Estrela Solitária escrita por AnaYukina


Capítulo 9
Capítulo 7: Hora de Dormir


Notas iniciais do capítulo

Pato,Malu,e todos os que estiverem lendo:os próximos capítulos podem demorar um pouquinho pq esses eu já tinha escrido e publicado em outros fóruns!Vou fazer o possível para mantê-los interessados,obrigada!^^



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Capítulo 7: Hora de Dormir


"Guarde seus medos para você mesmo, mas partilhe sua inspiração com todos" (Robert Stevenson,poeta escocês)


Seis dias depois,Reiko Fujiwara tinha despertado,exatamente às 23 horas e 17 minutos.Assombrada pela angústia dos gritos que suplicavam por socorro,a dupla de enfermeiros avançara em ritmo desenfreado pelo corredor,lutando contra o assalto implacável do nervosismo.

Haviam escutado sons semelhantes na ocasião de um monstruoso ataque terrorista perpetrado por youkais num prédio do distrito de Odaiba:as vítimas,ao sentir sua presença em meio à fumaça escura e ao cheiro de carne assada,pensavam tratar-se dos algozes;Porém,ao reconhecê-los como fonte de salvação,desesperavam-se ainda mais,pois conforme a chance de escapar da morte aumentava,as dores pareciam intensificar-se,tornando-se,para seu senso perturbado,um alarme sinistro de que a ajuda seria inútil...desde então,à um daqueles profissionais era impossível ouvir várias vozes ao mesmo tempo e principalmente,gritos:era como se estivesse de volta à um inferno onde mortos-vivos buscassem pelo conforto de suas mãos...

Reiko usava uma aparelhagem completa para contenção de energia, portanto, bastou que a prendessem ao leito usando amarras sobrenaturais.Cinco minutos depois, Gaspard Murakami chegou carregando a sua ‘extraordinária maleta mágica’.

Nos três dias seguintes, o mesmo fato ocorreu: a paciente queixava-se de insuportáveis dores na cabeça, no pescoço, e um extremo calafrio, sempre no mesmo horário, durando de dois à três minutos.Os meticulosos exames realizados nada constatavam, tanto física quanto espiritualmente, embora a maioria do staff julgasse que suas origens eram desejo de atenção e o farejo de uma encrenca ‘do cacete’.No íntimo, ninguém a criticava: Ryuji Otake,o comandante da Guarda Expedicionária,aguardava ansioso por melhoras...

Na madrugada de seu nono dia como interna,ela permanecia desperta,fitando a brancura da parede enquanto suas pernas encolhiam-se debaixo do lençol.Os dedos das mãos estavam dobrados,suando apesar do clima fresco de ar condicionado.
Desde criança,jamais dormia quando chegavam a noite e a madrugada:ouvia estranhos barulhos e até algumas vozes,a matilha misteriosa de sensações sufocantes rodeava-lhe!

No quarto daquele centro médico fedendo à limpeza e impessoalidade, não havia livros,música e filmes para distrair.Ainda que estivesse inspirada para escrever,teria de fazê-lo em meio à tensão e agonia de seus pensamentos.

Deveria sentir-se mais segura entre as pernas do Reikai,mas sabia que tipo de barra teria de segurar no próximos dias...primeiro,fora tratada clinicamente...à seguir,vinha o inquérito...

“O pior é que,desta vez,aquele porra do Otake terá razão...!Deus do céu,mas que grande cagada,QUE GRANDE CAGADA!”

Já pensava em todos os argumentos que pudessem defendê-la.Seria capaz de matar só para trocar uma palavrinha com seu avô e Koenma.

Os exames médicos foram apenas o início de toda a merda em que estava prestes a mergulhar:não que a equipe científica fosse grosseira,muito pelo contrário,eram tranqüilos—embora a excessiva condescendência de alguns a irritasse—e profissionais,mas ouvi-los dizer coisas como ‘Ki maligno’,‘nível de perturbação’,‘contenção preventiva benéfica’ e ‘observância preliminar para pesquisa e visualização plena’,ter de fazer testes e verificações do estado espiritual e psíquico vestindo desengonçados trajes especiais,cercada por monitoramento,simuladores de distúrbios sobrenaturais,submeter-se à levantamentos detalhados referentes à saúde mental e funcionamento do cérebro,recolher amostras sanguíneas e energéticas,receber agulhadas nas veias três vezes por dia,participar até de lutas ensaiadas diante de todos para acompanhamento de seu estado biológico (“Fujiwara,olhe para os meus dedos...agora vamos estudar até que ponto a velocidade...a resistência...e o potencial agressivo foram afetados,ok?...pode chutar,querida,isso mesmo,muito bom,obrigado,você foi ótima!Venha aqui,suba,vamos correr juntos,no mesmo ritmo,cuidado para não cair,relaxe,que tal cantarmos sua música favorita?) e,finalmente,fazer tudo isso de forma quase atrapalhada,tentando ser cooperativa sem cair no ridículo,a fizera sentir-se um camundongo de laboratório que acabara de desvendar os enigmas do alfabeto.

“Tomara que o Koenma pegue os resultados e relatórios antes do Otake!”Reiko não duvidava de que o comandante seria capaz de manipular testemunhos e adulterar os documentos se o risco fosse compensado pela sua desgraça total.“Esta merda de Ki maligno...o que eu vou fazer?Pense,pense!Não foi intencional...aconteceu porquê vi Kaoru morta...é uma coisa que afetaria qualquer pessoa normal...isso denota sensibilidade humanitária...Otake jamais procurará soluções,ele vai partir para o ataque...no meu caso,posso usar estas travas de segurança para o resto da vida...”De repente,a matilha rugiu ao seu redor.“Para o Makai não vou,de jeito nenhum!”

Ela já não estava certa se gostava tanto assim de seus poderes.A idéia que sempre cultivara—momentaneamente o único modo de afrontar ‘titia’ Kendara—de visitar sua terra natal em tempo adequado,agora lhe causava horror.

Na infância,Kenichiro Fujiwara contava-lhe estórias sobre o Makai em forma de exóticos e interessantes contos de fada que se fundiam com sua realidade clandestina.Tal como uma criança deixava de acreditar no Papai Noel,há muito Reiko deixara de considerá-los um entretenimento agradável.

Nas primeiras noite e madrugada de consciência,pensara em Kaoru Motomiya,chegando a construir uma conversa que jamais teriam.Logo desviara-se destas reflexões,pois tinha uma finalidade à curtíssimo prazo:salvar sua própria pele,além de descobrir a proveniência das misteriosas dores.

De repente, um movimento muito suave chamou-lhe a atenção.Sem perceber, ela sentara-se na cama, em alerta.

A porta se abria, revelando um vulto masculino de jaleco branco.Os resquícios de luzes que vinham do corredor e das lâmpadas externas através das persianas sombreavam e clareavam o ambiente como numa pintura de Caravaggio.

—Senhorita Fujiwara...ainda sente algo ruim,correndo dentro de você?

A inflexão era grave e paciente, feito à de um jovial aristocrata.

—Dentro e fora,doutor...

Reiko fora tomada pelo desgaste,de tanto ser testada e examinada.Seu estômago vazio não reclamava a comida que dispensara horas antes.A tontura e a náusea tornavam-na aborrecida, enquanto a cabeça latejava ligeira mas insistentemente.Os músculos e ossos pareciam indecisos entre o relaxamento e a fadiga.Sua fala nada mais era do que a brisa rouca de um clima resignado.

—Levará certo tempo até que seu organismo se adapte à contenção de energia...alguns efeitos colaterais,coisa pouca,podem permanecer,mas enfim...a senhorita sobreviveu,tinha de restar algum tipo de marca...

Gaspard Murakami adentrou,fechando a porta.Fujiwara percebeu que ele sorria.

—O senhor pode acender a luz se quiser...

—Seus olhos parecem estar queimando um pouquinho?

—Sim...

—De modo que permaneceremos na penumbra.

Havia uma poltrona rígida de couro diante da cama,encostada na parede,sendo que lá ele se acomodou.—Sabe qual o motivo deste calor,senhorita Fujiwara?

—Não,senhor.

—Dizem que o espelho da alma são os olhos...no seu caso,eu diria que se tratam de um escudo.

Reiko recostou-se contra os travesseiros,ainda sentada,olhando na direção do outro.Até aquele momento,tinham mantido apenas conversas curtas,secas de intimidade,na presença dos demais cientistas.

—Porquê?—Ela foi neutra,mas suave.

—Correndo o risco de parecer ridiculamente poético...quando ‘chamamos’ pela sua alma,ela não atendeu...lembra-se de ter ouvido minha voz ecoando em sua mente?

Ela pensou por um instante.—Não consigo.
—Já viu espíritos,senhorita Fujiwara?

—Sim...—Ela pareceu-lhe hesitante.—Em...velórios e...cemitérios...em florestas também...

O rapaz sorriu,condescendente.—O que viu foram almas vagando...espíritos são a força,a essência interior...a alma nada mais é do que um pálido invólucro representativo...

—Eu sei,é que...bem....—O sorriso da menina era muito suave.—...quanta ignorância,essas dores devem ter estragado a minha cabeça...

—As pessoas lá fora duvidam disto...

—É mesmo?

—Como se sente,sabendo que está desacreditada?

Os olhos de Reiko teimavam em cerrar-se,mas ela mantinha-se atenta.—Doutor,estou habituada ao policiamento do Reikai.Só o que sinto é desconforto e dor,inclusive eu gostaria de saber se é possível que...

—É inútil tentar ganhar tempo.Fique à vontade.

—Não tenho porquê fazer isso.—A garota deu de ombros.—Talvez seja alguma reação sem importância,por causa do tratamento...

—Se fosse,eles saberiam...—Murakami inclinou-se para frente,apoiando os cotovelos sobre os joelhos.—Senhorita Fujiwara...tem pensamentos sobre a morte de seus pais?Imagina cenas?Da tortura?Sim,porquê houve tortura,é um ritual obrigatório entre os clãs poderosos do Makai,como deve saber...surgem assustadores sons em sua mente?Você deseja destruir aqueles assassinos sujos?Também constrói fantasias?Sente vergonha,não sente?E bastante medo de si mesma...por dois motivos!Você insiste em acreditar na civilizada justiça,procurando não sucumbir aos instintos fervorosos de violência,de competição...mas aí pensa nestas coisas feias sem querer...tal exercício alivia o seu espírito em diversas ocasiões...é cômodo acreditar conscientemente numa coisa e sentir outra ao mesmo tempo?Já deve ter feito uma avaliação de seus verdadeiros sentimentos e angústias,como fez àquele pobre homem no auditório do colégio...planejava ajudá-lo dando-lhe um bom choque...quanto à você,porquê o seu choque não a desmanchou em cinzas?À cada dia,toma uma pequena porção dele?Alimenta-se disto?E o que dizer então do horror e do ódio...que sente pelos youkais...pelo sangue correndo em suas próprias veias...você tenta fugir dos monstros,tanto interna quanto externamente...se os monstros reais não a devorarem,os de sua mente irão absorvê-la...ficaria muito forte...mas repugnante,em especial para si mesma...

Reiko jamais esteve tão acordada.—Como...?

Mesmo sério,ele carregava em sua voz um quê de urgência bastante suave.—Talvez fosse melhor ter respondido à pergunta de fato,não acha?Em instantes vai detestar que eu saiba tudo isto sobre você...senhorita Fujiwara,seu espírito possui o que chamo de Le feu perpétuel de l'angoisse ...

—O que significa isso?

Murakami percebeu que o timbre agora parecia mais maduro,vencendo a estafa.—O Fogo Eterno da Angústia.

—Encontrou este ‘fogo’ ao apanhar meu espírito?

—Esta conversa não é sobre baseball,portanto,nunca ‘apanhei’ o seu espírito...a essência interior nos fornece imagens difusas na forma de coloridas sensações,músicas e perfumes irreproduzíveis,danças misteriosas jamais coreografadas no mundo exterior,fenômenos naturais que a natureza comum não pode constituir...é um árduo trabalho interpretá-los...a tecnologia reflete o quanto o homem se faz limitado dentro de sua aflita curiosidade...por isso,é conveniente exercitar nossa intra-visão...concorda?

Sem resposta.Ela passara a respirar um pouco mais forte.Erguendo uma sobrancelha, Murakami desconsiderou aquela falta de atitude.

—Portadores da Sensibilité chaude brûlante são movidos por causas pessoais...de acordo com o relatório,você encontrou a moça na mesma noite de sua morte...você não a amava,Reiko...você não gostava dela...você não a conhecia...mas viu naquela pessoa um estímulo,o reflexo de algo incendiando-se em sua fogueira espiritual...aliás,se pudesse esclarecer-me este ponto...o que realmente Kaoru representava para você?—Ele apontava o dedo na direção da outra,muito interessado.—Uma das missões de sua constante luta pela justiça?A mesma justiça que sonha em conseguir para o Sr. Daruya e a Sra. Ayumi?Um dos atalhos até o pote de ouro?Uma das sociedades cuspiu seus pais para fora,a outra os matou!...está tentando transformar o mundo num lugar melhor,onde as pessoas um dia possam aceitá-la ao invés de cuspi-la também?Ou matá-la,seja de que modo for...

—Eu...—Um sintoma de sufocada tristeza e perplexidade pesava-lhe a voz,mas ela resistiu com altivez.—...eu não sou uma pobre coitada hipócrita,doutor,se é isso o que quer dizer...eu acredito...eu acredito que...em vez de...entregar o rabo numa bandeja ao sofrimento...eu acredito que podemos tirar grande proveito dele...e...conseguir fazer...o que é certo...é normal fraquejar...pensar no caminho mais fácil...mas evoluir também faz parte da luta...o processo do auto-conhecimento...ele nos ajuda a vencer...o que há de pior em nós...deve haver alguma coisa ruim que o senhor precise vencer também...dentro de si...não há?

—ISSO MESMO!—Embora num timbre suave,Murakami falou muito alto, entusiasmado,sorrindo abertamente.De forma abrupta,ele havia ficado de pé.—Isso mesmo,srta. Fujiwara!—Então,apresentou-se mais sereno.—Mostre-me através das palavras a fênix que voa pelo seu espírito...ao som da sua voz,como a melodia e a dança juntas,no mesmo espetáculo,a magia se torna completa...tirando a parte do “rabo na bandeja”,foi sublime.

Reiko assentiu,endurecida.—Obrigada.Agora,se não se importa,meu organismo precisa do auto-conhecimento através do sono,doutor...

—Não sou um médico do Ningenkai...

—Como devo chamá-lo?‘O fantástico leitor de espíritos’?

—Todos nós temos um nome.—Ele jamais deixara de sorrir.—O meu é Gaspard Murakami.

—Muito bem,Gaspard...deixe-me,por favor.

—Ainda não...—O cientista aproximou-se,passeando com leveza.—Antes quero dar-lhe algo para se entreter até que a manhã chegue...sei que seu organismo busca melhor o auto-conhecimento quando está desperto...

Ela teve um tremor de raiva e ansiedade.O rapaz sentara-se afastado,na ponta do colchão,fitando-a com seu faiscante olhar.

—Ouça com atenção...—Murakami assumira um ar circunspeto e respeitoso.—Kaoru pereceu graças à uma hemorragia encefálica decorrente de traumatismo craniano...

Ele viu a expressão de Reiko descontrair-se pouco a pouco,envolta pelo pesar.A menina enxugou os olhos com as costas das mãos,fazendo cair gotas...

—Quanto ao pescoço,todas as vértebras cervicais se partiram...lamentável este duplo infortúnio...

—O que mais detectaram?Encontraram evidências de algum tipo de agressão anterior,como abuso sexual?

—A única informação relevante para você é a que darei neste momento:ela morreu na primeira metade das 23 horas...sem dúvida,às 23 e 17,para ser mais exato...agora me diga:porquê as dores daquela moça morta entranharam-se em sua carne cheia de vida?Poderia ser uma espécie de súplica do além...?Ou talvez você pense tanto acerca das dores injustas de seus pais que acabou atraindo as dores alheias,como se fosse um imã solidário...

Ela estava confusa e espantada.Seu olhar perdeu-se pelo quarto,muito longe de Murakami.

—Pensando em seu roteiro de prioridades?Vai precisar de um...

—Espere!—A mestiça rendera-se à tensão.—O que está dizendo...não pode ter nexo...!Nada foi detectado nos exames,se houvesse uma presença sobrenatural externa ao meu redor...

—Isto não se trata do sobrenatural,Reiko,é o seu sentimento ardendo mais uma vez...a solução está no seu caráter,não na ciência...

—Continua me parecendo muito estranho!Sua equipe falhou em algum momento e agora tenta me empurrar estórias estapafúrdias goela abaixo...saiba de uma coisa,Gaspard:além de não ser uma pobre coitada hipócrita,não sou também uma órfãzinha carente que dorme com a foto do papai e da mamãe debaixo do travesseiro...deveria ter elaborado melhor a sua conversa...

—Você está muito agitada.—Ele era um manancial de suavidade.—Passamos das três da manhã...receberá alta antes do meio-dia,e já tem um interrogatório marcado para às duas da tarde com nossa diretora,o Senhor Koenma...e o Comandante Otake...!É tão pouco marcante que ia quase me esquecer dele!

Ela recebeu aquela novidade da mesma forma com que recebera as dores de Kaoru,mas se conteve o quanto pôde.—Eu esperava por isso,e é um puta aborrecimento para mim,se quer saber...mas é imprescindível esclarecer os fatos.—Reiko invocara a presença do avô sem o sentir,na forma de uma de suas frases favoritas.

—Seria bom se conseguisse dormir um pouco...

—Depois destes momentos tediosos que me proporcionou,contando-me coisas sobre mim mesma,que eu já conhecia do verso ao inverso,não será difícil!

—Vou contar uma estória!—Ele adquiriu novamente o breve entusiasmo,com maior moderação.—Conhece Charles Perrault?

—Terei de chamar o Dr. Oikawa para fazê-lo sair?

—Que maravilhosa idéia!Assim podemos todos cantar sua canção favorita!

—Esta estória será a última?

—Dou-lhe a minha palavra!

—Então se avie!

De olhos fechados, Reiko massageou as têmporas com fortes movimentos circulares, mentalizando pausadamente um ‘mantra da felicidade’.Chutar o seu traseiro francês pra longe daqui não faria bem à minha reputação...

—Charles Perrault é o único e verdadeiro autor de Capuchinho Vermelho,ou ‘Chapeuzinho’,se a tradução mais pobre lhe for mais familiar...

A ouvinte abriu os olhos,interrompendo a massagem anti-fúria.—Eu sei quem é Charles Perrault...—Manteve a coluna ereta,descansando os braços sobre os joelhos.—Assim como sei a diferença entre um capuz e um chapéu...

—Gostaria de fazer uma introdução à altura deste conto,por favor...

—Prossiga...

—Os fracos de intelecto nada conseguem aprender...muitos deles tem alta graduação acadêmica!Mas falta ousadia e criatividade,ou seja,são fracos,politicamente corretos porquê basta seguir um manual de regrinhas que não os forçará a trabalhar sua parte no mundo com o arrojo inexistente em suas mentalidades!Essas pessoas nada acrescentam,mas adoram inserir-se nos ricos universos dos outros ou para perturbá-los por puro despeito ou para se aproveitar das migalhas...

—Eu concordo...mas o que isso tem a ver com...

—Até hoje,vários indivíduos sem graça dedicam-se a violentar o estupendo conto de monsieur Perrault...diga-me,conhece a versão original?

Reiko sacudiu a cabeça.—Já ouvi falar que é diferente das modernas...nunca me interessou,contos de fada são estúpidos.

—Sei que não acredita na sabedoria popular...mas certos povos se tornam fascinantes quando brutais consigo mesmos...na França do século 18,os camponeses aterrorizavam os próprios filhos contando-lhes a estória da garotinha que entrava na floresta rumo à casa da avó,levando pão e leite,encontrando durante o trajeto um lobo sedutor...ela revelou à ele o caminho que tomaria...desta forma,ele pôde tomar o outro,chegando primeiro,matando a velhinha...para então recolher seu sangue numa garrafa...e arrumar as fatias de sua carne sobre uma travessa...

Aquilo remetia Reiko aos contos de fada à moda do Makai.Seu avô não era um terrorista contador de estórias,mas sempre fora bastante claro.

—O lobo vestiu-se de avó...imagino que a personagem estava tão segura de si que o tosco disfarce funcionou perfeitamente...por isso comeu e bebeu a carne e o sangue da velha senhora quando lhes foi oferecido...sem estranhar o sabor...deve ter funcionado como uma espécie de elixir da confiança,pois para satisfazer a vontade da fera, a menina tirou todas as suas roupas,queimando-as no fogo da lareira...antes de ir se deitar com o lobo...e ser devorada por ele...

Ela suspirou,apenas interessada.—Puxa...quanta diferença...!

—A estória ficava gravada no imaginário de cada criança camponesa...quando cresciam,restava uma criança dentro de si que fazia ecoar a moral assustadora do conto pelo senso do adulto...penso que algumas crianças interpretavam-na de uma outra forma...o lobo era o vencedor,de modo que seria mais conveniente pensar como ele do que tentar encontrar um meio de derrotá-lo...

—Com certeza modificaram a estória para não traumatizar as crianças...

—E o que elas aprenderam com isso?A esperar pela ação do lenhador,sabendo que não poderiam ser suas próprias heroínas?O que acontece quando não se pode fugir,quando o monstro está diante de nós e somos obrigados a lutar com ele para abrir passagem?

—Eu acho que devemos lutar...mas para vencer...é preciso se prevenir...

—O que teria feito no lugar de Capuchinho Vermelho?

Mantendo uma civilizada altivez,a menina sentiu-se incapaz de definir o modo como seu interlocutor a fitava.

—O lobo...ele...não saberia por onde eu chegaria à casa...eu trancaria as portas e janelas...mesmo que ele chegasse antes e usasse um disfarce...eu o reconheceria...

—Como sabe?

—As paisagens tranqüilas guardam mais perigos do que as tempestuosas.—Outra frase de Kenichiro Fujiwara.—Eu acho que...de acordo com o que você falou...é preciso desconfiar um pouco...de nós mesmos...se quisermos perceber...as coisas do jeito que elas são de verdade...

—Após reconhecer o lobo...como escaparia?

Reiko buscou pelo raciocínio lógico:Murakami não dizia algo sem uma razão apropriada.Ela silenciou por alguns momentos,dissimulando seu desejo de evitar observá-lo.

—Correr...seria inútil...atacar diretamente...seria burrice...

Gaspard assentiu.Havia o esboço muito leve de um sorriso em seus lábios selados.

—Ele é mais forte...—A loira continuou.—Ardiloso...Indecifrável...eu...talvez tivesse de comer...um pedaço da carne e...beber um gole do sangue...

—Porquê?

—Para ganhar a confiança dele...

—Feras não confiam nos demais,Reiko...a caça termina apenas quando estão digerindo a presa...

—Bem!—Ela respirou fundo.—Sendo assim...seria para ganhar tempo...até conseguir chegar perto dele...

—Suas roupas estariam queimando na lareira...e seu corpo vulnerável...

—Eu não tiraria as roupas!—A mente da mestiça trabalhava ansiosamente.—Eu provaria da carne e do sangue...quando ele pedisse que eu as jogasse no fogo,eu diria que estava constrangida...que preferiria tirá-las debaixo das cobertas...

—Acha que ele aceitaria?

—Excitado por causa da caça,com certeza.

—E também pelo seu pudor pueril,continue!

—No momento da prova,eu precisaria de uma faca para cortar a carne...vestida,poderia guardá-la comigo...

—É possível que esta manobra desmoronasse à primeira vista...

—Talvez...se eu conseguisse envolvê-lo...simulando pureza...e ingenuidade...poderia levar o sangue e a carne para a cama...fazer um banquete à dois...a faca estaria na travessa...

—Sob a vista de ambos...ele poderia pegá-la antes de você,ou usar os próprios dentes,sua ferramenta de matador tão secreta e tão visível...

Fujiwara refletiu,muito quieta.—Eu tenho a mesma ferramenta...sem dúvida,ele não contaria com isso.

—Já que estamos falando de um cão de guarda pomposo ao invés de um lobo,sem dúvida.Reiko,penso que você esteja pronta...

Ela surpreendeu-se.—Para quê?

—Está concentrada?Se não,concentre-se agora.

—Pode falar.

—O Comandante Otake garantiu prioridade quanto à abertura do inquérito junto ao Sr. Enma Daiou,de modo que ele presidirá o interrogatório...Mizuki e Koenma poderão ajudá-la de diferentes formas...ela considera o comandante um imbecil nato...mas em nome da ética,jamais lhe dirá algo sobre isto...Kaho é justa e inteligente,sensível ao extremo...no entanto,ela acredita na ordem e no controle como forma de ajudar e organizar...uma postura sóbria e objetiva não vai conquistar seu amor cego,mas uma boa dose de simpatia vale muito...os sentimentos,para Mizuki,devem ser utilizados como acessórios de uma causa maior...do contrário,podem torná-la egoísta,limitando sua visão...

Reiko ponderou,de modo peculiar.—Já conversei com a diretora Kaho.Ela é bastante persuasiva...

—Para o bem de todos,inclusive o seu.

—Por isso ainda não pude ver meu avô e Koenma?

—A diretora convenceu-os de que um brusco reencontro cheio de emoções poderia prejudicar o tratamento,além de passar uma impressão de desespero e imagem conspiratória...em contrapartida,ela forneceu-lhes detalhes sobre o caso...ah,foi um longo debate...

—O que garante concretamente a imparcialidade da mulher?

—Ao contrário do comandante Otake,ela aprecia a negociação e despreza o histerismo.Uma prova disto é o modo como foram introduzidos os nossos métodos em sua rotina diária...se não fosse pela tola Guarda Expedicionária,poderíamos ter memoráveis reuniões sociais!

—Você me diz que ela é justa...mas o sentimento é a base de uma boa justiça.

—De que ‘sentimento’ está falando?O comandante nutre sentimentos por você,e eles dizem que não é justo deixar impune alguém que por pouco não destruiu a casa de uma família e,mesmo sem intenção,atacou um de seus membros...dependendo das circunstâncias,a diretora pode levar em conta as intenções...seu modo de fazer justiça é tridimensional...

—Keiko Yukimura!,ela está bem??

—Engraçado...este nome...não é desconhecido...talvez eu possa recordá-lo enquanto me ouve sem interromper...

—Sinto muito,continue.

—O Sr. Koenma pode complicar as coisas...ele é um homem nobre,mas sonha e idealiza num plano onde se exige ação prática e neutra...na verdade,é uma pessoa forte,que menospreza à si mesma...é fascinado pelo poder e pela autoridade...sendo muito simples e direto, em termos de comportamento e de caráter,ele não se sente à altura do ambiente em que vive,principalmente em meio à pessoas sempre tentando parecer mais importantes e espertas,muitas vezes sem ser uma coisa ou outra...ele não consegue ouvir à própria voz,perdido no desejo de ser compreendido pela gente poderosa e autoritária...ele associa carisma à competência...haverá sempre uma criança ambiciosa mas despreocupada em seu senso...ao invés de perseguir finalidades,ele persegue valores morais almejando uma segurança emocional,e você precisará de alguém muito objetivo...mas que haja de acordo com sentimentos embalados pela prudência...seu avô é o candidato perfeito,mas ele não poderá estar presente ao evento...perante o mundo espiritual,um youkai responde pelos próprios atos por si só...não importa se possui ascendência humana...é considerada a supremacia do instinto demoníaco...

—Eu sei disso!—Fujiwara falou bem alto,repentinamente.—Sobre a maioridade que o Reikai me concede...—Ela se apressou em acrescentar,em tom mais controlado.—Conte-me algo sobre o Comandante Otake,por favor.

—Confio na sua intra-visão...o Sr. Fukuda,aquele da palestra sobre suicídio,ficou impressionado,pelo que me contaram...mas num momento como este,é difícil pensar nos outros...

—O Comandante é um homem poderoso e autoritário só na fachada?

—Há somente uma coisa que você precisa saber sobre ele:o homem gosta de gritar...

—Não pôde se comunicar com meu sentido da audição através do espírito?

—Está certo,já sabe de tudo.—Ele sorriu.—Agora,prepare-se,pois vem a melhor parte...em consideração à sua adorável companhia,permito que escolha o próximo tema da conversa...

—Yukimura!Eu a machuquei?

Murakami observou,estreitando ligeiramente seus olhos.—Você é...uma pessoa bondosa,Reiko...capaz de matar,com certeza...mas não uma mosquinha como aquela!A menina está bem.A lavagem cerebral deixou-lhe apenas tonturas à guisa de seqüela...

—Lavagem...?!Vocês ficaram loucos,não tem o direito de fazer isso!!!

—Gostaria de estar num show de bizarrices na TV,Reiko?Entortando garfos e acendendo lâmpadas com a força da mente?Ou prisioneira de um laboratório secreto do governo humano,servindo de cobaia para estudos...ou passando férias no Makai,com a beligerante família do Sr. Daruya...!Talvez a inquisição fosse ressuscitada pela igreja católica...onde já se viu,não é,demônios vivendo na terra...!

Ela cerrara os punhos,petrificada,cheia de revolta,inconformismo...e temor.

—Yukimura contou o que houve ao nosso pessoal...um relato formidável,mas inconveniente para a manutenção do segredo...basicamente,ficamos deste jeito:Kaoru Motomiya teve uma crise nervosa,arrebentou tudo ao seu redor,agrediu Keiko Yukimura e Reiko Fujiwara,que tentavam impedí-la de cometer um disparate...saltou da janela,fato presenciado por um vizinho defronte...ele garantiu ter visto a moça sozinha,sentada na janela,pensativa...isto contará à seu favor...

Certamente!,ela pensou,com fúria e desespero.

—Mizuki encontrou as roupas de Kaoru,escondidas debaixo de um armário...foi você,correto?

A outra apenas assentiu.Sim,fui eu.Enquanto isso,ela despencava como se fosse um maldito Kamikaze!

—A diretora ficou muito satisfeita!Bravo,Reiko!Evidências importantes foram retiradas dali,já que a família não autorizou a feitura de autópsia...

Reiko reagiu,movida por uma melancólica esperança.—O que retiraram?

—Fios de cabelo...e sêmen...

Em outro momento,Fujiwara teria dado importância ao estranho ar de Murakami.Ele parecia quase desgostoso.

—Oh,meu Deus,ela foi mesmo estuprada...não tinha erro...!Oh,meu Deus...e a polícia,nisso tudo?

—A polícia comum não poderá fazer coisa alguma.O material foi analisado,e descobrimos pertencer à um youkai.

Foi como se a vida tivesse deixado Reiko Fujiwara.Seus olhos arregalaram-se.

—Quem é o filho da puta?

—Não há material idêntico em nosso banco...é um estreante.

—Estão investigando,já tem alguma pista?

—O garoto chamado Yusuke Urameshi foi inquirido.Nossos agentes o apertaram ao máximo,até que o Sr. Kenichiro ameaçou sair para lanchar com alguns amigos do Juizado de Menores...graças à isto,seu avô ganhou a confiança do marginalzinho,assumindo o interrogatório com a anuência da diretora Mizuki.Está seguro de que ele não sabe de coisa alguma,embora nós duvidemos...a ficha do sujeito não é das mais limpas...é um notável espancador...talvez conheça o criminoso ou tenha presenciado algum fato...pode estar com medo de abrir a boca.

—Vovô jamais se engana.Ele é muito habilidoso.Além disso,quando encontrei Yusuke com Kaoru naquela noite,observei-os de longe,antes de me aproximar...não me pareceu suspeito...falei com algumas pessoas que estavam por perto,e elas me disseram que Urameshi estava na casa de jogos até o instante em que Kaoru apareceu,andando desorientada pela calçada.Ele a protegeu...de um modo que...acho que foi a única proteção de verdade que ela recebeu...

—Desconfie de si mesma e poderá desconfiar de todos.O indivíduo não merece credibilidade...ele domina toda aquela área sozinho,batendo todos os outros malandrinhos...seria sensato verificar com atenção este filhote de lobo...ele é o mais forte da ninhada,Reiko...de repente,pode conduzir-nos até a matilha...um bom número de seus patrícios transitam pelo seu santuário de recolhimento...você gostaria de vê-los pelas costas antes que eles a vissem,creio eu...especialmente se houver espiões do clã Kadaisha entre eles...

Ela se viu obrigada a reconhecer que ele estava certo...embora não duvidasse da capacidade de julgamento do avô...

Os dois ficaram calados durante algum tempo.Murakami a observava,enquanto a mestiça tentava organizar os pensamentos.

—Reiko...

A garota estava arrasada.Mas firme.—Diga.

—Já leu Hamlet?

—Por favor,pare com isso!

—Eu gostaria mesmo de saber...

—Sim!Eu já li.O que é agora?O livro deixou profundos rastros de lágrimas na minha alma?!

—Você preocupa-se demais,com tudo,o tempo inteiro.Pensa nas palavras dirigidas ao Sr. Fukuda,o do suicídio...

—Não se refira assim à ele,o Sr. Fukuda está bastante vivo.

—Você gostaria de saber se suas palavras surtiram efeito...se ele está se libertando da pressão...acha mesmo que ele é um bom homem?

—Tenho certeza...

—Sabia que a bondade pode enfraquecer muitos de nós com mais rapidez?

Gaspard Murakami se levantou,desejando boa sorte.À seguir,desapareceu através da mesma porta pela qual havia entrado,mas o ambiente já não era o de antes.Tudo estava revolto,como num rio durante uma enchente.

As lágrimas não estavam na alma.Elas vieram de muito perto,caudalosas,para salgar os olhos queimados de Reiko Fujiwara.

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