Um absoluto branco varria todo o lugar, que estava sempre cercado de luz e mergulhado por uma paz celestial. A pouca visão que se tinha era de rostos até certo ponto estranhos, caminhando vagarosamente, sem rumo, sempre com um sorriso estampado em cada lábio. Crianças, jovens, adultos, idosos... todos andando e conversando, sem distinção de raças, de idade, de riquezas...

         Sob nossos pés, o céu...

         Sob o céu, a Terra...

         Sim, você está correto se achou que essa descrição se refere ao Paraíso. O local onde Ele repousa. Onde os santos repousam, Onde as almas merecedores de tal ‘premiação’ repousam. E onde os anjos repousam. Acredite, é um lindo lugar. Faça tudo aí na Terra para que um dia você venha para cá.

         E não, não estou desejando que você morra. Ao contrário.

         Pois a morte é algo que vêm me assombrando esses ‘dias’...

         (...)

         Cada anjo possui uma função variada. Os arcanjos, digamos, nosso ‘chefes’ guardam para que a paz reine absoluta aqui. Anjos abaixo desse nível – engana-se se aqui existe uma hierarquia, pois todos somos iguais – guiam as almas que aqui chegam para seus devidos lugares. E nós sempre mantemos nosso olhar direcionado para baixo, para a Terra. Lá, acompanhamos cada ínfima existência presente no planeta. Cada humano que lá reside possui um de nós como... guardião.

         Chamam-nos de anjos da guarda. Se assim preferirem, podem continuar nos designando essa nomeação.

         Já tem algum tempo que eu não saio daqui, onde estou sentado. Realmente, algo corta-me o coração, toda vez que eu a vejo, chorando, em um canto qualquer do próprio quarto. Por que as coisas tomaram esse rumo, justo com ela?

         Justo comigo?

         - Rygel, outra vez a observar a humana? – Uma voz mansa chegou aos meus ouvidos, enquanto eu estava preso em minha mente.

         - Michael, eu estou apenas zelando por ela.

         Michael possui um alto porte, grandes asas de um dourado quase invisível, igualmente com o de seus cabelos e de seus olhos. Já fora um arcanjo. Mas pediu a Ele para que fosse zelar pelos humanos. Sentia-se realmente preocupado com o bem da Terra.

         - Rygel, sabe o que está para acontecer com a humana que protege, não é mesmo?

         - Sim...

         - E então?

         - E então o quê?

         - O que irá fazer, Rygel?

         Toda vez que o humano a quem protegíamos corria certo perigo, nosso coração doía, intensamente, como para avisar-nos do que deveríamos fazer.

         É permitido que o anjo da guarda apareça apenas uma vez para seu protegido, quando casos extremos são alcançados. Logo em seguida, a memória do humano é apagada e continuamos a zelar por ele em silêncio, de tão distante...

         Meu peito apertou-se. Mas quando percebi que algo estava errado, já era tarde.

         Seu nome é Yukimura Mizuho.

         E ela cometerá suicídio em doze horas...

         - Eu não me conformo, Michael! Ela não pode fazer isso!

         - Não cabe a você decidir isso, Rygel. Sabe muito bem que não pode interferir no livre arbítrio, não é mesmo?

         Livre arbítrio. Era isso que criava uma barreira tão enorme entre a minha vontade de salvá-la...

         ... e a vontade dela de ser salva.

         - Michael! Sabe o que vai acontecer com a alma de Mizuho caso ela—

         - Pare agora mesmo, Rygel! – Levantou-se, impotente – Sabe que não tem o direito de questionar sobre isso. Não somos nós que julgamos o destino dos humanos.

         Michael estava certo. Era Ele que decidiria.

         Mas eu não suportava vê-la daquele jeito.

         O seu sofrimento era o meu sofrimento.

         Pode parecer que tudo não passa da mera relação guardião – humano que nós, anjos, mantemos aqui.

         Mas não é.

         E esse era o meu pecado.

         Eu a amava.

         - Rygel, você lutou tanto tempo, zelando por essa garota durante dezesseis anos terrestres. Mas se ela decidiu assim, você não pode fazer mais nada.

         - Eu posso...

         - Sabe o que lhe acontecerá se salvá-la da morte, não sabe?

         - Sim.

         Caso um anjo interferisse na decisão de um humano, salvasse-o da morte ou aparecesse frente a seus olhos mais de uma vez, ele seria expulso do Paraíso.

         Seria um ‘caído’.

         Ou teria sua existência apagada...

         Porém, eu não posso deixar que ela se mate.

         Por que justo comigo? Poderia ser com qualquer outro anjo!

         Por que eu tive que me apaixonar pela humana que protejo?

         - Rygel... por favor...

         As lágrimas escorriam por entre meu rosto, caindo nas minhas mãos pálidas. Mantive as asas abaixadas por todo o período que ali permaneci, apenas olhando ara ela, chorando, novamente, sobre a foto de seu falecido pai.

         - Michael, eu não posso deixar isso acontecer...

         - Você ama essa humana, Rygel?

         De quem eu esconderia algo que estava tão óbvio?

         De fato, esse era o sentimento que os humanos mais procuram. Em todos os lugares, sempre, para sempre.

         Amor.

         E esse sentimento me alcançou.

         Apesar de ser proibido.

         - Por que eu, Michael?

         - Talvez Ele esteja te colocando à prova...

         - Mas...

         - Força, meu pequeno anjo. Mizuho cometerá suicídio por problemas que ela mesma encontrou em seu caminho. Ela não é forte o bastante para contorná-los, e por isso mesmo precisa de alguém que a ame, intensamente. Esse alguém é você, Rygel. Amá-la é de fato o seu pecado, mas eu vejo esperanças em seus olhos. Vá até ela e quem sabe, poderá salvá-la.

         Michael sabia como falar. E me atingir.

         - Não aja sem pensar. Seja cauteloso e conseguirá recuperar o coração daquela jovem humana.

         - Michael...

         - Espero que tudo corra em harmonia, Rygel. Aquela garota está sofrendo, muito. Envolva esse sofrimento sob suas asas e logo poderá ver o sorriso estampado no rosto de Mizuho novamente...

         Antes de se retirar, apenas consegui pronunciar uma palavra àquele anjo, que outrora me acolheu.

         - Obrigado...

         - Suas asas cresceram, Rygel! – Sorriu – Sabe o que isso significa, não é?

         - Sério!? – Espantei-me. Michael adorava questionar-me – Sou forte, não sou?

         - Hahaha, claro, meu jovem anjo. Agora permita que eu me retire. Também tenho que zelar por um pai de família.

         - Claro... e mais uma vez, obrigado, Michael...

         Sorriu mais uma vez antes de alçar vôo em direção à imensidão do Paraíso. Suas penas vieram em minha direção, apalpando-me o rosto e fazendo com que eu sentisse que realmente eu poderia contar com seu apoio.

         Dirigi meu olhar mais uma vez para baixo e a vi sentada, escrevendo em seu diário. Provavelmente, pela última vez...

         Ou não...

         Eu a impediria de cometer suicídio.

         Nem que para que a vida dela prosseguisse, eu tivesse que entregar-lhe a minha.

         Pois eu não suportaria ver a família, os amigos e todos que estão a sua volta chorar.

         Não suportaria ver a sua alma cair em um abismo sem fim. Ou vir parar aqui, conosco, deixando para trás todos que a amam.

         Não suportaria ficar sem ouvir sua voz a cantar, tão bem. A tocar, tão bem. A sorrir...

         E nessas horas eu acredito que estou me afastando do ofício de anjo...

         ... e me aproximando de ser apenas mais um ser humano...

        

Não seria ele um ser mutável?