Era inverno quando a conheci. Chovia muito e raios atravessavam o céu soturno que debochava de minha condição: eu estava caída nas ruas daquela cidade adormecida. Tinha apenas a roupa do corpo, um vestido azul amarrotado e sujo de lama e sangue, que vinha de feridas que cobriam meu corpo. A chuva ensopava meus cabelos dourados. Eu não lembrava como havia chegado ali e o que eu vivi antes daquela madrugada. Não tinha nome, não tinha amigos ou família. Eu estava perplexa, desnorteada, quando um salto comportado e elegante se aproximou de mim, num passo equilibrado e maduro.

- Senhorita, o que houve?

A voz daquela moça era tão deliciosa de se ouvir que meu desespero teve que esperar uma reação minha. Abri mais os olhos, a fim de ver melhor aquela figura nobre. Tinha cabelos cor de canela e olhos pretos tão perfeitos que comparei a jabuticabas. Seu vestido rosa de cetim, suas luvas feitas à mão e o guarda-chuva detalhado estampavam o título de nobreza em seu semblante.

- Senhorita?

A jovem então me ajuda a levantar, guiando-me como se eu fosse cega até seu veículo. Um motorista aguardava por ela, preocupado. Sem questionar nada, fui levada por ruas distantes, chegando a uma mansão que resplandecia. Neste ponto as memórias me falham, pois meu estado físico me fizera desmaiar.

Quando acordei, ela estava ao meu lado. Meu corpo estava espalhado numa colossal cama, que ficava alinhada à parede central daquele suntuoso quarto. Tudo ao meu redor esbanjava riqueza, mas o olhar daquela moça era simples, como se fosse parte da plebe.

- Bom dia, senhorita. - Ela disse, sorrindo angelicalmente. - Se sente melhor?

- Onde estou?

- Não se preocupe, você está em minha casa. Eu a encontrei ontem à noite na rua, não se lembra? Você parecia muito mal.

- Hnng... - Minha cabeça doía muito e eu estava constrangida por incomodar aquela pessoa.

- Meu nome é Sophie. Qual o seu nome?

- ... Eu não sei.

E a partir daquele dia passei a me chamar Fleur, que, segundo Sophie, significava 'flor'. Imagino se ela me comparava a uma naquele instante, ou se era meramente uma gentileza.

Sem destino, acabei morando naquela mansão. Aquela moça da nobreza vivia ocupada, cuidando de seus negócios com empresários e viajando para reuniões diversas, o que me fazia conhecer com ela várias partes do país. Ela me 'contratara' como sua companhia e eu a ajudava no que podia, alertando-a de compromissos e horários diversos. Eu auxiliava na cozinha e nas tarefas domésticas sem reclamar - fazia por gratidão e também porque eu não sabia fazer outra coisa.

Mais do que tudo, nos tornamos grandes amigas e eu a aconselhava quando ela vinha queixar-se a mim, assim como ela me afagava toda vez que as lágrimas molhavam meu rosto por alguma razão. Mas com o passar do tempo eu percebi que meus sentimentos por Sophie estavam mudando. Eu sentia ciúmes quando via minha salvadora interagindo com outras jovens e com nobres rapazes. Eu a admirava quando dormíamos juntas em noites de tempestades. Queria sentí-la mais próxima, mas o que alguém da nobreza iria querer com alguém que nem nome tem?

Para evitar que eu me machucasse, acabei escolhendo me afastar dela até esquecer isso - o que eu realmente não sabia se iria acontecer. Não ficávamos muito juntas e raramente nos encontrávamos na mansão. Eu fazia questão de passar o tempo em lugares que ela não costumava ir, mas um dia ela resolveu procurar por mim.

- Fleur?

- P-pois não? - Eu odiava o jeito defensivo que eu ficava todas as vezes que ela usava esse tom de voz amável.

- O que você tem ultimamente?

- Nada! Eu estava apenas fatigada por causa das tarefas, mas já voltarei a cumpri-las.

- Não me refiro ao seu estado de agora... Você parece que está me evitando, se afastando cada vez mais, prendendo-se a evasivas. Fleur, o
que está havendo?

Não adiantava mentir para Sophie, ela me conhecia melhor do que qualquer um poderia conhecer. Um nó me prendeu a garganta, senti vontade de chorar ao imaginar uma terrível reação dela caso eu contasse o que sentia. Me limitei a balançar a cabeça e sair, apressada, para o quarto.

Adentrei o cômodo, me deitando de bruços na cama macia e acolhedora. Não pude mais prender as lágrimas, deixando que molhassem o travesseiro de penas que ninava meu rosto. No entando, Sophie não havia desistido, aproximando-se, altiva e determinada.

- Fleur, por favor, se há algo te incomodando...

- Eu só quero ficar sozinha...

Imaginando que ela iria embora, me surpreendi com sua mão me puxando pelo pulso frágil e me fazendo levantar. Sem me soltar, ela permaneceu olhando em meus olhos, o que me fez corar. Seu dedo macio percorre minha bochecha, enxugando uma lágrima fresca. "Não deixarei que fique sozinha", Sophie disse, com um olhar forte, "você é preciosa demais para mim". Tais palavras me fizeram chorar silenciosamente e intensamente. "Fleur, não se afaste de mim desse jeito... Eu não quero que você vá embora...".

- S-Sophie...

Eu não conseguia dizer uma única palavra, meu coração batia com tanto fervor que pressionava meu peito. Então aquela jovem nobre se aproximou mais, fazendo com que eu sentisse sua respiração quente e compassada, tocando meus lábios com os dela da forma mais doce possível. Parecia que eu estava vivendo um conto de fadas, ou algo que o valha. Senti sua mão tocar meu rosto mais uma vez, acariciando-o amavelmente enquanto nos mantínhamos naquele enlace encantador, um beijo deliciosamente macio.

- Fleur, eu amo você.

- ... M-mas eu não sou nobre, mal tenho modos...

- Você sabe que isso não importa pra mim. Sua boba, era isso que te aflingia?

- ... Sim...

- Eu prometo amá-la sempre, mas prometa que fará o mesmo por mim...

E então seus braços me tomam mais uma vez, num abraço romântico e firme, como se ele impedisse que eu me afastasse novamente. Ela era definitivamente quem eu gostaria de passar o resto de minha vida. Ela era minha origem, minha jovem senhorita...

Ma lumière.