninguém aceita ajuda de estranhos.

                Deu ombros, dirigindo-se até a recepção onde, depois de acordar três funcionários, conseguiu que ligassem o gás do prédio. Com seu precioso banho quente tomado e o corpo devidamente seco, o rapaz teve seu merecido resto de noite sobre as cobertas.

                Acordou mau-humorado, com o sol batendo em seu rosto. Soltou algumas palavras chulas sobre aquele tempo estranho, mas, intimamente, agradeceu pela chuva ter passado. Levantou-se sem pressa, imaginando em que lanchonete a beira da estrada deveria parar para tomar seu café-da-manhã. No fim, decidiu que isso não importava.

                Vestiu-se, deixando a gravata vermelha e o terno risca-de-giz de fora. Deu uma última olhada para o quarto, a fim de confirmar que não estava esquecendo nada, mas, como não trouxera nada, seria difícil ter algo para esquecer.

                Trancou o quarto e, quando estava deixando o corredor, resolveu dar mais uma espiada no quarto vizinho. Desta vez, para o seu espanto, estava tudo vermelho. E não um vermelho qualquer: um rubro escuro, opaco, morto, quase um carmim.

                “Que estranho”, pensou consigo mesmo, “será que a jovem notou que estava sendo espionada e resolveu tampar a fechadura com alguma coisa?”. Matthew nunca fora discreto, então seu raciocínio parecia coerente. Achava uma pena não ter sua curiosidade saciada, mas decidiu que isso não era da sua conta mesmo.

                Não, aquilo poderia não lhe dizer respeito, mas ainda assim, ele queria saber. Desceu rapidamente as escadas, ignorando o ranger dos degraus, e logo encontrou o recepcionista no seu posto.

- Bom dia, rapaz – Cumprimentou.

- Bom dia, senhor.

- Dormiu bem? – Uma pergunta apenas por educação, óbvio.

- Ah, maravilhosamente bem – Sorriu – Apenas fiquei curioso, senhor. Quem é a garota do quarto 402?

- Quarto 402? – O recepcionista parecia surpreso, talvez até nervoso – Você foi lá, rapaz?

- Não cheguei a entrar no quarto, apenas espiei pela fechadura – Confessou.

- Ah, rapaz... Não deveria ter feito isso!

- Por quê? – Matthew sabia que não agira certo, mas a curiosidade, a maldita curiosidade, lhe dominara por completo.

- Bem... Antes deste prédio ser um hotel, morava aqui um homem, sua esposa e suas duas filhas. Não se sabe exatamente o que se passou pela cabeça do homem, talvez tenha achado que a esposa o traia, e ele matou sua família.

                “Os jornais falaram que uma das crianças foi encontrada pendura na árvore dos fundos, a outra estava esquartejada sob as escadas. O homem foi encontrado na cozinha, com uma faca na garganta, mas a mulher, bem...”, ele deu uma pausa, encarando a estampa de Mickey Mouse da própria camisa, “parece que ela foi assassinada naquele quarto, mas ninguém nunca conseguiu abri-lo. Ainda hoje se acredita que ela está lá, com o mesmo vestido vermelho que usava no dia. Alguns dizem que o fantasma da mulher assombra aquele quarto. Dizem que ela parece uma pessoa bem comum, apesar de sua palidez de olhos cor de carmim.” 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Vamos explicar pra quem não sacou a brincadeira:
Na segunda vez que Matthew foi espiar o quarto, aquele vermelho era o olho da mulher, espiando-o 8D