Tudo Está nos Olhos escrita por Hiranyakashipu


Capítulo 1
Dalí




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"Tenho uma história espantosa e passei por coisas assombrosas - que se fossem gravadas com agulha no interior das retinas constituiriam uma lição para quem reflete."

Primeiro dervixe carendel em As Mil e Uma Noites.

Tudo está nos olhos. Tudo começou com eles. Não tinha relação alguma com o resto do conjunto; não foram as pernas, não foram os pés ou as mãos, muito menos os braços.

Ao falarmos do pescoço as coisas ficam mais quentes: abaixo, os seios fartos – com eles havia certa relação – acima, os olhos, que me fitaram na rua, verdes, causa que eram de meu amor e aflição; da maravilha em sua agonia.

Amei-a três vezes. Porém, apenas duas vezes o amor foi completo: quando a vi e quando a deixei.

Quando a vi, pareceu que o tempo se derretia, lenta porém vigorosamente, um chocolate ao sol. A percepção temporal tornava-se abstrata, dando nós em si mesma. Sei como essas coisas podem ser enfadonhas, mas para que entenda, faz-se necessária a descrição.

Podia-se bem acreditar que possuía quinze ou vinte anos; alta o suficiente; sobre sua pele ebúrnea deslizava suavemente um vestido de seda azulado que se prendia ao seu corpo somente pela circunferência de seu tórax e o diâmetro de seus seios, que apesar da folga da vestimenta, pareciam comprimidos contra o pano; sua cintura era delgada e suas curvas assemelhavam-se a de fiordes noruegueses, embora superassem em muito a beleza natural da Escandinávia; o desenho de suas pernas saindo na parte inferior do vestido eram Vênus deixando para trás a espuma do mar, seu andar era calmo e cadenciado; tendo chego aos seus pés, subo lentamente o olhar até seu rosto.

Ah! Que perfeição! Que vida! Suas bochechas eram salientes e rosadas, maçãs recém colhidas!; seu cabelo era comprido, cacheado, e carmesim, um toque de rebeldia em seu asseio. Seus olhos esmeraldinos, primor inegável da criação, reluziam como a mais fulgurante pedra, mesmo não guardando em si a constância das mesmas, comportando-se mais precisamente com a implacável imprevisibilidade do mar, que é de fato a verdadeira alma das mulheres.

Nunca apreciei sua presença. Apreciava seus olhos, o prazer que me proporcionavam – nada mais! Esse prazer – que com seu poder me corrompia lentamente, unindo o deleite carnal que me prendia à cama com a sublime oblação que dedicava ao seu olhar – esse prazer, chamo de amor. O segundo deles. O falso.

Você não se admirará se disser que esse, dentre os amores, foi o que menos tempo durou.

Quando a deixei... ah, nunca esquecerei! De todas as boas sensações que nós, humanos, fomos feitos para sentir, creio ter sido o único – ou talvez seja apenas narcisismo – que experimentou tal coisa! Momentos antes de nos separarmos, seus olhos, pérolas esverdeadas, espelhos de seu mar e essência de sua vitalidade, vertiam lágrimas de dor e tristeza, até mesmo sofrimento, embora não entenda bem o porquê.

Aquela visão fez-me decidir por completo. Levantei da cama forrada por lençóis vermelhos. Olhei para ela como a contemplá-la superficialmente pela última vez. Deixei-a no trepódromo, estirada em seu leito, semi-enrolada nos lençóis empapados em uma mistura de fluídos; seus seios magníficos, caídos no chão, destacados de forma cuidadosamente animalesca de seu peito – ninguém mais os teria, nem mesmo depois de morta.

Seu rosto, antes pálido, confundia-se com sua cabeleira, ambos dando uma continuidade surrealista à paisagem.

No lugar antes ocupado pelos seus olhos, duas órbitas vazias encaravam a porta fechando-se às minhas costas. Seus olhos estavam nos meus bolsos. Acariciava eles como ninguém mais o faria, como ela nunca o fez. Eram, ao fim, o que importava, o que eu realmente queria – os donos de minha razão – e agora, seriam meus... meus amores, para sempre.


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Notas finais do capítulo

Vocabulário:
Ebúrnero = semelhante ao mármore, seja na forma, textura ou cor;
Esmeraldinos = semelhante à esmeraldas (ohrly);
Carmesim = vermelho, ruivo;
Enfadonho = chato;
Cadenciado = com ritmo, ritmado;
Asseio = perfeição;
Oblação = sacrifício, oferenda;
Fulgurante = brilhante ("como pedrihas brilhantes" êêê o/ q);
Trepódromo = neologismo criado (?) por James Ellroy para "motel".