Sem Ensaios para a Vida escrita por Lara Boger


Capítulo 10
Vazio e escuridão




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De fato foi uma preocupação que Kat não conseguiu tirar da cabeça.Os dias foram se passando sem que Nash lhe dirigisse a palavra. Apesar disso o silêncio deu a ela tempo suficiente para reparar melhor no seu parceiro. O corpo que parecia se adequar a qualquer tipo de dança, os movimentos precisamente cirúrgicos, os olhos que pareciam ficar mais verdes ao ouvir os comandos do professor e a cada acorde do piano... mas as mesmas atitudes de sempre.

-- Tá difícil? – perguntou Gabriel, se aproximando logo depois de vê-lo se afastar.

-- Se está... – disse ela, fazendo uma careta. – Já vi pessoas que não são de conversa, mas isso já é bobagem. Só sei o nome dele porque o professor nos apresentou.

-- Imagino, mas ele não é mesmo de muita conversa.

-- Bem, um dia ele falou comigo.

-- Falou?

-- Acho que sim... ele parecia querer se comunicar comigo de alguma forma...

Gabriel riu. Gostava do senso de humor de Kat. As poucas conversas que tinham tempo de ter, aquela tristeza aparente parecia sumir. Gostava de estar com ela.

-- Então fique contente com esse resmungo. Acho que não vai conseguir mais que isso.

-- Você não tá falando sério, tá? -- perguntou, esperançosa, como quem já sabia da resposta verdadeira, fingindo decepção com a resposta negativa.

-- Sinto muito por ter de dizer isso. Nash não é uma pessoa sociável... mal fala com a gente, tanto nas aulas quanto nos corredores... isso desde sempre.

-- Alguma chance disso mudar?

-- Acho difícil. Depende da sua capacidade de fazer milagres. Pra ele falar, só milagre mesmo... não se culpe por isso, é com todo mundo.

Kat suspirou. “Pelo menos ele tem talento” disse a si mesma, pensando que realizar milagres era algo muito acima de sua capacidade.

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Kat não tinha muito tempo para pensar em outras coisas. Os ensaios continuavam no mesmo ritmo, assim como seu esforço não mudou. A suposta falta de voz de seu partner era apenas um assunto a se preocupar, afinal a vida não tinha parado por causa disso: seus problemas continuavam, seu empenho em passar por eles continuavam... os ensaios furtivos do fim de semana também. Queria agora poder participar do pas-de-deux sem se sentir inferior ao seu parceiro.

Quase um mês se passou. Um mês de tentativas inúteis que não deram mais frutos que um resmungo qualquer. Apesar da descrença de Gabriel, demonstrada em conversas rápidas no corredor e de Jenny, em qualquer oportunidade, ainda queria conversar com ele. Achava absurdo ensaiar várias horas, durante vários dias da semana sem trocarem qualquer palavra.

Um desses dias, Kat ouviu sua voz articulando sons, tecendo uma conversa, mas as palavras não foram dirigidas a ela, apesar de ter sido a causadora.

Aconteceu logo no fim da aula de pas-de-deux, quando ele se afastou após o último movimento. Parecia mais impaciente do que de costume, brusco.

-- O que foi, rapaz? Que cara é essa? – perguntou Ethan Kulik ao seu aluno.

-- Ensaiar com as sobras não me deixa muito feliz. – respondeu, secando o rosto com uma toalha, uma expressão irritada, assim como seu tom de voz – O senhor ficaria contente?

Kat, que ainda estava por perto.acabou ouvindo. E ouvir aquilo deixou-a tão mal que não teve outra reação a não ser recolher sua bolsa e sair dali o mais rápido possível.

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-- Kat... aconteceu alguma coisa?

-- Hã? – a voz de Jenny cortou-lhe os pensamentos. Estavam sentadas no refeitório tomando café da manhã.

-- Que foi, menina? Que cara é essa?

-- Nada.

-- Como nada? Tá com uma cara estranha...

-- Nada, Jen. Só estou cansada... não dormi bem a noite, só isso.

Jenny preferiu não dizer mais nada, pensando em talvez acreditar no que ela lhe dissera. Seu rosto aparentava cansaço. Respostas ambíguas ou negativas de sua parte poderiam ser tanto estafa quanto preocupação ou tristeza. Voltou aos seus waffles, enquanto a amiga preferiu uma barra de cereais e um copo de suco.

Kat agradeceu pela demonstração de sabedoria de Jenny. Não se sentia bem, estava cansada e sem humor para uma daquelas conversas de auto-ajuda. De qualquer forma respondera a sua pergunta sem mentir: não tinha dormido bem. Omitiu apenas que mal fechara os olhos, passara toda a noite em claro pensando naquilo que ouvira.

Ensaiar com as sobras não me deixa muito feliz” lembrou. Passara o tempo todo repassando aquilo em sua mente. Aquela ironia na voz dele, o modo com que fora chamada de “sobra”... o modo com que a verdade tinha sido dita... e saber que era uma verdade era o que mais doía. Dormir foi uma tarefa impossível. Aliás, pensar em qualquer outra coisa já era difícil. Isso já a fazia lembrar de tudo o que já tinha passado e do quanto de verdade havia ali, e do quanto podia ser feito para mudar sua situação... se é que poderia ser mudada...

Na esperança de poder mudar alguma coisa iniciou o que pensou ser uma verdadeira guerra contra um destino anunciado. Percebendo que seria impossível lutar contra o seu peso comendo menos – lembrava muito bem da sua experiência em Alameda dos Anjos – aumentou o ritmo dos seus ensaios. Fins de semana não foram mais o bastante para estar satisfeita. As horas de folga passaram a ser preenchidas por qualquer coisa diferente disso: ensaios por conta própria, música clássica no discman, livros sobre dança, memorização e anotações de elementos técnicos das aulas que participava para usar nos próprios ensaios...

Ao fim de cada um dos dias que se passaram, o resultado de seu esforço eram visíveis. Foram dias em que pensou que não conseguiria dormir por causa das dores por todo o corpo. Braços, costas e principalmente os pés, como se estivessem moídos. Incomodava, mas tudo parecia ficar para trás quando encostava a cabeça no travesseiro e praticamente desmaiava com o cansaço... mas apesar de tudo agradecia por seu estado de exaustão: isso a impedia de estar alheia a aquele universo de suor de pouquíssimo glamour. Era capaz de esquecer a dor de lembrasse da sensação de culpa e displicência com seus ensaios, obrigações e responsabilidades.

Estava sentada no chão, distraída enquanto trocava de roupa e arrumava sua bolsa quando Gabriel se aproximou ao fim de mais uma aula de pas de deux.

-- Oi, Kat.

-- Oi, Gabriel, tudo bem? – perguntou, amistosa enquanto tentava deixar para depois os dados técnicos para prestar atenção nele, que meneava a cabeça indicando que sim em resposta a sua pergunta. -- Puxa... há quanto tempo a gente não se fala...!

-- Pois é. Nem parece que vivemos no mesmo lugar. – sentou-se ao seu lado pretendendo fazer o mesmo que ela – Isso aqui anda meio puxado ultimamente...

-- Com certeza.

Aproveitando que ela estava tirando as sapatilhas, procurou uma forma de olha-la melhor. Parecia estranha, diferente.

-- Você está bem, Kat?

-- Estou. – a resposta veio rápida, quase instantânea, apressada até – Por que a pergunta?

-- Ora... você também me perguntou se eu estava bem... – tentou disfarçar, tomando um tom de surpresa – É normal que eu também pergunte.

-- O seu tom foi diferente, Gabriel... por que isso agora?

Gabriel sentiu o rosto corar., envergonhado pelo modo incisivo com que a pergunta lhe foi feita. Não queria ofende-la ou deixa-la constrangida em falar nisso. Das últimas vezes em que conversaram percebeu o incômodo e até mesmo ressentimento com aquele tipo de pergunta. Apesar de saber disso não teve como evitar.

-- Não sei, você está estranha. Pálida, com olheiras... parece abatida.

-- Só estou cansada... tem sido bastante puxado ultimamente...mas nada que uma noite de sono não resolva. – sorriu ao dizer-lhe enquanto colocava as sapatilhas na bolsa. – É disso que estou precisando... talvez você também precise.

-- Preciso sim... acho que todo mundo aqui precisa.

Gabriel levantou e estendeu a mão para ajuda-la. Kat aceitou e logo que viu-a de pé sentiu-se na obrigação de dizer alguma coisa.

-- Desculpe se te incomodei com a minha pergunta... é que eu me preocupo com você.

-- Não me incomodou... não esquenta. – olhou para o relógio – Droga... preciso ir... – foi se afastando, de costas para a porta. – Até mais, Gabriel.

Kat saiu correndo, sem tempo de ouvi-lo perguntar se por acaso não iria almoçar, e nem responder a sua despedida para o vazio.

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Passaram-se mais alguns dias. O ritmo ficou mais intenso para Kat, cada vez mais envolvida em seu projeto de melhora e a exaustão era um estágio cada mais freqüente. Em uma dessas aulas saiu exatamente nesse estado, querendo tomar uma ducha e cair na cama, mas o dia ainda não tinha terminado: havia Dechamps pela frente. Não poderia ignora-la. Era uma das razões de todo aquele esforço... e que até aquele momento parecia infrutífero porque nada havia mudado... mas talvez com mais um tempo poderia começar a mudar as coisas.

Foi isso que lhe deu forças para tentar comer algo durante o almoço, percebendo um olhar inquisidor da parte de Jenny em direção ao seu prato de salada.

-- Kat, não acha melhor esquecer a aula de hoje?

-- Por que eu faria isso?

-- Seu cansaço.

-- Bem que eu gostaria, mas a Dechamps... – parou de falar, sem completar a frase, escolhendo melhor as palavras. – Não posso perder nenhuma aula dela.

Mesmo sem vontade terminou de comer rápido. Tinha pressa. Foi ao vestiário lavar o rosto pois precisava estar completamente alerta. Cada detalhe fazia a máxima diferença.

Ainda tendo alguns minutos saíram do prédio, indo para um espaço aberto. Iniciativa de Jenny seguida por Kat sem perceber isso na hora.

-- Por que estamos aqui, Jen?

-- Precisamos de ar puro... e você precisa de sol.

-- A hora... – começou a fazer um protesto.

-- Eu sei, eu sei! Fica calma, nós não vamos nos atrasar... relaxa mulher!

-- Não posso relaxar. – estalou um dos dedos – Não devo.

-- Você está ficando paranóica...

Kat limitou-se a rir, numa tentativa de não se irritar. Jenny não podia entender: ela tinha talento, o corpo certo, pés decentes. Não, não poderia faze-la entender.

Limitou-se a ficar por ali pelo menos por alguns minutos, pensando em assuntos que não a deixariam tão culpada por estar ali a toa: passos técnicos que se encaixariam em alguma música... número que calorias do seu almoço... no quanto de exercícios físicos teria de fazer para elimina-las... ou o fato de seus problemas não terem qualquer vislumbre de solução.

Ficaram ali sentadas em um dos bancos, olhando para algumas árvores e canteiro de flores até Jenny olhar com ar displicente para o relógio e parar de atormenta-la.

-- Agora podemos ir, estressadinha.

Levantaram. Jenny foi a primeira, e o fez olhando para o lado, distraída ao cumprimentar alguém. Quando voltou a prestar atenção em Kat assustou-se: palidez.

-- Kat! O que houve? – segurou-ª.

-- Não sei... eu...

-- Senta aí.

-- Não! – recusou-se – Já estou melhor...

Alheio ao que estava acontecendo, Gabriel veio se aproximando sem que elas percebessem. Queria cumprimenta-las, trocar algumas palavras com Kat.

-- Oi, meninas... – chegou mais perto e viu o semblante tenso de Jenny – O que houve? Aconteceu alguma coisa?

-- A Kat não tá legal.

Ela ainda estava de pé. Os dedos esfregando as têmporas, cabeça baixa e olhos fechados.

-- Exagero dela, Gabriel... foi só um mal-estar... – levantou o rosto e ele pode ver o quanto ela estava pálida.

-- Melhor você sentar – disse-lhe, tocando os braços, fazendo com que voltasse ao banco.

-- Ah, qual é... mas você também? – protestou – Tô ótima, e atrasada também...

Levantou-se como num pulo e em milésimos de segundo fechou os olhos com força, sentindo tudo a sua volta girar e escurecer.


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