Estrela Solitária escrita por AnaYukina


Capítulo 7
Capítulo 5 : O último elo




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Capítulo 5 : O último elo


"Os mortos vêem o mundo / Pelos olhos dos vivos" (Ferreira Gullar – poeta brasileiro)


Reiko precipitou-se até a janela.Ao olhar para baixo,uma força totalmente desconhecida capturou sua senso e percepção.Foi como se a imagem do corpo e do sangue juntos sobre o asfalto negro tivesse congelado numa tela que os olhos de sua mente eram obrigados a observar.

Tal como sua telecinesia ganhava impulso próprio,aquela imagem desfragmentou-se de forma abstrata,cada parte se transformando numa vívida sensação.O espírito da menina tornou-se absorto no centro do fenômeno que o envolvia gradativamente.

Dores cruciantes espalharam-se ao longo de seu pescoço e por toda a cabeça,como se estivessem rachando,partindo-se ao meio.Um ar frio corria-lhe entre a pele e as roupas,dando a impressão de queda livre ao redor do corpo.

Os horríveis gritos de desespero não explodiram do lado de fora,permaneceram presos atrás de dentes cerrados.O ‘eu’ psíquico tentava defender-se por conta própria,buscando construir qualquer barreira possível contra a invasão,e na tentativa de enrijecer o espírito,calou o corpo.

Naquele momento,não havia uma só parte física ou mental de Fujiwara controlado por ela mesma.

{...Agora serei bem feliz...}

Sem se dar conta de quanto tempo estivera caída no chão,Reiko sentira a voz fantasmagórica de Kaoru Motomiya assaltando seus ouvidos à marteladas.Seu íntimo exasperou-se.

AJUDA-ME A VENCER!SE O MAL PODE DOMINAR ATÉ A MINHA ALMA,SÓ VOCÊ PODE SEGURAR A MINHA MÃO!

Aquele pensamento surgiu de uma pequena trincheira,nas profundezas da mente conturbada.A persona espiritual de Reiko refugiou-se ali,agarrada à memória da falecida Ayumi Fujiwara.A mãe morta,que ela conhecera apenas através de fotos,objetos e vagas estórias,enfim,segurou sua mão.

Ela ergueu-se,às tontas,sobre pernas trêmulas.Sabia que estava sozinha,mas chutou essa verdade para longe violentamente,precisava do equilíbrio espiritual entre as duas emoções,a que desejava tragá-la e a outra,que a traria de volta ao limite por ser tão poderosa quanto a primeira.

Buscou apoio na cama,na parede,onde quer que pudesse.A lâmpada do abajur estourou,afundando o quarto em escuridão.A luz do corredor!Alcance-a!

Arrastou-se na direção da porta,entalada entre os pesos das dores que carregava.A lembrança da mãe somada ao descontrole sobrenatural imbuiu-a de um louco desejo latente de vingançaEles a roubaram de mim!Vou pegar aqueles filhos da puta!

Antes que pudesse sair,esbarrou na penteadeira de Keiko Yukimura derramando faíscas da selvagem aura de eletricidade oscilante ao seu redor sobre o móvel,fazendo com que este inclinasse para frente,batendo contra o chão,espalhando cacos espelhados.A porta do quarto fechou-se com extrema violência.

Na sala,suas pernas quiseram mais uma vez aprisioná-la.Abajures,um vídeo-cassete,o telefone,mesinhas e seus tampos de vidro,a tigela cheia de creme,o cinzeiro,vasos decorativos,garrafas e utensílios do mini-bar,bibelôs,portas-retrato,trepidavam perigosamente,como que formando uma tempestade.Começaram a levitar,emanando de seus corpos inanimados correntes elétricas de baixo potencial,resultando em compridas rachaduras ao baterem de encontro às paredes.

Uma das caixas de áudio do aparelho de som espatifou a vidraça do guarda-louças,ao passo em que a outra voou pela janela.Um barulho ensurdecedor de risadas e aplausos atingiu-a:o televisor funcionava em altíssimo volume.

As simplórias luminárias responsáveis pela iluminação das salas de estar e jantar piscavam freneticamente,como chamas tremulantes,emitindo sons característicos de curto-circuito e fagulhas brilhantes.O teto era todo forrado de material plástico.

OH,NÃO,DEUS,AJUDE-ME AGORA!

—O QUE É ISSO?!

Era Keiko Yukimura,transtornada,no meio do caminho.Gritara de susto e pavor ao sentir mãos invisíveis agarrando-a e somente o ar debaixo de seus pés,mas agora estava em silêncio,desfalecida junto ao vaso de plantas artificiais que enfeitava o sopé da parede contra a qual colidira,de costas.

Atrás da porta de acesso ao restaurante da família,o pai de Keiko ouvia o tumulto cheio de angústia,enquanto tentava vencer a estranha compressão que empurrava a porta contra si,apesar desta não estar trancada à chave como já verificara a Sra. Yukimura.

—KEIKO!O QUE ESTÁ HAVENDO?,DEIXE A GENTE ENTRAR!

—FILHA!FALE COM A MAMÃE,POR FAVOR!—Kyoko Yukimura se voltou para o marido.—ARROMBE LOGO ISSO!

—Estou tentando, mas...DROGA!

Ele retirara a mão depressa,fitando a maçaneta metálica,assombrado.Uma considerável descarga elétrica concentrara-se na peça,circulando ameaçadoramente.


***

Minutos antes...

—Um dos satélites acaba de captar manifestação sobrenatural...—O patrulheiro largou a lata de Pepsi,nervoso,sem se importar com o conteúdo que molhava o piso.—...à noroeste da Baía de Tokyo!

—Rastreie a localização exata e o nível de periculosidade,vamos!

A diretora do Serviço de Inteligência do Reikai posicionou-se diante da imensa tela central,onde visualizava o território japonês na forma de um mapa desenhado em linhas digitais.

Diretamente do próprio terminal,o patrulheiro Kosugi comandou destaque à região selecionada,reproduzindo virtualmente,em todo o espaço das duas telas,a Província de Tokyo,designando na superfície da reprodução os 23 bairros,as 39 cidades,e vilas adjacentes que a constituíam.

—O sinal vem do centro...—A região dos 23 bairros tinha sido ampliada.—Distrito de Sarayashiki!

—Kousa,verifique se há cadastros nessa área.—Ordenou a diretora Mizuki Kaho,à subordinada mais próxima.

—Encontrei,senhora!—A patrulheira respirou aliviada.—Arquivo 1742905,Fujiwara,Reiko,Tutela Especial de Ser Mestiço.

—Ela saiu de casa esta noite?

—Um momento...afirmativo,senhora.

—Nível de periculosidade Amarelo Médio.

—A manifestação apresenta severa inconstância em seu potencial destrutivo,gerando ondas dispersas de energia,ou seja,não há preferência por alvo...e ali,vemos sinais de alterações fortes mas intrínsecas no aspecto mental,se houvesse intenção de batalha o biológico estaria em maior ou igual atividade...no espiritual encontramos indícios de incompatibilidade fonte/resultado,vejam as amostras nos demonstrativos dos monitores B e C,os gráficos apontam abalos na capacidade produtora e inibidora,como se o espírito escapasse do corpo e estivesse desorientado,sem saber de que jeito voltar,reagindo à tudo em que esbarrasse...provavelmente se trata de um distúrbio telecinético involuntário com participação reduzida do Ki maligno.

—Ainda está verificando os endereços,Ikki?

—Rua Baramui,número 14,quadra 5,proprietário:Jyou Yukimura!

Palmas para o Registro Preventivo de Região Incauta!Os endereços de todos os locais do bairro já freqüentados por Reiko Fujiwara estavam armazenados nos satélites e no banco de dados do SI.

Detectada a presença da energia sobrenatural numa determinada área,foi só buscar entre as possibilidades o ponto exato,através do radar de curto alcance que se desprendeu do satélite e sobrevoou a área ‘infectada’ sob as devidas coordenadas enviadas pela base.

Mizuki Kaho dirigiu-se ao Portal de Comunicação,deslizando os dedos sobre as teclas virtuais.As informações detalhadas do detector e um relato preciso foram transferidos para o aparelho,sendo enviados em questão de segundos pela diretora ao Setor de Inspeção e Espionagem.

—A senhora acionou a Guarda?

—Não.Já que estamos mais próximos e o perigo dispensa ação ofensiva, vamos cuidar disso.

O Serviço de Inteligência era muito cobrado: entrava em cena antes mesmo do Detetive Sobrenatural e da Guarda Expedicionária, pois coletava dados, localizava emergências, remediava anomalias, controlava situações extraordinárias...a Diretora Kaho estava concentrada na missão,mas carrancuda.

Enma não permita que ela ferre com tudo!

—Rayana!Contate os agentes na companhia telefônica e mande que desviem para cá qualquer chamada interna dos Yukimura,e que bloqueiem as externas também!

—E se alguém já tiver chamado a polícia ou o hospital?—Indagou o patrulheiro Kevin,enquanto a patrulheira Rayana cumpria a ordem num ritmo sobre-humano.

—Mande um pessoal para interceptá-los,fazer lavagem cerebral,enfim,o diabo!E Kosugi,limpe essa sujeira!

Mizuki Kaho fez muito mais que montar uma operação: ela partiu rumo ao conflito.


***


Yusuke Urameshi tentara pela sexta vez telefonar para Keiko Yukimura,quando,aborrecido,resolvera desistir.Estava muito curioso para saber o que tinha acontecido com Kaoru.Talvez já tivesse ‘abrido o bico’...

De traseiro para cima diante da geladeira aberta,procurou comida.Acabou fazendo um sanduíche com tudo o que havia de comestível.Apesar do absurdo,ficara surpreendentemente delicioso.

Deitado no sofá,assistindo à um bobo show de auditório na TV,tentava não pensar nos acontecimentos recentes.Se houvesse alguma coisa no mundo capaz de angustiá-lo mais do que pensar,adoraria descobrir e ocupar-se disto para se livrar de um mal pior.

Na opinião de Yusuke,em pensamentos a pessoa estava o tempo todo presa.Não dava para garantir que as coisas ficariam bem.Tinha-se de calcular as ações preocupando-se constantemente com o fracasso,remoendo os sofrimentos,tendo de driblar a maldade traiçoeira,aquela que,invisível,espreitava e manipulava.Tudo isso parecia mecânico demais para aquele caráter passional que na vida preferia lutar de peito aberto à jogar debaixo das sombras.

No fim,era só esperar,esperar,esperar...!Ele simplesmente não tinha paciência.Desejava enfrentar todos os problemas do mundo com apenas seus punhos.


***


Naquele ínterim,Koenma e seu assistente pessoal,George Saotome debruçavam-se sobre relatórios enviados pelo setor de pesquisa do Serviço de Inteligência...

—Esses youkais de baixa categoria estão me enlouquecendo...!—O príncipe bufou,angustiado.—Porquê esse interesse em passar para o Ningenkai?!Como diria Reiko,lá não tem nada para eles além de um justo mandado de prisão e um bela marca de pé nos fundilhos...!

—Aqui diz que é por causa dos humanos ricos...—O demônio azul franziu a testa.—...Eles já não sabem o que fazer com tanto dinheiro,por isso recrutam youkais para serviços sujos!

—Não tem nada de concreto,são apenas levantamentos superficiais...!Esse pessoal do S.I. adora encontrar problemas que não existem!
O esculachado mas fiel George reprovou-o com o olhar,mas cheio de preocupação.Nem exibindo a forma adulta ele conseguia controlar sua colossal insegurança,de modo que não enganava aos outros ou à si mesmo atrás da frágil fachada.

—Youkais trabalhando clandestinamente no ningenkai...!À serviço de humanos...!Papai cobrando resultados,mesmo sem termos base para uma investigação oficial...!O S.I. e a Guarda Expedicionária são um bando de ambiciosos megalomaníacos...!Não encontramos candidatos para a vaga de detetive...!E eu estou de mãos atadas...!Deus Todo Poderoso,me acuda!

Ocupado sentindo pena do patrão,George caiu da cadeira quando as portas do recinto se escancararam bruscamente.

—Senhor Koenma!—Uma garota de cabelos azuis acudiu.—Caso de vida ou morte,mais morte do que vida!

O infeliz,que estivera cobrindo o rosto com as mãos,se levantou,muito aflito.—Quer nos matar de susto,Botan,não vê que estamos em reunião?!

A estagiária sacudiu um documento junto ao nariz do herdeiro de Enma como se carregasse uma colméia de abelhas mortíferas.

—A sua reunião acabou!Oh,não pense que sou atrevida,senhor,quem sou eu??,mas ordens são ordens,eu cumpro sem questionar,o senhor cumpre se quiser!,mas não será culpa minha!

George ficou de pé,massageando o braço doído.Koenma esfregava as têmporas,resignado.—Pode jogar a granada!

—Fujiwara,Reiko,ocorrência grave!A Galera Esperta mandou avisar!

Levando um soco imaginário no estômago,ele arrancou o papel das mãos dela e andou pela sala,de olhos arregalados,lendo enquanto era seguido bem de perto por Botan.

—Onde foi isso?!—O rapaz se virou,quase derrubando-a.—Aqui não tem detalhes!,como ela está?O que houve exatamente?O que estão fazendo por ela?É mais grave que das outras vezes?

—É apenas uma notificação!—Botan sorriu,mais calma,solidária.—No final,diz que o senhor deve se dirigir à casa da família Fujiwara,reportar o ocorrido e aguardar junto à eles por notícias!

—Você leu?

—Sim!—Desajeitada,ela riu cinicamente.—Para lhe poupar o trabalho!

O primeiro sentimento de Koenma era uma profunda preocupação com Reiko.Ele avançou rumo à saída.

—George,arquive isso,oh,não!,deixe no meu escritório,na gaveta...não!,melhor deixar em cima da mesa!

—Não há mais espaço,senhor!

—Então fique segurando até eu voltar,que coisa!

O oni ficara para trás,porém,Botan continuava em seus calcanhares.Ao notar,Koenma se assustou.

—Mais alguma coisa?—Ele levou a mão ao peito,sobressaltado.

—Eu posso ir com o senhor?

—Er...porquê?

—Ah,é que eu já fiz os exames para o cargo de guia espiritual,sabe,o resultado ainda não saiu,mas o meu instrutor do estágio me olhou de um jeito tão otimista que com certeza eu vou passar,bem,mas voltando ao assunto,senhor...

—Vamos!—Ele a pegou pelo pulso,gentil mas apressado.

No caminho para a casa dos Fujiwara,Koenma Daiou teve uma vaga sensação de fundo do poço:os estagiários liam sua correspondência,seus subordinados o reduziam à mensageiro,os onis quando não eram impertinentes tornavam-se preguiçosos,todos tomavam sua sensibilidade por frouxidão—talvez seja um frouxo mesmo,ele pensava—e agora,não poderia ajudar a única pessoa que realmente o respeitava!

“A melhor coisa do Reikai é você...nem pense em jogar tudo para o alto.Eu preciso de você no poder,Ko-san.Sem você,sabe lá onde eu estaria!”

A voz de Reiko Fujiwara surgiu da lembrança remota causando o mesmo efeito que o braço amigo de Botan sobre seus ombros naquele momento.Sentir o brilho úmido de seu olhar aborreceu-lhe.


***

Ambiciosos megalomaníacos nunca foram famosos por sua frieza e competência.No entanto,o Serviço de Inteligência do Reikai era uma exceção.

Partindo da delegacia e do hospital mais próximos à ‘zona de conflito’,existiam seis caminhos alternativos,sendo que todos eles foram bloqueados de algum modo pelos agentes.

A viatura chamada por um vizinho dos Yukimura foi interceptada numa das ruas,onde caminhonetes da prefeitura de Sarayashiki,operários,guardas,sinalizadores noturnos,e tapumes de obra vedavam a passagem.O motorista deu marcha à ré,mas foi parado por dois agentes disfarçados.

Após alguns momentos de conversa amigável (“O rapaz disse ter visto uma garota saltando da janela da casa defronte,estamos indo verificar!”),a dupla de policiais foi dominada sutilmente por técnicas de hipnotismo,uma especialidade dos seres do mundo espiritual.

Em outra rota,algo semelhante aconteceu à uma equipe de repórteres do mais sensacionalista dos tablóides do distrito,que subornava os atendentes da delegacia e os próprios policiais em busca de impressionantes desgraças para noticiar em seu,como diria a bem-humorada Reiko Fujiwara,‘substituto imediato de papel higiênico’: “Os trabalhos jornalísticos competentes aderem à nossa memória.Os deles,ao contrário,apenas parasitam a superfície de uma bunda qualquer,acomodada no imundo vaso sanitário de um desses bares que encontramos em becos deprimentes”.

Naquele instante,Mizuki Kaho e um assistente chegavam de carro ao restaurante Yukimura,portanto distintivos frios de detetives da polícia.Olharam rapidamente para o corpo de Kaoru Motomiya,na entrada.Cada um julgou já ter visto coisas piores.

Agora danou-se,Fujiwara!—A diretora do Serviço de Inteligência não se apegou ao pensamento.Enquanto o companheiro acalmava os fregueses,aproveitando para apurar o quanto viram e ouviram,ela procurava o dono do estabelecimento.

Foi então que um barulho de pancadas sobre madeira chamou-lhe a atenção:havia um homem no alto da escada,golpeando a porta com um extintor de incêndio.

—Pare,senhor!O que está acontecendo?

—Minha filha está aí,preciso entrar!

—Tem mais alguém com ela?

Foi a senhora Yukimura quem respondeu:—Uma amiga da escola,Reiko Fujiwara.

—Assim demora muito,afaste-se para que eu possa trabalhar!

Kaho apoiou-se junto ao corrimão,e agarrou o extintor no ar,tomando-o das mãos de Jyou Yukimura.—Não,eu...

—Para baixo,todos vocês,agora!Preciso de espaço!

Usando o artefato de segurança contra o peito do homem feito um suporte,ela empurrou as demais pessoas para fora,tendo as costas dele como se fossem uma larga pá.Ele protestou bravamente,mas foi contido pela esposa e dois fregueses.

—Ela é treinada para isso,Jyou,deixe-a tentar!

—Mandaram uma mulher!Era só o que faltava...!

—Eu acho que não deviam aceitar mulheres na polícia,é um absurdo!

—Calados,imbecis!—A Sra. Yukimura berrou,agarrada ao marido.—Nenhum de vocês conseguiu arrombar essa porcaria de porta...!

A falsa policial parou no meio da escada,de frente para a maldita,segurando o tubo de metal vermelho.

A telecinesia selou a porta...!Se eu tentar arrombar para valer,o choque de energias vai causar uma explosão de pequeno porte,mas impossível de camuflar,que merda!

Então,ela correu para junto da porta,fingindo examinar a fechadura com uma pequena ferramenta e lanterna de bolso.Olhou pela fresta de baixo,com boa uma idéia ardendo na cabeça...

—É impossível abrir!—Ela se levantou e desceu,enquanto Jyou Yukimura subia novamente,desta vez portando um machado que guardava num armário da cozinha de seu estabelecimento.

A mulher teve que saltar os degraus de três em três para alcançá-lo.—Não perca seu tempo,vamos entrar pelas janelas da frente!

—Faça isso!Vou continuar tentando por aqui!

—É melhor tentar pelos fundos ou pelo telhado!

—Já tem gente nossa cuidando disso!

Ela já sabia:vindos de transportes aéreos,dois integrantes do staff estavam dominando,naquele momento,a dupla de ‘gente’ a que o Sr. Yukimura se referiu.As janelas da frente estavam livres:por causa da supersticão que a morte inspirava,ninguém quis ter a idéia de entrar pelo mesmo lugar onde estivera uma suicida pela última vez.

A situação não estava melhor nos fundos da casa,pois uma equipe novata de apoio à paisana pelejava com três homens,que chefiados por um amigo dos Yukimura,teimavam em adentrar por uma das duas altas janelas.

O sexteto protagonizava um insólito jogo de cabo-de-guerra:puxando para direções opostas,cada trio agarrava-se aos degraus da escada de alumínio com selvagem determinação.

—Vamos deixar a lei cuidar disso,pessoal!—Disse um dos agentes,empregando o máximo de força.

—Vocês não ouviram o quebra-quebra lá em cima?!A menina pode estar machucada!

—Se ela estiver,não poderão ajudá-la,não se pode mexer numa pessoa ferida antes da ambulância chegar!—Retrucou o segundo agente,suando frio.

—Largem esta merda!Até parece que vocês têm alguma coisa a ver com a confusão!

—Parem!—O terceiro agente bradou.—Já devem ter conseguido arrombar a porta da frente,não é preciso nada disso!

—Ei...—Um dos candidatos à herói franziu o cenho.—Você é chinês?

O agente assentiu.—Sim,de Macau.

—Ah,um covarde acomodado!E falando com esse sotaque ridículo...?Nem precisava ter perguntado!

O dono do sotaque ficou muito sério,assim como seus companheiros.O debate acabou,e teve início uma rigorosa sessão de hipnose.

O objetivo imediato era dar tempo aos espiões,invisíveis aos olhos normais,de escalarem a parede,esgueirarem-se para dentro da residência transpassando o vidro das janelas e verificarem in loco a dimensão do estrago.

Na calçada,inspetores em ‘ghost mode’,tal como os espiões, circulavam,escrevendo relatórios.Outros formavam uma película de proteção eficiente ao redor da casa para evitar que qualquer vestígio de energia que eclodisse para o exterior se alastrasse.Dois deles examinavam o corpo metodicamente.

Tudo era monitorado por agentes instalados num furgão de passeio,do outro lado da rua.Dali,duas ambulâncias e outra viatura da polícia foram chamadas...

—Senhor,não seja ignorante!Queremos resolver a questão,colabore!—Ela prendera os dedos ao redor do cabo do machado,lutando pela ferramenta.

—Jyou,solte isso e deixe-a trabalhar!—A esposa segurou o marido pelos ombros,mas ele a ignorou.

—É a minha filha,é a minha casa,não me importa que a senhora seja da polícia!

—Também não se importe com isto!

A mulher deslizou o pé esquerdo para trás,flexionando a perna e dobrou a direita atrás do joelho do cozinheiro gladiador.Ganhando apoio,bruscamente ela puxou o cabo para trás e deixou-o retornar com força na direção do rosto dele,errando o alvo de propósito mas vencendo a disputa quando o homem desviara,afrouxando sua posse por um instante apenas.

Mizuki Kaho correu para fora,estreitando os olhos,carregando a arma bem junto ao corpo,e invadiu uma residência vizinha,batento à porta grosseiramente,mostrando seu distintivo falso,e empurrando o estupefato dono da casa.

—Leve-me ao cômodo que dá para a varanda!

Ela ficou de pé sobre a amurada e saltou para a mesma laje de onde Kaoru tinha pulado em meio à murmúrios admirados.O pai de Keiko não pôde seguí-la,pois o assistente da mulher o agarrara por baixo dos braços.

—Calma,o senhor pode cair!

—ME LARGUE,EU VOU ATÉ LÁ!

De repente,o homem desmaiou.Sua esposa acorreu,assustada,enquanto o rapaz que o estivera contendo traçou o mesmo caminho da chefe.Humanos são tão escandalosos...,pensou,com desprezo.

A Diretora Mizuki passou pela janela da qual Motomiya tinha caído,seguida pelo agente Goya.

—Isole esta e a outra também!

Ele retirou da bolsa negra,pendurada em seu ombro,quatro micro aparelhos anti-violações à matéria inanimada,movidos à baterias de carga sobrenatural,uma versão tecnológica dos invólucros feitos por feiticeiros.

{ O pessoal chegou,diretora! }

A mensagem telepática brandiu como uma brisa em sua mente.{ Mande os paramédicos entrarem,que esperem junto à escada,e quando a porta se abrir,devem subir imediatamente!Quanto aos policiais,mande um deles interrogar o vizinho que chamou a polícia e o outros dois devem tirar as pessoas do caminho! }

—Onde está Jyou Yukimura?

—Botei-o para dormir,Senhora.

—Ótimo.

Os dois estavam na sala de estar,monitorando os arredores com scanners.Os espiões já haviam recolhido as amostras da energia de Fujiwara que tinham restado pelos objetos quebrados,e colocado no pescoço da garota uma potente coleira de contenção energética.Seus pulsos e tornozelos jaziam presos por travas com a mesma finalidade.Os visores eletrônicos das peças indicavam um alto nível de perturbação mental e espiritual,mesmo naquele estado inconsciente.

Mizuki fitou o corpo estendido,as amarras de fios maleáveis ao redor do tronco,mantendo os braços junto ao corpo e as pernas bem unidas,os dentes cerrados projetando-se através dos lábios abertos,os olhos arregalados totalmente brancos,como se as pupilas tivessem sido tragadas...havia um grande curativo na testa.Um círculo vermelho escorria pela parede,sobre uma área quase afundada.No auge do descontrole,Reiko havia golpeado a própria cabeça,numa tentativa desesperada de ‘apagar’ antes que provocasse uma tragédia.Os espiões tiveram muito trabalho para imobilizá-la:recebendo eletro – choques e sendo atacados por ondas telecinéticas hostis,agiram dentro de campos individuais de força.

Parece um animal abatido...pensou Mizuki Kaho,enquanto sacava uma pistola catalisadora.Ela atirou contra a porta,que se abriu com um baque surdo após a dispersão do entrave sobrenatural.

De repente,passos e um grave tumulto:Rena Yukimura e um dos homens que não aprovavam mulheres policiais tentaram forssar a passagem,mas um agente fantasiado de policial mandado na última hora atalhara na lateral,pondo-se diante deles.

—O local do incidente será visto primeiro por nós,desçam e aguardem,por favor.

Os choramingo da mulher e os protestos do homem enervaram Mizuki,mas ela confiou no subordinado para lidar com a situação.

{ Levem Keiko Yukimura para a clínica do Dr. Yamamoto.Interroguem-na,e não permitam que seus pais se comuniquem com ela,de modo algum!Quero o depoimento por escrito,a lavagem cerebral só será feita depois de eu analisá-lo. }—Kaho então virou-se para Goya.—Vá com Fujiwara,o Murakami já está preparando tudo.Diga à dois dos policiais para esperarem os caras do IML e os outros para subirem assim que vocês partirem,o pessoal da vigília permanece onde está!{ TIRE ESSA GENTE DAÍ AGORA! }

O oficial do lado de fora estava em desvantagem na discussão.Quando o braços dos ‘intrusos’ se insinuaram por uma fresta,Mizuki pôs a cabeça para fora,insensível.

—Sra. Yukimura!Sua filha precisa ir para o hospital!Saia da frente,pois verter lágrimas sobre a menina não vai ajudá-la!

—Ao menos me diga o que houve!

—Vamos informar seus superiores sobre isso!—Disse o homem,que fuzilado pelo olhar irascível de Mizuki Kaho,recuou dois passos.

—Desçam daqui,agora!Ou vou informá-los de sua prisão por obstruírem socorro à um ferido!
A senhora foi a primeira a descer,corroída pela aflição.Seu companheiro foi tangido pelo guarda.

A padiola carregando Yukimura desceu primeiro.A mãe teve de assistir à remoção da filha à distância,contida por um policial que surgira no último instante.Os outros dois sacaram cacetetes de motim,para sutil intimidação do público ao darem fortes pancadas sobre o balcão,sorrindo educadamente.As pessoas se encolheram.

As duas ambulâncias partiram,restando somente a ‘detetive’ Mizuki Kaho e quatro tiras.O perigo tinha passado!Era uma felicidade que o Reikai possuísse agentes infiltrados trabalhando efetivamente em respeitáveis instituições como a polícia e os hospitais!

—Para onde levaram a Keiko,porquê não pude ir com ela?!Isso não está certo,vocês não agem como policiais!

—Nós contornamos uma emergência...e à seguir vamos estudar a cena dos acontecimentos...—A voz fria e profissional não se deixou estremecer pelas lágrimas maternas.—...depois terei prazer em levá-la pessoalmente até sua filha.

A mulher alta impressionava com seu ar de incontestável controle.Deu ordens à uma dupla de policiais para que auxiliasse os recém-chegados peritos do IML.

Todos subiram rumo à casa.Enquanto a senhora chorava em perplexo silêncio,o pequeno e eficiente grupo encenava.


***

Lívido e vazio,o cadáver de Kaoru Motomiya foi descarregado na geladeira do necrotério.Seu espírito,bem como toda sua essência,desapareceu através do nevoeiro misterioso que cobre os portões do além.

Nunca saberemos se Kaoru,de fato,é mais feliz estando fora para sempre deste mundo.Mas dentro de alguém,algo muito maior que as lembranças de uma existência se faz ardente.

Sua trágica mensagem tornou-se uma sólida herança para Reiko Fujiwara,a herança cujo corpo somente os braços da própria dor de um semelhante vivo e arrasado puderam acalentar.

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