O Violino e a Rosa escrita por Didi8Dedos
PELA FRESTA DO CORTINADO entrava a claridade do dia, meio que envergonhada, tentando sem muito sucesso dar vida ao quarto escuro e silencioso. Jack Aubrey abriu os olhos, sentia-se pesado como um tonel, os braços doíam. Aliás, todas as juntas de seu corpo doíam. Sentou na cama e fitou tudo ao redor. Não estava em casa. Não tinha o cheiro de casa. Pôs os pés no chão e percebeu que vestia apenas uma ceroula. Andou até a parede e abriu lentamente as cortinas para se acostumar com a claridade. O dia estava bonito e quente e a visão dos fundos da taberna do peludo e enorme dinamarquês o fez sorrir.
— Que bom vê-lo melhor - a voz tão próxima o surpreendeu e ele se virou bruscamente para a porta: era a condessa de Norwich, que ao perceber os trajes de Jack, virou o rosto para o lado. - Desculpe-me, achei que você estivesse... vestido... - ela falou em um tom inexplicavelmente vexado, mexendo os dedos na direção dele. - Trouxe algo para você beber.
Jack se enrolou num lençol antes de ver um jogo de roupas limpas sobre a cadeira. No entanto, não perdeu a oportunidade de fazer uma graça.
— Está com vergonha de mim, Gussie? - perguntou divertido com o embaraço dela. - Você já me viu mais despido do que isso.
— Sim, claro - afirmou com os olhos ainda longe dele -, mas éramos crianças.
Jack riu baixo.
— Pode olhar agora - falou pouco depois.
— O que está tentando fazer - ela quis saber, mudando completamente o tom de voz meigo e suave para um quase vociferado pedido - com sua reputação?
Jack arregalou os olhos.
— Como é que é? - ele quis entender.
— Acredito que você tenha se esforçado para conseguir alcançar o posto que ocupa e com a boa imagem que tem. Acredito também que você seja tudo o que ouço dizerem em Portsmouth.
Ele ergueu a sobrancelha e levou as mãos à cintura. Por um momento, vê-lo naquela posição, trouxe à condessa dezenas de boas lembranças, mas ela sabia que Jack não havia entendido a colocação.
— Coisas boas, Jack. Coisas boas - acrescentou então.
— Você não saberia discernir...
— E por que não? - interveio antes que Jack pudesse completar a oração. - Por que sou mulher? Entendo muito bem de decepções, meu caro.
— Jamais pensei que a veria novamente - ele murmurou para ela, em tom diferente e macio. - Você parou de...
— Sim, parei de lhe escrever.
— Por quê? - quase se exaltou com a pergunta, dando um passo na direção da condessa.
— Porque o conde era um homem passional - ela deu um passo para trás.
— Você poderia ter escrito que iria se casar, eu teria...
— Eu parei de escrever quando fui levada à Áustria.
— À Áustria? - ele fez uma careta engraçada, mas apesar de a condessa querer sorrir, a situação não permitiu.
— Para a casa da mãe do conde. Era uma mulher influente e tinha conhecido o meu pai, antes de toda aquela tragédia acontecer.
— Sim, seu pai era um homem muito poderoso...
— Então - ela prosseguiu ignorando a interrupção -, acreditei que seria melhor nos afastarmos. Eu não queria prendê-lo a uma amizade quase inexistente.
— Gussie, como pôde pensar que eu a esqueceria? Que eu iria gostar de um rompimento, quando você foi a melhor coisa que me aconteceu em todos os tempos?
— Jack - ela advertiu séria, mas ele prosseguiu.
— Mil suposições passaram por minha cabeça. Achei que você tivesse... estivesse... morta.
A condessa baixou os olhos novamente, virando o rosto para a porta de saída. Ao tornar a fitar Jack, porém, seu semblante estava diferente.
— Mandei que um de meus criados fosse a sua casa avisar que o tinham encontrado.
Os pensamentos de Jack se calaram.
— Três dias de ignorância são suficientes, mesmo a uma mulher como a sua.
— Uma mulher como a minha? - ele repetiu ofendido.
— Perdoe-me - murmurou, mas no instante seguinte continuou: - A Sra. Aubrey entrou em minha casa, com ar de superioridade, acusando-me, indiretamente, de ocultá-lo sob o meu teto.
— E não era certo? - alfinetou com ar triunfante.
— Não há dias atrás, meu caro - respondeu furiosa com a insolência, quase a ponto de espalmá-lo com ambas as mãos, afinal de contas, ela era uma condessa. - Termine de se vestir - ela ordenou.
— Não sou um de seus serviçais! - respondeu de imediato, arrependendo-se ao ver os olhos rubros dela e duas camareiras paradas à porta com as mãos sobre as bocas.
— Não é não. Poderia ser, contudo, um dos decapitados lá na praça, esta manhã, e ninguém lhe daria importância alguma.
A porta da casa dos Aubrey se abriu num solavanco, escancarando-se para deixar sair uma senhora desleixada e aos prantos.
— Jack, oh, Jack! Você está bem?
— Sim, estou - respondeu ele abaixando-se para beijar o rosto da esposa. - Apenas precisava ficar algum tempo sozinho. - A esposa pareceu não entender, pois continuava apalpando-o pelos braços, peito, pescoço e rosto, intentando encontrar algum ferimento recôndito. - Eu estou bem! - murmurou pela quarta vez. Sophia sentiu que a resposta não era verdadeira, mas parou de perguntar, permanecendo parada ao lado dele como se fosse sua sombra.
Sophia podia não ser a mais inteligente das mulheres, e era um tanto desligada de tudo que não se relacionasse com a palavra casamento, era apenas com ele que constantemente se preocupava. Apesar de sempre sustentar uma ótima aparência em relação a sua vida conjugal - amava o marido e venerava o que ele representava para a sociedade -, sua vida tinha dado uma guinada de 360° desde que uma tal pessoa se mudara para Portsmouth.
Os dias se passaram e o Almirante Kipling reiterou seu pedido à condessa de que ela deveria se mudar para uma casa que lhe fizesse jus. O almirante era um homem de mais de 65 anos, amável com as mulheres e devorador de homens, alguns lhe pareciam pragas e ele tentava a qualquer custo se afastar dos que lhe eram insignificantes. Por outro lado, tinha uma lista contida por uma dezena de nomes, dos quais se orgulhava dizer ser comandante ou amigo. A condessa de Norwich lhe era preciosa porque a conhecera desde bebê, segurara em seus braços o rosado corpinho que agora se transformara numa exuberante e íntegra mulher, falassem o que falassem dela... O almirante sabia que a condessa era incorruptível. Mas se não o tivesse sabido, no baile que oferecera aos novos comandantes de mar-e-guerra, teria descoberto de forma singular e nada refinada.
Era como ser pudesse apreender o despeito da Sra. Aubrey toda vez que esta vislumbrava ou ouvia o nome de Augusta nas rodas de conversa. E era fácil perceber porque a jovem senhora não se fazia despercebida, revirando os olhos ou bufando como se a condessa fosse algo desagradavelmente inoportuno.
— Senhores, eis que eu vejo um anjo descido do céu - Kipling espiou por sobre o ombro do comerciante, ignorante da situação que acabara de criar naquela roda de amizade.
— Quem poderia ser tal figura? - quis saber Rob Duroi.
— É a condessa de Norwich - respondeu Kipling puxando Duroi pelo braço, para se afastarem dali. Duroi, no entanto, não se moveu.
De onde estava, na entrada do grande salão da casa do almirante Kipling, a condessa conseguia visualizar quase todo o salão e sorriu ao encontrar os olhos amigos de Janet, mas logo a seguir, seu semblante se fechou e desviou o olhar para a outra extremidade do lugar, a poucos instantes vira Sophia Aubrey revirar os olhos ao vê-la entrar. Era muita petulância da mulher, mas a condessa não queria se envolver em alguma inconseqüente picuinha por conta de uma mulher como aquela. Sorriu para um dos oficiais do comandante Aubrey e respondeu a ele um sim, meio que por obrigação, para uma valsa quando ela estivesse disposta, e em seguida foi carregada por outro oficial, amiguíssimo de Kipling, até onde estavam reunidos.
— Sua Graça - cumprimentou Kipling e tomou-lhe a mão assim que ela a estendeu, sorrindo ao ver a pele branca dos ombros aparecendo, sem qualquer receio.
— Meu caro almirante - ela murmurou baixando a cabeça levemente e sorrindo. - Almirante Folks, Dr. Maturin, Janet, comandante Aubrey, Sra. Aubrey.
Todos a cumprimentaram, depois Kipling tomou a palavra.
— Este é Rob Duroi, nosso agente em Dover.
— Senhor Duroi - ela cumprimentou-o estendendo a mão.
Duroi tomou-lhe a mão e a beijou, admirando cada instante como se jamais houvesse outro como aquele.
— Senhora, sou seu eterno escravo - sussurrou Duroi.
Sophia Aubrey soltou um risinho sarcástico e escondeu o rosto logo depois, na manga do casaco de Jack, que a olhou com certa desaprovação, como tantos outros olhos ali perto. O olhar da condessa foi o mais cortante, mas foi Jack quem o recebeu.
— Sua Graça está longe de casa - Duboi comentou, tentando puxar algum assunto.
— E o senhor não está?
— Ó, sim, é claro que estou... - murmurou meio sem jeito e sorriu ao fitar Kipling. Novamente, Sophia Aubrey riu, e agora era repreendida pela mãe, que viera de longe para visitá-la.
— Perdoem-me a intromissão, deixá-los-ei agora, quero ter uma palavrinha...
— Sua Graça não conhece a minha mãe, conhece? - quis saber a Sra. Aubrey. - Sra. Williams - apresentou-a e esperava que a condessa fosse grosseira e estúpida, mas foi bem ao contrário: sentindo-se convidada a participar da roda, a condessa meneou a cabeça, fazendo-se conhecer à mulher que a adularia noite adentro, mesmo a contragosto da filha. Indignada ao estremo e percebendo que não era mais o centro das atenções de seu marido, já que, depois que a condessa parara ali, todos os oficiais e homens não deixaram de cumprimentá-los ou olhá-los de forma estranhamente constrangedora. Mas o pior e muito mais constrangedor aconteceu quando a Sra. Aubrey não soube escolher as palavras e desandou a falar:
— Sua Graça deve estar se sentindo um pouco solitária naquele chalé. Porque não torna a casa, onde deve haver muitos que a bajulam?
— Bem, Sra. Aubrey, ainda não consegui resolver o assunto que me trouxe aqui. É muito difícil encontrar as pessoas certas...
— Tenho certeza - interrompeu Sophia - que Sua Graça não tem pedras em seu caminho.
— Ora, minha cara, todos nós temos calos. Não é mesmo, Sr. Duroi?
— Com toda certeza, Sua Graça - respondeu compelido. - Mas do que mais tenho certeza é que a senhora não poderia negar uma dança a um pobre mortal como eu.
— Com toda certeza que não, senhor.
— Vamos então? - ele estendeu a mão. E naquele exato momento, um jovem alto com um sorriso resplandecente surgiu ao lado de Janet Jankins.
— Jake Jankins! - surpreendeu-se a condessa e Jake tomou ambas as mãos dela e as beijou.
— Seu criado, senhora, retornou - disse com um sorriso maroto.
A alfinetada não poderia ter doído mais: ao ver os olhos e a expressão no rosto do marido, Sophia quase explodiu de ódio, Jack quase rangia os dentes e seus olhos se cerraram, enquanto o canto de sua boca se retorcia numa tentativa desenfreada de não vociferar contra o amigo comandante.
— Dançarei esta valsa com o Sr. Duroi e então voltarei para conversarmos, certo?
— Como dois e dois são quatro - murmurou ainda sorridente, soltando as mãos dela com suavidade calculada.
Jake Jankins e a condessa não se largaram um minuto sequer, e por Deus! que pelo par formavam, os comentários não negavam. Mas as preocupações de Sophia se foram quando a brincadeira noturna lhe trouxe a certeza de que Jankins estava muito interessado na condessa. Era o costume as mulheres entrarem no labirinto de cercas vivas e se esconderem de seus maridos ou noivos - no caso da condessa, um futuro pretendente. Mas a condessa não era mulher de participar daquele tipo de joguete, ela preferia passar a noite discutindo sobre política ou caça. No entanto, para agradar ao insistente pedido do almirante Kipling, ela aceitou. Entrou sem pressa pelo lado em que a sebe era mais baixa e caminhou para o centro do labirinto. Pelo caminho ela encontrou mulheres risonhas se escondendo agachadas ou com a cara escondida para a sebe. Estas, muito ao contrário do que as mentes vazias pensavam, não abafavam o som e os risinhos que produziam sem qualquer controle. Desorientada pela atenção dada às mulheres, a condessa acabou por se achar num beco sem saída. Ao virar-se para voltar por aonde viera, soltou um grito e deu de cara com Jake, sorrindo ansioso. Ela soltou uma sonora gargalhada e deu um leve tapa no ombro dele.
Jack Aubrey ouvira o grito e num primeiro momento acreditou que houvesse acontecido algo de ruim com a condessa, o que fez com que ele corresse até o lugar de onde viera o som. Chegando lá, contudo, uma aguda pontada em seu peito indicou que chegara ao ápice de seu desafeto por uma única pessoa: Jake Jankins beijava fervorosamente a condessa.
— Oh, pelos céus! - Jack ouviu o sussurro logo atrás de si. Era Sophia. - Parece que finalmente o comandante Jankins conquistou seu intento.
— Vamos sair daqui - rosnou Jack, tomando a mão da esposa e a puxando para fora do labirinto.
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