Não. Shannon não havia feito aquilo na minha frente. Por um instante, me arrependi de ter insistido que Mellanie voltasse para o hotel. Meu coração batia acelerado, e os ciúmes, que há tempos achei que havia superado, me invadiram ao observar os olhos infantis de Mellanie, atordoados. Suas mãos ainda estavam entre as dele, e ela parecia confortável com isso, o que subitamente me fez ter vontade de socar a cara de Shannon.
– Shann... - Mell saiu de trás de mim e o abraçou com muita força. Shannon envolveu suas costas com um braço, e usou a outra mão para alisar o cabelo dela carinhosamente. - Eu te amo... Mas a resposta é não. - Tive que me conter para nao suspirar de alívio. - Não poderia fazer isso com o Jared, você sabe, não é mesmo?
– Eu precisava ao menos tentar. - Respondeu ele, como quem não quer nada, dando de ombros levemente.
Mell bocejou e se aconchegou mais nele.
– Estou cansada...
– Vamos para a cama. - Shannon pegou-a no colo com facilidade e levou-a até o quarto. Mellanie me olhava fazendo bico e reclamando com uma expressão manhosa, que significava que ela queria minha atenção.
Assim que Shann colocou-a na cama, Mell esticou os braços para mim. Abaixei-me, dando um beijo suave em sua testa e ajudei-a a retirar as roupas molhadas e o casaco de couro, que ficara incrivelmente grande em seu corpo. Enquanto isso, Shannon já havia pego roupas limpas e esticava-as na direção de Mellanie, que apenas negou, cruzandos os braços. Shann revirou os olhos, rindo. Ele sabia, tanto quanto eu, que ela queria uma camisa dele, e nao dela própria. Deu meia-volta e retornou com uma camisa de mangas compridas azul-escura. Ela sorriu e vestiu-a, satisfeita. Ficava incrivelmente linda com aquela blusa larga. Mell se encolheu, obviamente tentando se aquecer. Tirei a calça e o casaco antes de deitar e logo tratei de abraçá-la bem apertado. Nunca mais a deixaria sozinha.


Constance;

Acordei depois do que parecera um longo sono. Tentei mover as mãos, mas percebi-as algemadas na maca onde estava deitada. Minha cabeça latejava e eu ainda não entendia o que havia acontecido comigo.
Pensei em Shannon e Jared. Logo uma saudade enorme acometeu meu peito e pude ouvir o aparelho que media meus batimentos cardíacos apitar freneticamente. Nunca pensei que fosse dizer isso, mas apesar de inconformada, eu estava feliz. Achei que meus filhos nunca poderiam encontrar o caminho da alegria com Mellanie, porém ela me mostrou, sem medir esforços, de que era e sempre foi a melhor opção para ambos.
A porta foi aberta e pude ver um homem se aproximando da maca. Vestia terno risca-de-giz e gravata. Os sapatos eram tão brilhantes que tornava-se incômodo o reflexo causado pela luz. Esse mesmo reflexo me impedia de enxergar bem, e eu não pude ver o rosto dele.
– Que bom que acordou, Srª Constance.
– O que você quer? – Perguntei e minha voz incomodou meus próprios ouvidos. Estava seca.
– Vim lhe oferecer uma alternativa que ninguém mais irá lhe oferecer.
– E qual seria essa alternativa?
– Você sabe que quando sair desse hospital, o que não deve demorar muito agora que saiu do coma, irá presa. Poderá pegar trinta anos de cadeia por tentativa de homicídio. O que eu estou dizendo é...
– Faça.
– Mas a senhora nem ouviu o que eu tenho a dizer.
– Eu sei onde quer chegar. Não pretendo passar os últimos anos da minha vida em uma gaiola de aço, sendo controlada e oprimida. Me arrependo do que fiz, mas pretendo, se possível, pagar meus pecados em outro plano. Sou uma mulher crente, e talvez consiga minha redenção. Mas isso só o senhor meu Deus poderá dizer.
– Tem certeza? –Questionou-me. Suas palavras entraram em meu peito e ali ficaram, preenchendo o vazio que me dominava.
– Nunca tive tanta certeza de algo na minha vida. É o certo a se fazer.
Ele assentiu e me olhou uma última vez, antes de desconectar os fios do aparelho respiratório, aparelho este, que me mantinha ainda com vida. Minha visão foi ficando turva, e consegui sussurrar minha últimas palavras nesse mundo, que dediquei à ele.
– Não pude ver seu rosto... – Perdi o fôlego. Estiquei minha mão tentando puxá-lo para perto, porém minhas energias se esvaíram. Ele se aproximou e eu usei minhas forças restantes para completar, em tom mínimo – Mas o senhor é um bom... homem.
Sorri e minha visão se obscureceu por completo. Os pensamentos se esvaíram e a última imagem que surgiu em minha mente foi o rosto de Mellanie.

Eu... Sinto muito.

Escutei o último suspiro escapar dos meus pulmões, sem que eu pudesse me agarrar à ele. Tudo ficou escuro e eu sabia que havia acabado. Finalmente em paz.

Shannon;

Abraçei Mellanie com cuidado e carinho, sentindo-a se encolher e acomodar –se em mim. Era impressionante... Parecia feita para mim. Suas curvas encaixavam-se perfeitamente no meu corpo.
Deixei meu rosto próximo à sua nuca e respirei fundo, sentindo o cheiro de seus cabelos. Sorri comigo mesmo e fitei-a uma última vez antes de fechar os olhos. Parecia quase sorrir em seu sono. Sabe aqueles momentos em que você se sente feliz com as pequenas coisas? Aquele momento rápido, efêmero, que quando acaba deixa a saudade alojada no corpo? Eu senti aquilo nesse instante... Meu irmão e a mulher da minha vida estavam ao meu lado, tranquilos, sem que nada pudesse atrapalhá-los. E foi nessa hora, nesse instante, que eu soube: Aquele momento acabaria, mas outros ainda estavam por vir. Esses momentos perdurarão, apenas por estarmos vivendo um dia após o outro.
E no silêncio da noite, escutando a respiração das duas pessoas que eu mais amava e admirava, soube que eu vivi para que aquele único e pequeno dia chegasse. Apesar de mudos, inconscientes em seus sonos serenos, eu sentia as palavras flutuando no ar. E quele silêncio sussurrou em meu ouvido:




“Talvez amar seja isso: Descobrir o que o outro fala, mesmo quando ele não diz.”




FIM.