Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 15
Desejo, Dia 12: Choque




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Desejo, Dia 12: Choque

         O grupo deixou o apartamento no centro da cidade perto da meia-noite. Nele seus integrantes haviam permanecido desde a tarde, discutindo estratégias e, acima de tudo, descansando. Com toda a correria dos dias anteriores, Jorge acabara repousando pouco – algo prejudicial para um mestre cuja vitalidade também mantinha naquele plano a serva que invocara: justamente da classe Berserker, que mais prana consumia. Após boas horas de recuperação, porém, e embora sentisse a presença de sua serva cada vez mais fraca, o calouro já se achava mais disposto – principalmente depois da bela pizza de quatro queijos que eles haviam degustado no jantar. Acabara faltando à aula, mas nas presentes condições não poderia acompanhar o curso enquanto o Graal não fosse conquistado.

         Agora haviam saído para a rua, sob um luar prateado que lançava uma claridade espectral sobre as velhas construções daquela área da cidade, sobressaindo-se até ao brilho dos postes de luz. Vista de perto, a catedral iluminada em azul parecia um gigante simétrico criado por magia, que observava com atenção os movimentos daqueles humanos que queriam atrair a atenção de outros mestres da guerra – no caso o mestre de Caster. E foi com esse pensamento que se puseram a descer a colina central, rumo à Avenida Alonso y Alonso.

         Odin seguia-os com sua rica armadura refletindo as luzes noturnas, andando a passos firmes e com a cabeça barbada erguida. Não havia sinal ainda de sua montaria, mas era de se julgar que ele a invocasse somente em combate. As vias estavam vazias àquela hora, mas mesmo assim mantinha-se oculto em sua forma espiritual. Antes prevenir do que remediar.

         - Nós estamos seguindo alguma direção em que sabemos que seremos atacados por Caster? – indagou Jorge, olhando ao redor.

         - Na verdade não – respondeu Régis. – É só uma hipótese. Poderíamos ter descido pelo outro lado da colina, mas, de um modo ou de outro, creio que nossos inimigos logo nos encontrarão. Devem estar patrulhando.

         A noite estava silenciosa demais – até mesmo para dias de semana em Franca, que àquele horário não eram lá muito movimentados. Desceram pela Avenida Champagnat com o velho colégio dormindo como um demônio esverdeado aguardando alguma vítima incauta. Tudo se via revestido de uma aura estranha, ameaçadora – até a estátua de bronze do padre diante do prédio e a imagem de Nossa Senhora na pequena gruta no jardim se assemelhando a terríveis espiões de uma força maligna oculta.

         - Não me sinto bem... – oscilou Jorge, cada vez mais alarmado.

         - Não descarto a possibilidade da magia de Caster estar nos intimidando mesmo à distância – afirmou Petruglia. – Os encantamentos antigos são muito poderosos. Ela pode até mesmo ter colocado a cidade inteira sob algum tipo de feitiço.

         - Mas a família Percival... digo, eles perceberiam, não?

         Não houve resposta para a pergunta do garoto – o que o encheu ainda mais de temor.

         Chegaram à Alonso y Alonso com o lento murmurar líquido do córrego sendo um dos poucos ruídos além de seus passos e o som do motor de carros distantes. Os prédios e casas ao redor tinham suas luzes apagadas, os faróis de automóveis bastante longínquos... como se toda aquela área houvesse sido previamente isolada. Preparada para algo.

         Eles continuaram caminhando, logo ganhando uma rua. Régis guiava-os aparentemente a esmo. Jorge mais e mais se pegava perguntando se o colega não os estaria conduzindo direto a uma armadilha. Esforçava-se, mas não conseguia confiar nele.

         Subiram por uma ladeira após alguns quarteirões, voltando a adentrar a colina central, mas agora numa região mais baixa, quase na entrada da cidade. As sombras das construções ao redor continuavam projetando-se ameaçadoramente sobre a rua, aparentando querer engolir o grupo. Empurrando a cadeira de rodas de Petruglia, o mestre de Berserker enxergou árvores adiante, o terreno ficando mais plano ao se abrir num largo. Tratava-se de uma praça, de folhagem tão escura quanto a noite e tomada por um repentino vento frio, que lançou folhas sobre os recém-chegados. O calçamento tinha suas falhas e rachaduras ressaltadas pela lúgubre luz dos postes, enquanto os bancos e muradas vazios pareciam só encher o lugar de ainda maior desolação. Nada convidativo, por assim dizer.

         Jorge estremeceu, desacelerando o passo. Sabia, de alguma forma, que a luta com Caster se desenrolaria ali. Não era um lugar isolado, mas ao que aparentava a magia da serva providenciara para que nenhum curioso interferisse. Havia espaço aberto suficiente para dois ou mais espíritos heróicos se digladiarem até a morte – muito mais do que no pátio interno da Cadeia Pública, a seu ver. Agora só era preciso encontrar o inimigo.

         Régis, nada intimidado, continuou andando para dentro da praça. Daniela olhou para Jorge com uma expressão segura, encorajando o pupilo a também avançar. Mas, antes que desse mais um passo, um intenso clarão ali perto lhe atraiu os sentidos.

         O calouro voltou a cabeça, só então se dando conta de que Odin, desde o término da subida, ficara um pouco para trás. Agora descobria a razão, assim como a da explosão luminosa: ele finalmente conjurara sua montaria, Sleipnir. Era visto agora, imponente com Gungnir numa das mãos, montado num esplendoroso cavalo cinza, de fortes patas e corpo avantajado – talvez possuindo quase o dobro do tamanho de um cavalo comum. Seu pêlo parecia emitir uma espécie de luminescência, lançando uma claridade pálida ao seu redor. Os cascos eram revestidos de ferraduras douradas, e só quando começou a contá-las que Jorge se lembrou da mais marcante característica daquele animal, agora diante de seus olhos: possuía não quatro, mas oito patas, divididas igualmente entre dianteiras e traseiras. Apoiando-se nessas últimas, a montaria ergueu-se e relinchou, exibindo os dentes brancos com entalhes de runas nórdicas. Cavalgando-o, Odin ganhou a praça sem qualquer cerimônia, lembrando ao protegido de Petruglia histórias que ouvia quando criança sobre cavaleiros inconseqüentes que entravam em igrejas sem desmontar dos animais.

         - Vamos encontrar quem nos desafia... – falou Régis, já se distanciando atrás de uma fileira de arbustos.

         Jorge perguntou-se se na verdade não seriam eles mesmos quem desafiavam Caster e seu mestre, invadindo a praça daquele jeito.

         Criando coragem, o mestre de Berserker seguiu-os, o galopar de Sleipnir sobre o calçamento irregular soando tão alto que mais parecia o trotar de um tanque de guerra com pernas. Preocupou-se em empurrar Daniela, porém a maga já se adiantara, movendo sua cadeira pelo asfalto plano na direção de uma rampa na calçada. Foi então a vez de Jorge pisar o local, forçando a visão na tentativa de encontrar alguém suspeito entre as sombras. Mas nada viu, assim como os outros. Caster por certo não se exporia tão facilmente. Ela tinha como se esconder, melhor do que eles.

         Até que começaram a ouvir.

         Uma voz extremamente graciosa, feminina e suave como uma brisa de outono. Por alguns segundos o calouro tentou identificar o que cantava, porém ela o fazia numa língua estranha. Graças à convivência com Cíntia em sua cidade natal, no entanto, Jorge pôde identificar algumas palavras familiares: aquilo era celta. Mas não conseguiu ouvir mais: ao mesmo tempo em que acreditava começar a ser tomado por uma espécie de sonolência, veio o alerta de Petruglia:

         - Jorge, é um encantamento! Tampe os ouvidos!

         Quase por reflexo, o garoto ergueu ambas as mãos e selou as orelhas. Régis e Daniela, perto dali, faziam o mesmo – só Odin, sobre seu cavalo, aparentando não se incomodar, tampouco ser afetado pela música. Para um deus devia ser mais fácil resistir, afinal de contas.

         Agora era possível visualizar uma pessoa a mais no lugar, bem no centro da praça. A metros de distância do grupo, de pé, Jorge viu uma mulher resplandecente – essa talvez sendo a melhor descrição para ela. Vestia uma túnica branca do pescoço até quase os pés descalços, pouco de seu corpo estando exposto. As mãos eram cobertas de jóias e a cabeça de pele bem clara, olhos verdes e cabelos castanhos adornados por uma tiara de igual riqueza. De sua fina boca partia a melodia envolvente, enquanto seus braços moviam-se de forma semelhante a duas serpentes, como num gesto para atrair até ela seus adversários.

         Mesmo sem escutar, Jorge viu os lábios de Régis se moverem e pronunciarem perfeitamente a palavra “Caster”.

         Foram instantes de incerteza, a serva continuando a cantar sem que nenhum deles tomasse qualquer iniciativa – muito menos Odin, o único que aparentava ser capaz de salvá-los. Rider, na verdade, mantinha uma postura altiva, quase tão arrogante quanto a de seu mestre, enquanto a cena se prolongava. Talvez ele e Régis realmente se merecessem...

         Até que a melodia aparentemente terminou, a linda jovem fechando seus lábios. E, depois de Régis e Daniela o terem feito, Jorge também liberou seus ouvidos, com as mãos trêmulas. Diante deles, Caster agora sorria. Aparentemente aquela fora apenas a primeira carta em sua manga para uma longa noite de batalha. Para piorar, o calouro ainda não tinha qualquer suspeita de qual espírito heróico poderia ser aquele.

         - Ora, vejo que tenho diante de mim o maior deus de Asgard! – ela finalmente disse, numa voz que carregava deboche.

         - A não ser que seja outra deusa, não deveria zombar assim de meu servo, feiticeira antiga! – rebateu Régis, orgulho certamente ferido.

         - Ainda não pude compreender o desatino no sistema desta guerra que permite a invocação de deuses, mas, quanto à sua colocação... Alguns me viam como deusa, enquanto outros não. Não serei então uma deusa ao menos para aqueles que acreditavam ser eu uma?

         Diante daquele diálogo, Jorge procurava desesperadamente se lembrar de alguma feiticeira famosa que pertencesse à cultura celta. Veio à sua cabeça Morgana Le Fay, da lenda arthuriana, mas ele não conseguia relacionar uma personagem que tanto mal causara nas histórias com uma figura imaculada como aquela. Continuou tentando raciocinar, quando ouviu Petruglia, mais perspicaz, solucionar o mistério:

         - Viviane!

         Então era isso. Viviane, a conhecida “Dama do Lago”. De acordo com os mitos tratando do Rei Arthur e seus cavaleiros, ela era Senhora de Avalon e a mais poderosa sacerdotisa da antiga Bretanha. Vencera até mesmo o próprio mago Merlin com sua astúcia, prendendo-o dentro de uma caverna. Constituía também guardiã da espada Excalibur, que teria sido recebida por Arthur de suas próprias mãos e entregue de volta pelo cavaleiro Bedivere após a morte do rei.

         - Exato – confirmou a serva, assentindo com a cabeça e sorrindo para a professora.

         O medo de Jorge começava a dar lugar a uma raiva da prepotência daquela jovem. Quem ela pensava que era, afinal? Apesar de poderosa, não seria párea para Odin, e nisso tinha de concordar com Régis. O que ela poderia fazer contra o maior dos deuses nórdicos? E, pior de tudo: onde estava Hipólita, supostamente seqüestrada por aquela feiticeira?

         - O que fez com minha serva? – o calouro vociferou, punhos fechados.

         Viviane riu antes de responder:

         - Se é ela que quer... ela você terá.

         Uma figura surgiu subitamente ao lado de Caster... curvada como um primata. Deu alguns passos adiante, adentrando a área luminosa da praça... apenas para fazer Jorge e seus companheiros estremecerem de pavor – até mesmo Régis aparentando ser em parte afetado pela visão...

         Era Berserker... e ao mesmo tempo não era. O aspecto físico da serva mantinha-se o mesmo, as vestimentas também. Havia algo, porém, de muito errado. Com a cabeça baixa e o tronco inclinado para frente, a amazona tremia e cambaleava como se não conseguisse se manter de pé por muito tempo do mesmo jeito – talvez não por fraqueza, mas por agitação. Sem sua espada de pedra, movia os braços quase de forma frenética, como se tivesse um ataque nervoso. Gotas de um estranho líquido pingaram sobre as pedras do solo, vindas de sua boca... todos concluindo ser saliva. E o semblante que babava finalmente se ergueu, para o terror de seu mestre. Os olhos de Hipólita estavam totalmente tomados por um brilho vermelho, como se deles emanasse o mais puro mal. Os dentes cerrados e as narinas dilatadas nada transmitiam a não ser ódio. Os músculos contraídos da face ostentavam uma fúria animalesca; enquanto seus cabelos escuros, outrora bonitos, viam-se emaranhados ao redor de sua cabeça suada como a juba desordenada de uma fera ensandecida.

         - B-Berserker? – gaguejou Jorge, incerto sobre o que pensar e petrificado diante daquela visão.

         Viviane tornou a rir:

         - É ela. Ainda usa seu prana para permanecer neste mundo. Mas agora me pertence.

         - O que fez com ela? – berrou o mestre, incapaz de continuar a se conter. – Desfaça! Ela não merece isso!

         - Ela não merecia um mestre como você, rapazinho. Agora está em mãos bem melhores.

         Ainda curvada e aparentemente alheia a tudo e todos, Hipólita permanecia perto de Caster ofegando, grunhindo e se debatendo. Tanto por não suportar fitar cena tão deplorável quanto por buscar respostas para aquilo, Jorge voltou-se para Petruglia e Régis... a tempo de ver a maga balbuciar:

         - Mad Enhancement...

         - Como é? – o pupilo aproximou-se, arregalando os olhos enquanto Régis balançava a cabeça em desaprovação, mas estava aflito demais para socá-lo.

         - O nível de loucura. Todo servo da classe Berserker o possui, é um pré-requisito da invocação. O de Hipólita, pelo que vimos, era baixo, E ou D, com ela mantendo seu raciocínio e sendo capaz de se comunicar, apesar de ter quase perdido o controle algumas vezes. Ao que parece, Caster...

         - Aumentou o nível de loucura dela por magia – completou o mestre de Rider. – Nível B ou A, eu diria. Hipólita perdeu a sanidade, Jorge. É agora uma mera máquina de matar a serviço de Caster. Toda sua fúria será liberada contra nós.

         O que aquele patife estava achando para falar de sua serva daquela maneira? O que ele... foi quando Jorge caiu em si, encarando mais uma vez o terrível estado de Berserker. Caster a colocara contra eles, e nada havia que pudesse fazer. Não era um mago. Ele jurara salvá-la, jurara conquistar o Graal para ela... e acabara gerando o efeito oposto, inserindo a amazona numa ainda mais terrível situação. Tudo sua culpa... sua culpa! Conteve uma lágrima, porém, apertando ainda mais seus dedos nos punhos. Teria de confiar nos dois praticantes de magia que tinha consigo, além do servo que os ajudava. Havia de existir uma maneira... tinham de libertar Hipólita!

         - Colocar uma guerreira selvagem contra mim é típico do povo das ilhas e seus falsos deuses – Odin finalmente se manifestou. – Tire-a já de minha frente se não quiser que eu a esmague sob os cascos do meu cavalo!

         - Não! – Jorge ergueu um braço. – Não podem matá-la! Precisam trazê-la de volta!

         - Talvez Hipólita já esteja além de uma possível salvação... – murmurou Daniela, pesarosa.

         A afirmação cortou o coração do calouro como mil lâminas.

         Nisso, com um gesto de seu braço esquerdo, Viviane fez com que Berserker, ainda curvada e babando, avançasse poucos passos à frente. Rider preparou-se empunhando a lança, mas Caster ainda não havia ordenado que sua escrava atacasse. Moveu a mão livre, abrindo-a diante de si como se esperasse que algo caísse do céu bem no meio de seus dedos... e um brilho amarelado, na forma de algo fino e comprido, cintilou junto ao membro... desaparecendo pouco depois, para deixar em seu lugar um objeto metálico, cuja matéria prateada passou a refletir a esparsa luz noturna.

         Envolvendo o artefato com a mesma mão, a Dama do Lago ergueu-o, segurando-o pelo cabo. Era uma espada – e Jorge jamais vira uma tão imponente. A lâmina longa de dois cortes parecia ter sido forjada com um elemento inexistente naquele plano, talvez pertencente aos próprios deuses. Inscrições nela gravadas revelavam sua antiguidade, embora não fossem a ele compreensíveis. Seu centro possuía um fio dourado, que descia e se ampliava rumo à guarda. Esta, por sua vez, era comprida e revelava incrível esmero em sua composição: em tons predominantes de azul e dourado, encontrava-se talhada com diversas formas geométricas, diminuindo a barreira que separava a arma de um objeto artístico. Três pequenos rubis circulares haviam sido incrustados na estrutura, brilhando tão intensamente quanto os olhos agora rubros de Berserker. Terminava, por fim, numa empunhadura azul e fina, contrastante com o peso que aquele sabre devia ter quando manejado em combate. Mas era uma arma mágica, todavia, e preocupar-se com seu correto manuseio não parecia tão necessário.

         Jorge já deduzira o que era aquilo, porém o espanto o impedia de expressar-se em palavras. Coube a Petruglia essa tarefa:

         - Excalibur, a Espada dos Deuses.

         De fato. Era de se supor que somente o Rei Arthur, se invocado como servo, pudesse utilizar aquela lendária arma, mas a lenda dizia que Bedivere a devolvera à Dama do Lago depois que o rei padecera na Batalha de Camlann. Assim, fazia todo sentido que agora Viviane, invocada para a guerra, a usasse para seus próprios interesses. Ela era a guardiã da arma desde o início, afinal de contas.

         Sorrindo de modo superior, Caster ergueu a espada contra os inimigos. Jorge piscou, imaginando que eles fossem ser pulverizados ali mesmo... mas a sacerdotisa não investiu. Ao invés disso, avançou poucos passos e, com ambas as mãos... depositou o sabre mágico nas palmas trêmulas de Hipólita.

         - Você só pode estar maluca! – exclamou Régis, e pela primeira vez desde que Jorge o conhecera ele parecia realmente prestes a perder a calma. – Ela não pode empunhar Excalibur! Está completamente fora de si!

         - É esse exatamente o ponto, meu jovem – afirmou uma segura Viviane. – Você e essa sua amiga maga são extremamente ordeiros. Esse seu servo, Senhor de Asgard, é extremamente ordeiro. Não há nada mais efetivo para destruir a ordem do que o completo caos. Deixei que a loucura dominasse a Rainha das Amazonas para agora lançá-la contra vocês. O cinturão que o pai dela lhe deu garantirá que quase nenhum ataque de vocês seja capaz de atingi-la. É uma das guerreiras mais fortes que já nasceram neste mundo, uma das servas mais poderosas passíveis de invocação em sua classe. E agora a estou munindo da mais poderosa espada que já existiu. Nada poderão fazer. Ela os transformará em mera poeira.

         Por fim completou, orgulhosa:

         - A filha de Ares empunhando a espada de seu pai, que acabou ganhando fama ao ser usada pelo rei da Bretanha. Parece-me algo justo. É sua herança.

         Hipólita grunhiu, segurando o sabre evidentemente sem entender para que servia.

         - Berserker! – exclamou seu mestre, no auge do desespero. – Sou eu, Jorge! Me escute, por favor!

         Mas ela não esboçou reação, continuando a manusear Excalibur de forma desajeitada.  Sleipnir relinchava impaciente, Odin erguendo Gungnir enquanto as runas inscritas na lança eram tomadas por um brilho azulado, como se a arma possuísse vontade própria e houvesse decidido ter chegado a hora do combate. Seu dono acabou indagando, num tom de enfado:

         - Vamos logo ou não resolver este problema?

         - Talvez falte ainda uma peça no tabuleiro...

         A frase fora pronunciada por uma voz masculina desconhecida. Surgindo de trás de uma árvore, o autor logo surgiu: um homem na casa de seus quarenta anos, de cabelo e barba pretos com os primeiros indícios de grisalho. Semblante tranqüilo, como se fizesse uma caminhada de rotina. Vinha em trajes bastante casuais, ainda mais para a Guerra do Cálice Sagrado: uma camisa polo listrada, bermuda jeans com bolsos em que mantinha as mãos e sandálias de couro nos pés. Régis olhou-o de soslaio, murmurando enquanto mantinha sua atenção dividida entre ele e Hipólita:

         - Bem que senti mais uma presença mágica...

         - Ah, ótimo! – o recém-chegado sorriu descontraído, ainda com as mãos nos bolsos. – Sinal que meu treinamento foi bem-feito. E ah, como estou com vontade de mostrar a vocês o que aprendi!

         - Seus inimigos são os Percival, não nós! – exclamou Petruglia.

         - Eu sei. O problema é que nesta guerra não sou só eu e a freirinha dos Percival. Há mais cinco mestres com seus servos. E eu preciso lidar com eles também, para ganhar terreno.

         - Freirinha? – Daniela ergueu uma sobrancelha.

         O diálogo com “Luca” Cândido foi interrompido por um urro de Berserker, que finalmente erguera o tronco, seu semblante alterado agora permanecendo à vista. Controlada pela magia de Viviane, ela segurava Excalibur pela empunhadura com ambas as mãos, mantendo uma postura quase ideal para o manuseio da arma. Apesar de seu estado selvagem, aparentemente a sacerdotisa conseguia incutir certos comandos em Hipólita para que ao menos pudesse lutar mais satisfatoriamente.

         - Ela não vai se segurar por mais muito tempo, mestre – Caster informou jovial.

         Jorge trocou olhares com seus companheiros, até mesmo com o imponente Odin. Caso quisessem planejar como agir, aquele era o último momento. Haviam tido contato com as circunstâncias da batalha muito tarde, porém ainda poderiam se organizar.

         - Eu cuido da guerreira! – informou Rider.

         - Não pode matá-la! – protestou mais uma vez o mestre de Berserker.

         - Farei o que tiver de ser feito, menino!

         O calouro trocou um olhar quase choroso com Régis, mas este também se mostrou impassível:

         - Ele tem razão. Mas há uma chance de salvá-la. Apesar de o nível de loucura de Hipólita ter ultrapassado qualquer limite seguro, talvez fosse menos difícil revertê-la a um nível controlado se a tirássemos do poder de Caster. Nada conseguiremos enquanto ela ainda estiver sendo afetada pelo encantamento de comando.

         - Então?

         - Vamos tentar derrubar a Dama. Eu e você.

         Jorge olhou para a sacerdotisa por um momento. Se nem conhecia a magia atual praticada no mundo, como poderia lidar com magia antiga, tão mais poderosa?

         - Não pode estar falando sério...

         - Pode ser a única chance de salvarmos sua serva. É incomum um mestre conseguir vencer um servo, mas há precedentes. Ouvi falar de um tal Emiya Shirou na última guerra em Fuyuki que contrariou todas as possibilidades existentes... Além do mais, somos dois. Você pode distraí-la enquanto eu a ataco com magia.

         E quantos membros eu vou perder nessa “distração”? – pensou irônico o garoto, porém logo se lembrou de Berserker. Tinha de salvá-la. Já que era culpado por tudo que vinha acontecendo a ela, o mínimo que podia fazer era se esforçar para tirá-la daquela situação.

         - Feito – confirmou.

         Voltaram-se então para Petruglia. Ela murmurou, apontando discretamente para Luca:

         - Eu cuido do mago.

         - Mas professora... – oscilou Jorge. – A senhorita...

         - Não é preciso pernas para se usar magia, querido.

         E piscou.

         Certo. Tudo estava arranjado. Só faltava alguém tomar a iniciativa.

         Odin, provavelmente tendo percebido que o grupo estava pronto, avançou como um trovão, as ferraduras de Sleipnir deixando marcas fumegantes no solo enquanto Gungnir zunia iluminada.

         O que se seguiu foi movimento, colisões e barulho.

         Não era à toa a classe Rider ser tida como a mais veloz daquela guerra. Numa fração de segundo para a outra, o Senhor de Asgard e sua montaria simplesmente se transformaram num clarão, saindo de onde estavam e investindo contra Berserker como um raio. O cometa azulado, porém, se chocou com uma onda de energia avermelhada, representada por Hipólita em sua fúria enlouquecida. Um urro animal emitido pela amazona propagou-se pela noite, simultâneo ao som das lâminas de Gungnir e Excalibur se enfrentando, os dois servos tão rápidos em seus golpes que mal era possível distinguir suas ações.

         Jorge sentiu-se aflito com a cena, desejando fazer algo para evitar que sua serva fosse liquidada pelo deus. Ela, no entanto, parecia resistir bem às investidas, ganhando tempo para que a tirassem do controle de Caster. O calouro teria de cumprir com o plano. Após trocar mais um olhar com Régis, os dois voltaram-se para Viviane, que se aproximava a passos lentos, pomposa.

         - Isto será divertido! – ela anunciou com prazer.

         Involuntariamente, um espaço se criava entre os dois campos de batalha: enquanto Odin e Hipólita, com seus ataques luminosos e violentos, afastavam-se rumo a um aglomerado de árvores, os garotos e a Dama do Lago permaneciam na área calçada perto do centro da praça. Jorge teve tempo de olhar brevemente para Petruglia: arrastando sua cadeira de rodas, ela retirava-se para uma terceira área, com algumas fileiras de arbustos e bancos próximos à rua, para confrontar Lucas Cândido. Três embates separados, então. Seria até melhor. Apesar de não poderem contar com o apoio da maga, dividir os poderosos inimigos representava um pequeno aumento nas chances de vitória.

         Logo apenas sons e lampejos remetiam às outras lutas. Tensos, Jorge e Régis focaram-se em Caster, de pé e imóveis, aguardando qual seria o primeiro ataque da sacerdotisa.

         - Vamos começar de leve... – murmurou Viviane.

         Em seguida abriu a palma de uma de suas mãos, voltando-a para cima. Os dedos se fecharam lentamente, como apalpando algo invisível... o objeto logo assumindo uma forma física visível, esférica. Um artefato luminoso semelhante a uma bola de cristal, com a diferença de que era composto de pura energia mágica, erupções ocorrendo em sua superfície como se fosse um pequeno sol.

         Rindo, Caster atirou o projétil contra os inimigos. Estes se desviaram saltando, cada um para um lado, criando relativa distância entre si. Talvez fosse essa a exata intenção da serva: separá-los. No trecho do calçamento atingido pela esfera, uma explosão ocorreu, pedaços de pedra voando ao redor enquanto o chão ardia, liberando fumaça.

         Viviane não lhes deu tempo para tomar fôlego: num piscar de olhos gerou outro artefato e também o arremessou. A esfera passou zunindo acima da cabeça de Jorge, que se jogou no solo. O artefato foi estourar atrás de si, reduzindo uma moita quase a cinzas.

         Régis, por sua vez, movia-se com agilidade, tentando prever as direções para as quais a serva atiraria os ataques seguintes. Estava visivelmente tentando se afastar com o intuito de conjurar alguma magia. Apesar do perigo, Jorge pensou não ser tão difícil se esquivar daquelas “bolas de basquete” explosivas. Apressou-se para frente de Caster, tentando atrair suas atenções enquanto o parceiro agia.

         A Dama do Lago não era tola, todavia: percebendo o estratagema do calouro, jogou a esfera seguinte com mais força, fazendo-a voar mais alto e descrever uma maior distância pelo ar. Explodiu aos pés de Régis, que só sofreu alguns rasgos e manchas de fuligem em seu terno por ter conseguido saltar a tempo para trás. Quase simultaneamente outra bola de energia visou Jorge, que precisou se atirar de barriga em cima do calçamento para não ter seu tórax desintegrado. Ignorou o abdômen ralado e ergueu a cabeça, ainda junto ao chão, para confirmar sua suspeita de que agora Caster usava ambas as mãos para criar os globos.

         O mago da Associação passou a correr num semicírculo a alguma distância da inimiga, movendo-se para lá e para cá como se aguardasse. Ou precisava de uma brecha na defesa da serva, ou o encantamento que empreendia era mesmo demorado. As esferas estouravam a metros de si, Viviane perdendo precisão ao ter de atacar dois oponentes ao mesmo tempo – embora Jorge, mais despreparado, se desviasse de suas investidas por muito pouco.

         Pulando para escapar de mais uma direcionada a si, a praça já se transformando num campo de crateras, o protegido de Petruglia tornou a fitar o colega, constatando que agora ele fazia estranhos gestos no ar com as mãos, pronunciando palavras baixinho com a boca, àquela distância só sendo possível ver seus lábios se mexerem. Viria a magia, finalmente.

         Ao término da conjuração, num dos intervalos entre os arremessos de esferas feitos por Caster, Régis desenhou diante de si uma moldura imaginária, quadricular, como se prendesse a serva dentro da mesma. Em seguida saltou ofegante para escapar do imediato novo ataque da inimiga, o mago não ocultando a frustração em seu rosto. O encantamento não funcionara.

         - Não é possível... – ele murmurou.

         - O quê? – replicou o desesperado mestre de Berserker.

         - Geometrische Gefängnis. Um ataque mágico capaz de envolver alguém numa prisão temporária de prana. Faria com que ganhássemos tempo para elaborar o ataque seguinte. Mas... não funcionou. Mesmo sendo um recurso útil contra servos.

         - Ainda não viram nada do que é a magia antiga – afirmou Viviane, cessando os ataques com as esferas. – Essas suas artimanhas deploráveis dos tempos modernos jamais poderão sequer me ferir.

         Régis, no entanto, pareceu não acreditar em tais palavras. Levantando uma de suas mãos como se ela fosse um revólver, o polegar erguido e o indicador esticado, gritou, apontando-a para a serva:

         - Impulsschuss!

         Uma descarga de energia mágica dourada, semelhante a um pequeno raio, partiu zunindo dos dedos do mago em direção à Dama do Lago. Esta, rindo, apenas ergueu a palma de uma mão para receber com ela o ataque... fazendo-o rebater num ligeiro clarão e retornando para o jovem mais rápida do que na ida, ele precisando saltar para escapar da explosão que a magia causou ao atingir o solo.

         - Droga, ela refletiu meu ataque como se fosse nada! – bradou, nervoso.

         Realmente estavam em maus lençóis. Tinham de pensar rápido numa maneira de vencer aquela mulher, pois a mágica de Régis mostrava-se bem pouco eficiente.

         Jorge forçava-se a pensar, aguardando o iminente novo avanço da inimiga. Qual poderia ser a fraqueza da Dama do Lago? Tentava se lembrar de algo na lenda, mas... só conseguia visualizar Viviane enganando Merlin e recebendo Excalibur do cavaleiro Bedivere! A sacerdotisa aparentava não possuir fraqueza alguma...

         Sacerdotisa... Ela era uma sacerdotisa da antiga religião celta...

         Religião que desaparecera pouco a pouco quando o cristianismo chegara à Bretanha. Muitas versões do mito de Arthur inclusive falavam dessa dicotomia, da disputa entre as duas crenças, sendo que o paganismo acabara levando a pior...

         Será que...

         O calouro correu até Régis. Antes lançou um breve olhar para Caster: ela tornava a arremessar esferas de energia, uma de cada mão. Pulou para escapar de uma e, mais próximo do colega – que também se esquivava – jogou-se adiante escapando de outra. Conseguiu finalmente chegar perto o suficiente do mago, aproveitando a momentânea pausa da serva, para então falar-lhe baixinho:

         - Ela é uma sacerdotisa antiga... De uma religião vencida pelo cristianismo... Talvez se pudéssemos usar algo do tipo na luta...

         Régis suspirou, muito mais de frustração do que de alívio. Isso irritou seu parceiro, mas o mestre de Berserker não conseguiria muita coisa se derrubasse a ele ao invés de Caster.

         - Seu raciocínio tem até lógica, mas o que propõe que façamos? – replicou o membro da Associação. – Ajoelhemos e peçamos por intervenção divina? A Guerra do Cálice Sagrado não funciona assim!

         Em seguida se separaram, desviando-se de uma bola de energia que estourou entre ambos.

         O mago correu tentando prever as próximas ofensivas de Viviane, mas não teve muito sucesso: criando em sua mão direita uma esfera de energia com o dobro do tamanho das anteriores, atirou-a contra Régis... acertando-o em cheio no tórax. Uma explosão luminosa tomou parte da praça enquanto o colega de Jorge, com as roupas faiscando, era atirado contra o tronco de uma árvore, colidindo de costas e, num gemido, aparentemente perdendo os sentidos.

         O corpo do calouro da Unesp gelou. Sentiu-se incapaz de se mover – não sabendo se por magia ou simples medo – enquanto a Dama do Lago caminhava em sua direção, resplandecente, o sorriso na face e os leves passos descalços sobre o calçamento mascarando suas intenções.

         Agora eram apenas ele e ela. E se nem um hábil conhecedor de magia pudera sequer arranhar aquela serva, então Jorge estava mesmo em maus lençóis.

         Antes de alcançar o jovem, Caster deteve-se e ergueu suavemente um dos braços, fazendo o oponente ser levantado alguns centímetros acima do chão por uma força invisível, ao mesmo tempo em que era conduzido flutuando para perto da sacerdotisa. Pálido, o mestre de Berserker encarou os sinistros olhos sádicos de Viviane conforme se aproximavam. Julgou ser seu fim. Não havia como escapar daquilo.

         - Sabe o que eu farei depois que terminar com vocês? –inquiriu ela, já certa de sua vitória.

         Jorge não tinha intenção de responder; porém mesmo se quisesse, o brusco movimento feito pelo braço da Dama que o mantinha erguido o teria impedido. Acabou atirado violentamente contra o chão, de costas, sentindo sua pele rasgar e algumas costelas serem fraturadas. A ferida obtida na luta contra Archer se abriu. Mordeu os lábios de dor, tentando ignorá-la o máximo que pudesse. Caso não tentasse, seria um longo caminho até morrer. Caster não aparentava estar nem um pouco disposta a encurtá-lo.

         Segundos depois, ainda tendo-o sob seu controle e impossibilitando-o de se mover, Viviane tornou a erguer o rapaz, fazendo suas juntas latejarem. Posicionou-o novamente de frente para si, como se quisesse que ele contemplasse seu semblante cruel até o instante em que perdesse a vida.

         - Usarei sua serva para conquistar o Graal... – afirmou. – Depois, quando não for mais útil, talvez eu me divirta um pouco às custas dela, assim como estou fazendo com vocês. Sabe, eu uma vez adotei um filho. Mas ele era nobre demais para este mundo. Nobre demais. Tão nobre que não o souberam reconhecer, e este mundo o reprimiu, fazendo-o cair em desgraça e mergulhar na loucura. Quando tudo terminar, eu acho que irei oferecer sua serva a meu filho. Ela não irá questionar. Parece mesmo só viver para ser abusada pelos outros, ao que parece...

         O corpo de Jorge tornou a estremecer, mas agora de fúria. Sua visão se turvou, o fluir da adrenalina enrijecendo seu tronco. Por um momento esqueceu a dor, ignorando-a como se não importasse estar prestes a morrer, não importasse perder os braços ou as pernas, não importasse ter seu coração arrancado por aquela repugnante mulher... Ela não tinha o direito de falar daquela maneira. Não de Berserker. Não de Hipólita.

         Como um filme, reviu em sua mente a cena na biblioteca da faculdade, quando descobrira sobre o passado de sua serva e se sentira tão mal diante de sua personalidade resignada e apática em relação a tudo que já sofrera. Hipólita era uma guerreira – tanto pelo fato de ser uma amazona, quanto por ter vivenciado tanta tristeza e traição sem desistir. Sem se entregar.

         Aquela bruxa não tinha o direito de falar daquele modo.

         Cheio de ódio, Jorge começou a forçar seus músculos para sair daquele maldito encantamento. A dor do esforço logo o acometeu, somando-se às demais vozes do coro de pontadas que afligiam seu organismo como agulhas incandescentes. Mas mesmo se rompesse todos os ligamentos dos braços, ainda que tivesse de amputá-los e lambuzar aquela desgraçada com seu sangue... ele tinha de reagir. Ensiná-la a não ser uma mesquinha arrogante.

         Os ossos estalaram. Viviane, notando a incrível força de vontade de sua vítima, riu com maior intensidade. Adorava quando alguém tão insignificante se agarrava à vida com tamanho afinco. Só errou em seu julgamento: naquele instante, a vida não mais importava para Jorge. Apenas queria que ela morresse.

         Foi quando, além de adrenalina e raiva, algo mais passou a correr pelo sangue do garoto, que brotava das feridas abertas em seu corpo. Um combustível novo, potente, capaz de fazê-lo vencer suas mazelas para realizar grandes feitos. A pura essência dos chamados “espíritos heróicos”, concedida a um reles humano desejoso de vingar uma injustiça. Viu-se revigorado. Seria aquilo...

         Prana?

         Numa fração de segundo, os olhos até então sádicos da Dama do Lago mudaram para uma súbita expressão de surpresa... enquanto o braço direito de Jorge, punho fechado, chocava-se de modo violento com o rosto de Caster, lacerando sua bochecha simultaneamente ao som oco da mandíbula se partindo e de dois ou três dentes voando para fora de sua boca...

* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

         A ponta de Gungnir encontrava a lâmina de Excalibur a cada momento, as duas armas dançando num balé frenético e quase impossível de ser acompanhado por olhos mortais. Faíscas voavam a todo momento, metal se chocando com tamanha força que era de se surpreender nenhuma das estruturas quebrar. Aquelas armas mágicas, ambas divinas, possuíam incomum resistência e poder. Seus portadores eram, também ambos, representação de força sobre-humana – embora contrastassem bastante entre si.

         Enquanto Odin, montado em Sleipnir, tinha em sua postura de combate uma quase perfeita representação de ordem, Hipólita saltava selvagem sobre o cavalo a cada segundo, tentando atingir Rider com desajeitados golpes aéreos – que poderiam ser bloqueados com mais dificuldade se a serva não abrisse tanta mão da precisão para, em sua fúria descontrolada, focar-se apenas na força. Sem estar dominada pela loucura e permanecendo munida daquela arma, a amazona seria uma oponente formidável. Mas os sentidos nublados e a incapacidade de raciocínio faziam dela apenas um corpo raivoso de alma aprisionada, que seria derrubado por Odin na primeira brecha que abrisse em sua guarda. O único problema era que, fosse por auxílio do encanto de Caster ou por pura capacidade daquela guerreira, ela aparentemente não se encontrava nem um pouco próxima de cansar-se.

         - Não és digna de ostentar o título “Berserker”, mulher sem brilho! – exclamou o deus, ao mesmo tempo em que manejava sua lança para cortar as investidas da adversária. – Antes de designar servos desta guerra, ele se referia a bravos guerreiros nórdicos que a mim serviam, em sua fúria arrasando seus inimigos. Mas em sua fúria, mulher, arrasa somente a si mesma!

         A resposta de Hipólita foi um urro descomunal e um rasante com a espada mais poderoso que os anteriores. Odin defendeu a si e a Sleipnir com a lança, mas cavaleiro e montaria foram empurrados alguns metros para trás – a onda cortante gerada pelo golpe da amazona conseguindo partir ao meio o tronco de duas árvores próximas, uma de cada lado. As copas vieram ao solo pesadamente, Berserker correndo em meio às folhas que voavam rumo ao inimigo.

         Armas novamente colidiram. A força a cada golpe desferido era titânica, e nenhum dos servos conseguia romper a defesa do outro. Para poder abrir a guarda da guerreira, Rider percebeu que teria de afastá-la, ao invés de mantê-la perto de si. Atacou com Gungnir – esforço suficiente para Hipólita recuar por um segundo – e puxou as rédeas de Sleipnir. O cavalo de oito patas relinchou alto, o som ecoando longe pela madrugada, enquanto transformava-se junto com seu dono num só foco luminoso de energia, que se dirigiu em velocidade fortíssima contra Berserker. A serva, grunhindo, conseguiu minimizar o impacto ao defender-se com Excalibur, mas ainda assim foi arremessada para o outro lado da praça, indo pousar ruidosamente sobre um banco, reduzido quase a poeira devido ao impacto.

         Sem perder tempo, Odin avançou em sua direção, na esperança de conseguir surpreendê-la antes que pudesse se recompor. Venceu a distância de metros que o separava da adversária num piscar de olhos, mas quando deu conta... seu braço direito já se erguia em reflexo, brandindo Gungnir, para bloquear mais uma investida destrutiva de Hipólita.

         - Você não desiste? – bradou, já sem paciência.

         Berserker só urrava, golpeando seguidamente com Excalibur como um açougueiro picando carne. Não demonstrava nem um pingo do porte esperado para alguém que empunhasse aquela lâmina, o que fez Rider sentir mais desprezo ainda por Caster. Talvez fosse mais digno libertar aquela amazona, viva, do jugo da sacerdotisa... mas, nas presentes circunstâncias, pouco poderia fazer além de atacá-la com força bruta.

         Tentando novamente romper sua guarda, Odin tornou a investir... e um novo clarão piscou na noite.

* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

         Sangue escorreu pelos lábios entreabertos de Viviane. Ela recuou alguns passos, vencida pelo espanto – acabando por descuidar de sua mágica e assim fazendo com que Jorge escapasse de vez ao seu controle, o jovem pousando de pé sobre o chão. Mantinha os punhos fechados, a raiva consumindo-o. Não havia acabado. Muito pelo contrário.

         - C-como isto é possível? – ela balbuciou incrédula, sinceramente confusa. – Você jamais poderia resistir ao meu encanto! Nunca conseguiria me tocar!

         A resposta do calouro deu-se pela ação: avançou novamente contra Caster, as mãos tomando impulso como se em poucos instantes ele houvesse se tornado um exímio lutador. Abalada, a Dama do Lago não pôde desviar a tempo, sendo atingida pelo soco no centro do abdômen. Voou para trás, gemendo enquanto mais líquido vermelho subia-lhe até a boca. Jorge ofegava, o ódio como energia. Parecia que ele entrara em estado de “berserk”, assim como sua serva.

         Só um desejo existia em sua mente: vingar Hipólita pelas maldades cometidas por aquela feiticeira.

         - E-espere, garoto...

         O apelo de Viviane de nada serviu. Outro golpe, agora na forma de chute, visou seu joelho esquerdo. Sob o tecido da túnica, o membro curvou-se junto com o som de ossos quebrando. Caster gritou agoniada. Ela foi ao solo, acompanhada de um forte tapa do oponente em sua cabeça. Era apavorante, mas... ela não estava conseguindo reagir.

         - Bruxa pagã! – exclamou Jorge, completamente alterado. – Patrício expulsou as cobras da Irlanda... E eu a expulso daqui!

         O fato mais amedrontador constituía o de o garoto não ter desejado falar aquilo. Ele, de certa forma, tinha consciência de seus atos... Mas, embora houvesse escapado aos comandos da sacerdotisa, agora um outro tipo de força misteriosa o conduzia. Junto com a fúria que o dominara, algo mais viera... como um monstro adormecido dentro de si, despertando subitamente.

         - Não pode ser... – oscilou a serva. – Você é...

         Mais um chute, agora no queixo, arrancou mais sangue dos lábios da Dama do Lago, fazendo-a cair de costas em cima do calçamento, braços abertos. Seu rosto, outrora belo e límpido, já se transformava numa sinistra máscara vermelha com feridas abertas e inchaços. Jorge, porém, era incapaz de se deter. E seu mais profundo íntimo, por conta disso, começava a entrar em desespero.

         - Esposa do diabo, morrerá aqui! – bradou, suas cordas vocais tendo vida própria.

         Num golpe bruto, o rapaz moveu uma das pernas para pisotear o rosto de Caster... mas ela recuou deslizando pelo chão, indo parar alguns metros adiante, ainda deitada. Apesar de tudo, riu, engasgando-se com sangue... enquanto seus machucados se fechavam e os ossos do joelho se reconstituíam.

         - Subestimou-me, espírito heróico! – falou Viviane. – Sua presença definitivamente não é a de um mortal comum.

         Por que é que ela o chamava de “espírito heróico”? Ignorava. Naquele momento, seu corpo em frenesi só queria eliminá-la daquele plano de existência.

         Mas, de fato, Caster não era assim tão fraca. Estendendo um braço com a palma da mão aberta na direção do oponente, criou uma forte lufada de vento que o afastou de si. Era uma entidade da natureza, afinal de contas, capaz de controlar suas forças. O ataque, porém, não tirou de Jorge seu ímpeto assassino... por mais que o mesmo já o incomodasse, sendo fonte de medo ao invés de força para derrotar aquela inimiga.

         Levantando também o outro braço, a serva passou a gerar uma espécie de muralha de vento ao redor de si, impossibilitando a aproximação do mestre de Berserker. Já tinha o sádico sorriso de volta ao semblante, como se ignorando a afronta que causara ao adversário. Mas o espírito furioso que o dominara ainda estava longe de se esquecer...

         Tentou correr até a Dama do Lago por alguns instantes, a forte corrente de ar empurrando-o para trás a cada avanço. Além de tornar o garoto incapaz de se conter, aquela força também aparentava prejudicar seu raciocínio. Logo parou, vendo que sua tática era ineficaz, e pôs-se a aguardar o próximo ataque de Caster. Seria mais fácil reagir com base em seus movimentos.

         Ela esticou um dedo indicador, por certo para conjurar alguma magia contra o rapaz... mas seus olhos logo se arregalaram, transparecendo sua surpresa ao ver que nada acontecera. Realizou o mesmo com a outra mão, mantendo a barreira de vento, ainda sem obter resultados. Abriu a boca, sem que palavras saíssem. Não havia como expressar seu pavor verbalmente.

         - Você... – por fim suspirou.

         - Seus encantamentos agora são inúteis contra mim, bruxa!

         Caster compreendeu. Ela poderia apenas afetá-lo usando as forças naturais ou atacando de maneira indireta. Magia não teria mais efeitos sobre ele diretamente. Desorientada, procurou pensar rapidamente num plano de ação, mantendo sua defesa de ar... quando, para seu espanto, algo começou a pouco a pouco suprimir o vento, e não era Jorge.

         - Die Tür der Wetter! – gritou uma voz masculina.

         Viviane voltou-se para o autor da magia, enquanto o pupilo de Petruglia aparentava ignorar a intervenção, buscando apenas uma brecha para se aproximar da inimiga. Atrás dele, Régis, com o terno em frangalhos e um sangramento na testa que lhe escorria pelo rosto, mantinha um braço estendido, mão aberta envolvida por um brilho azulado. Acima de Caster, o vento de sua muralha semi-invisível passou a convergir para um único ponto, arrastando folhas e outros detritos consigo, até se afunilar de uma maneira semelhante a um pequeno tornado e desaparecer – deixando apenas a brisa fria da noite.

         A Dama do Lago viu-se de braços abertos, desnorteada. Diante de si, Jorge, ainda dominado por uma fúria sobre-humana.

         - Acabou – Régis decretou, macabro.

         Os olhos de Caster piscaram nervosos.

* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

         Daniela acompanhou Lucas até a área mais afastada da praça. Atrás de si ecoavam os fortes sons dos demais confrontos, a maga esforçando-se para que não desviassem sua atenção. Se quisesse auxiliar seus companheiros, teria de lidar sozinha com aquele adversário.

         - Está bem, Cândido – ela falou finalmente, quando se detiveram num local cercado de bancos. – Mostre-me o que sabe.

         O mestre de Caster retirou as mãos dos bolsos, exibindo nas costas de uma delas seus selos de comando. Um deles já havia sido gasto. Teria Viviane demonstrado resistência em obedecer às suas ordens quando invocada? Bem provável, ainda mais se considerando ser aquele mestre bastante inexperiente.

         - Prometo não forçar muito... – ele murmurou. – Vou guardar meu verdadeiro poderio para a Percival.

         - Há uma diferença básica entre mim e os Percival. Eu tenho misericórdia. Eles não.

         - Grato pelo aviso.

         Em seguida, como um pistoleiro do Velho Oeste participando de um duelo, Luca levantou velozmente a mão direita, os dedos posicionados como se reproduzissem o formato de um revólver, e disparou um projétil de energia, cor arroxeada, contra Petruglia. Esta, para surpresa do atacante, nada fez para se defender, recebendo a descarga no peito. Nem sequer estremeceu, porém. Transcorreram alguns segundos com os dois oponentes se encarando, calados, a tensão quase visível. Foi quando Daniela se manifestou:

         - Boa tentativa.

         - Mas... – o rosto do mago era pura confusão.

         - Cacoēthes. Encantamento que visa infectar o alvo com alguma doença pestilenta. Apesar de não-letal, torna qualquer um incapaz de continuar lutando. Um bom ataque. Gosto da escola latina de magia.

         - Não entendo...

         - Meu jovem, mesmo se eu não houvesse me precavido, qualquer doença dificilmente debilitaria ainda mais este corpo já tão maltratado. Mas foi ingenuidade sua ignorar que eu conjuraria algumas barreiras de proteção em meu corpo.

         Mal o inimigo teve tempo de assimilar a informação, a professora exclamou:

         - Holen Sie ihn Schatten der Nacht!

         Dois sinistros vultos negros, como sombras não-naturais, partiram cada um de um lado da cadeira de rodas de Petruglia, avançando rumo ao mago. Este, a julgar por seus gestos, tentou conjurar às pressas uma barreira, porém acabou agarrado pelos braços e, aos berros, atirado sobre um banco próximo, sobre o qual caiu desajeitado, mas sentado.

         As sombras desapareceram.

         - Fique quieto e escute! – pediu a idosa, mais em tom de ordem do que de convite. – Não precisamos brigar. Podemos unir forças contra os Percival. Temos um inimigo em comum. O Graal pode ser seu no fim!

         - O Cálice não me interessa... – Luca quase rosnou, ainda imóvel.

         - Pois então! Por que ainda lutamos?

         - Eu só quero vencer os Percival... Mas Viviane deseja o Cálice. Fizemos um trato. Tenho de cumpri-lo.

         Erguendo ambas as mãos, ele em seguida bradou:

         - Vade retro!

         Um forte impulso mágico fez a cadeira de Daniela recuar vários metros pelo calçamento, ela tendo de se segurar para não ser atirada para fora. Tão logo desacelerou, travando as rodas para que não girasse, reagiu:

         - Stein in Fleisch!

         O banco em que Cândido estava emitiu breve brilho... dois longos braços, feitos da mesma pedra do assento e projetando-se do encosto, prendendo o mago num abraço antes que pudesse escapar. Ele se debateu na tentativa de se libertar, porém seus esforços só fizeram os membros rochosos o apertarem mais forte. Daniela cometeu um lapso, todavia, esquecendo-se de tampar-lhe a boca. Luca pôde, assim, conjurar:

         - Donec in exitium!

         Numa onda de vibração fortíssima, originária do corpo do mestre e propagando-se num espaço circular, tanto os braços de pedra quanto todo o encosto do banco foram desintegrados, os escombros caindo ao redor em meio a uma ligeira nuvem de poeira. Cândido pôs-se mais uma vez de pé, estalando o pescoço. Petruglia procurou contra-atacar a tempo:

         - Impulsschuss!

         O disparo de energia, entretanto, foi desviado por Luca com uma só mão. Para isso ele havia se precavido, pelo visto. Já partia correndo na direção de Daniela, provavelmente preparando uma poderosa magia a ser aplicada de perto, porém a maga ainda possuía um trunfo na manga...

         - Morgana!

         A familiar coruja – até então despercebida – ergueu vôo do galho de uma árvore próxima, atrapalhando o oponente ao dar um rasante sobre sua cabeça com as amplas asas abertas. Criou-se o momento de que Daniela precisava. Erguendo ambas as mãos na direção do mestre de Caster, pronunciou as palavras necessárias:

         - Pixies der Nacht, machen ihn fest schlafen!

         Um estranho pó brilhante, misturado às partículas de ar, surgiu repentinamente flutuando em torno de Luca. Aturdido ainda com a investida do pássaro, fez menção de recuar... mas as pálpebras pesaram e as pernas não mais o obedeceram. Acabou rodopiando trôpego ao tentar correr, desabando sobre o solo mergulhado em profundo sono.

         A luta estava terminada. E Daniela, preocupada, dirigiu-se até seus companheiros.

* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

         Segundos aparentavam se passar tão longos quanto horas, enquanto Jorge, de pé e ofegante diante de Caster, não partia em seu próximo ataque. Encarou a sacerdotisa fixamente, seus olhos furiosos encontrando as pupilas amedrontadas de Viviane. Mais atrás, Régis apenas assistia – embora de prontidão. Subitamente, o possesso mestre de Berserker avançou.

         A Dama do Lago movimentou os braços na menção de reagir com alguma magia, mas não houve tempo: o adversário saltou sobre si como uma fera selvagem. Tornando a derrubá-la, passou a socar seguidamente seu rosto, sem trégua, os golpes alternando-se entre urros de raiva. O semblante regenerado da serva logo se tornava de novo um mar de vermelho, as feridas se propagando velozmente. Até que, num espasmo de seu corpo, ficou imóvel, a consciência perdida.

         - Pare, Jorge! – exclamou o mago da Associação, aproximando-se.

         Mas o descontrolado garoto não obedeceu. Continuou batendo, batendo e batendo... Receoso, Régis desviou os olhos da cena, com medo de deparar-se com a face de Caster num estado pior do que gostaria de ver... Quando Jorge, ofegando de forma cada vez mais profunda, finalmente parou, levantando-se lentamente de cima da sacerdotisa desacordada. Viva, ainda, já que o parceiro conseguia sentir sua presença mágica.

         De pé, o protegido de Petruglia posicionou-se ao lado da serva inimiga, curvado... numa pose quase idêntica à de Hipólita em seu estado enlouquecido.

         - O que deu em você? – Régis questionou em tom de humor, com seu semblante, no entanto, demonstrando preocupação por não entender o que se passara.

         O parceiro não replicou. Continuou apenas respirando com dificuldade, como uma besta em breve período de repouso. O mestre de Rider, por sua vez, abaixou-se ao lado de Viviane, procurando não fitar seu rosto desfigurado. Não se reergueria tão cedo. Comprovar aquilo lhe gerou um sorriso de satisfação. Retirando de dentro de seu terno rasgado um punhal até então incógnito – de cabo prateado com inscrições incompreensíveis e uma lâmina de fio dourado – enterrou-o no peito de Caster, perfurando-lhe o coração.

         O corpo da serva desvaneceu, convertendo-se em minúsculos pontinhos brilhantes que, num espetáculo até um tanto bonito, foram levados pouco a pouco pela brisa da madrugada.

         - O que você fez? – a voz conhecida veio das costas de Régis.

         Virou-se. Jorge, de volta a si, o interpelava de olhos arregalados. Ignorava, aparentemente, as manchas de sangue nos próprios punhos.

         - Eu terminei o que você começou – respondeu o representante da Associação com frieza. – Eliminei Caster. Um servo a menos na guerra. E devo dizer que se saiu muito bem. Não pude ver a luta, mas é raro um mestre conseguir confrontar assim um espírito heróico, ainda mais com tão pouca experiência.

         - Não estava conseguindo me controlar! – o outro afirmou assustado. – Ela era minha inimiga, insultou Hipólita, mas... eu não quis agir assim! Algo me dominou!

         Régis ergueu uma sobrancelha sem compreender... quando ambos notaram algo diferente no local. O constante som de metal em choque, causado pelo embate entre as armas de Berserker e Rider, cessara. Olharam para a área próxima onde haviam visto pela última vez os clarões da batalha. Assim como o resto da praça, estava arruinada, com árvores caídas, arbustos chamuscados e bancos em ruínas – sem contar os buracos pelo solo. Em meio à poeira e à fumaça, duas silhuetas se destacavam. A primeira era a de Odin montado em seu cavalo, a lança Gungnir erguida em prontidão, pronta para retornar ao combate se necessário. A outra era a de uma Hipólita exausta, curvada, porém não mais de loucura... Desarmada, já que Excalibur desaparecera junto com sua guardiã, a amazona mal conseguia parar em pé, exaurida tanto pelo domínio de Caster quanto pela energia gasta no confronto com Rider. Jorge, por sinal, naquele momento também se viu tomado por incrível cansaço, seu corpo inteiro latejando.

         A preocupação com sua serva, no entanto, falou mais alto. Ignorando o mal-estar físico, correu o mais rápido que conseguiu em sua direção, ela percebendo sua chegada somente quando ele estava já bastante perto, um brilho com isso surgindo em seu olhar sofrido... E, ignorando quaisquer pudores, o mestre abraçou-a com força, lágrimas escorrendo-lhe pela face e dela pingando sobre um dos ombros descobertos da guerreira. Não havia qualquer outro lugar no mundo que ele desejaria estar, naquele momento, a não ser ali.

         - Pensei que a houvesse perdido... – ele suspirou, num misto de dor e alívio. – Pensei que não conseguiria conquistar o Graal para você...

         - Me perdoe por titubear, Jorge... – ela replicou, voz baixa. – Eu prometo ser mais forte daqui em diante...

         - Eu é que peço perdão, Hipólita. Por favor... me desculpe.

         Rider afastou-se um pouco com Sleipnir, o animal relinchando. Daniela, em sua cadeira, aproximou-se de Régis, observando de longe o reencontro de seu pupilo com a serva. Falou, enquanto isso:

         - Lucas está desacordado. E pelo visto Caster foi derrotada.

         - De fato... Graças a mim e, principalmente, à fúria de Jorge...

         - Fúria?

         - Acho que ele pode explicar melhor... Assim que se desgrudar de Berserker.

         O mestre de Hipólita não ouviu a constrangedora frase do colega, porém logo deixou de abraçar a serva, ainda com os olhos marejados. Os dois se voltaram para Daniela e Régis e seguiram até eles, Jorge ajudando sua serva a caminhar amparando-a com o corpo. Petruglia observava a aproximação do pupilo ainda com certa inquietação, enquanto o mestre de Rider mantinha no rosto o habitual sorriso convencido.

         - Creio que acabou por hoje... – murmurou o mestre de Hipólita. – Precisamos descansar...

         - Eu não contaria com isso.

         A aterradora afirmação fora feita justamente por Régis. Jorge estremeceu, parando de andar. Sentia que seus piores temores, temporariamente esquecidos durante a batalha, tornavam-se realidade. Berserker, em sua condição debilitada, mal esboçou reação; mas o garoto pôde notar que Daniela arregalou os olhos, fitando algo às suas costas.

         Virou-se. Imponente em seu cavalo, Odin lhes apontava Gungnir em posição de ataque.

         - Eu poderia tê-los fulminado por trás, mas não seria justo – falou o deus. – Darei oportunidade para que a guerreira se defenda.

         - O que significa isto? – Jorge gritou, intoxicado pelo veneno da traição.

         - Perdoem-me, porém esta é a Guerra do Cálice Sagrado – respondeu Régis, amargo e cheio de desdém. – Só podem restar um mestre e um servo para que o artefato se materialize. Lamento ter de tirá-los do caminho deste modo.

         - Mas você disse que entrou na guerra a mando da Associação! – exclamou Daniela, inconformada. – Para encerrar os abusos dos Percival e, além disso, evitar que a conquista do Graal por algum servo mal-intencionado trouxesse danos ao nosso mundo!

         - Tolo é um mestre que entra neste conflito sem a intenção de vencer, professora. E, se minha vida possui um lema, é vencer sempre. A Associação me forneceu uma relíquia de valor inestimável, um fragmento da verdadeira Gungnir, como catalisador para a invocação de meu servo. No fundo, eles também queriam comprovar se seria possível materializar um espírito divino para a guerra. E, como vêem, conseguimos. Tendo Odin como aliado, acredita mesmo que eu perderia esta oportunidade de tomar parte no rol dos maiores magos deste mundo?

         - Para que você deseja o Cálice? – questionou Jorge.

         - O item em si não me interessa. Apenas a vitória. O troféu é visado por Rider.

         - O que vocês magos chamam de Graal, de Akasha, eu chamo de “Fonte de Mimir” – explicou Odin, mantendo a lança erguida. – A origem de todo conhecimento e sabedoria, que brota das raízes da grande árvore Yggdrasil. Sacrifiquei um de meus olhos para que dela pudesse beber. Eu agora a busco novamente, aqui em Midgard por intermédio desse ritual mágico, para que me conceda um antigo desejo.

         - Que é? – inquiriu Petruglia irônica, aparentemente tendo perdido qualquer compostura que se presumiria ter ao falar com o Senhor de Asgard.

         - Restaurar o poder aos antigos deuses, aos verdadeiros deuses! Acabar com esse insulto chamado cristianismo, baseado nesse tal deus Jesus! Fazer com que os mortais nos cultuem novamente em seus templos, não só na velha Escandinávia, mas agora por todo este mundo! Até mesmo a Fonte de Mimir foi esquecida, sendo hoje referida como “Santo Graal”, patético artefato dessa divindade intrusa! Os cristãos corromperam os antigos ritos a nós consagrados, direcionando-os de forma hipócrita a essa falsa crença. Podendo eu fazer o desejo à Fonte, cuidarei para que os deuses de Asgard voltem a ser adorados em Midgard! Seremos, mais uma vez, autênticos espíritos divinos!

         - Esse pedido mudaria significativamente nossa realidade – preocupou-se Daniela. – Isso não o incomoda, Régis?

         - Não, acredite – sorriu o mestre inimigo. – Apesar de todos os pesares e contradições, um dos elementos do discurso cristão é a compaixão. E ela não combina nem um pouco comigo.

         Jorge só ouvia calado. Seu corpo clamava por descanso, a mente quase se auto-desligando devido às poucas energias, mas mais uma vez a raiva – agora pelo colega traidor, com o qual jamais simpatizara – mantinha-o firme. Temeu, por um momento, ser dominado pela mesma estranha força que o levara a derrotar Caster em circunstâncias inexplicáveis; entretanto não reprimiu o sentimento. Régis também teria de pagar.

         - Maga, crie alguma arma para a guerreira! – pediu Odin a Petruglia, impaciente. – Quero terminar logo com isto.

         Berserker ainda não conseguia permanecer de pé. Nem mesmo se manifestara quanto ao que ocorria.

         - Vocês não podem! – berrou Jorge, com todas as forças que possuía.

         - Podemos sim – respondeu um soturno Régis. – Se eles não querem ter uma oportunidade de reação, não é sua culpa, Rider. Deixe a honra de lado e extermine esses insetos.

         As runas na ponta de Gungnir brilharam, o deus já retesando o braço para atirá-la contra a oponente...

         Quando um inesperado clarão, que não proveio da lança, iluminou a noite como um raio... partindo de um ponto desconhecido na praça e indo colidir com o peito da armadura de Rider, numa explosão brilhante. A visão dos presentes foi ofuscada pelo ataque, e quando tornaram a enxergar com clareza, viram uma flecha fincada no tórax do deus, tendo trespassado a couraça de metal facilmente – até mesmo o servo a encarando surpreso.

         - Certa vez, comprei de um mercador viking um líquido para embeber setas que, segundo ele, era o veneno da serpente que você, Odin, e os outros deuses, usaram para torturar Loki preso ao rochedo. Não acreditei na época, porém agora vejo ser verdade. É mesmo capaz de afetá-los.

         A voz masculina não podia ter sua localização determinada; mas Jorge, Hipólita e principalmente Petruglia já a conheciam: o servo Archer, Robin Hood.

         - Que afronta é esta? – bradou Rider, sua voz retumbando pela praça e arredores. – Como ousa armar uma emboscada para o Senhor de Asgard? Enfrente-me como homem! Quando eu pegá-lo, tomarei sua cabeça como troféu!

         - Pois então, boa sorte em me procurar, amigo, já que não pretendo revelar minha posição. E ah, só um aviso: faça menção de atacar essa serva novamente ou um de seus companheiros e dispararei mais uma flecha envenenada. Garanto que a próxima não irá acertar algum outro ponto não-letal.

         - Mas... – oscilou Régis, confuso e irritado.

         - A substância deve estar se espalhando por seu organismo neste exato momento, Odin. Sei que é um deus e sua resistência deve ser acima da esperada em comparação a outros espíritos heróicos, mas eu diria que você requer cuidados. Retire-se com seu mestre ou tornarei a disparar. Vamos deixar esta luta para outro dia.

         Rider e Régis se entreolharam, voltando-se em seguida para os inimigos, expressões faciais cheias de rancor. Era difícil ceder às exigências do arqueiro, perdendo a oportunidade de eliminar Berserker num momento de fraqueza, mas não tinham muita escolha.

         - Vou ter que contar até dez? – indagou Robin.

         Cabisbaixo e por certo se sentindo torturado como nunca por ter de lidar com uma derrota, o representante da Associação Mágica pôs-se a caminhar cabisbaixo para fora do local, andando com cuidado por entre as crateras no calçamento, ainda falando aos oponentes, antes de sumir por uma rua:

         - Nós encontraremos vocês amanhã.

         Odin acompanhou-o, galopando devagar com Sleipnir, sem dirigir palavra àqueles que há pouco estivera prestes a atacar.

         Passaram-se alguns instantes de silêncio, a brisa da noite transformando-se em vento e atingindo com certa rudeza os três ainda na praça destruída. O trotar da montaria de Rider logo cessou, e eles ouviram outro som, desta vez o farfalhar de arbustos. Viraram-se. Envolto em seus trajes verdes, cabeça semi-oculta pelo capuz, Archer seguia até o grupo.

         - Ainda bem que resolvi vigiar vocês, ou já teriam sido desintegrados – afirmou.

         - Por que fez isso? – questionou Jorge, voz fraca. – Somos inimigos!

         - Bem, surgiu alguém mais forte pela frente. Não sabia que um deus estava nesta guerra. Talvez fosse prudente uma aliança estratégica até o derrotarmos.

         Depois do ocorrido com Régis, o mestre de Berserker não estava nem um pouco disposto a forjar alianças. Daniela, por sua vez, demonstrava total falta de ação diante da presença do servo. Evitando encará-lo, era afetada mais uma vez por sua pessoa.

         - Venham, vou levá-los até o esconderijo de meu mestre – disse o ladrão. – Lá poderemos elaborar uma estratégia.

         - Mas nós nem aceitamos sua proposta de aliança... – protestou Jorge.

         E não terminou, pois apagou no instante seguinte, caindo desmaiado.


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