O Céu e o Mar escrita por Liminne


Capítulo 1
O céu e o mar




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No silêncio da noite, na escuridão do quarto, ouviram-se passos. Pequeníssimos e delicados passos. Haruka estava alerta desde o ranger da porta. Mas não abriu os olhos. Michiru, por sua vez, parecia dormir profundamente com a cabeça encostada entre seu peito e seu ombro, a respiração soprando sua pele no mesmo ritmo suave.

Os passos sumiram. Mas alguma coisa ainda não permitia que Haruka voltasse ao sono. Incomodada, finalmente abriu os olhos. Viu uma silhueta que, depois de piscar algumas vezes, conseguiu identificar.

- Hotaru... - murmurou Haruka, franzindo a testa de preocupação. - Está tudo bem? Aconteceu alguma coisa?

A pequena Hotaru, que devia estar com o equivalente a seis anos, com as mãos escondidas nas costas, ficou rodando os olhos para lá e para cá, balançando de leve o corpo.

- Não consigo dormir. - confessou, enfim, sem encarar Haruka.

Haruka piscou os olhos verdes, sem saber como agir. Geralmente, quem cuidava daquele tipo de questão era Setsuna, mas naquele final de semana ela tinha decidido ficar fora com o namorado, combinando assim com Haruka e Michiru que elas cuidariam de Hotaru. Não houve problemas no acordo, era justo. E além do mais, elas não sempre tinham cuidado de Hotaru? Amamentado, trocado as fraldas, dado banho e... Mas ela cresceu tão rápido e... Alguma outra vez ela já tinha dito a uma delas, no meio da noite, que não conseguia dormir?

- Humm... - Haruka ficou pensando. O que ela mesma fazia quando não tinha sono? Er, bem... Isso não era apropriado para uma criança de seis anos. - Já tentou contar carneirinhos? - continuou sussurrando, para não acordar Michiru.

- Já.

- Talvez devesse contar outra coisa... Quem sabe coelhinhos? - sorriu ao pensar.

- Já tentei.

- Humm... Quer tomar um pouco de leite quente?

Hotaru fez uma careta.

- Eu odeio leite.

- Ah, é. Me desculpe, eu esqueci. - “Deve ser o sono”, ela pensou.

Silêncio.

- Está com saudades da Setsuna? - perguntou Haruka, tentando mudar a tática.

- Um pouquinho...

- É por isso que não consegue dormir?

- Não. Isso acontece às vezes quando a Setsuna está aqui.

- Então o que a Setsuna faz quando isso acontece?

Só que, antes que Hotaru pudesse responder, Michiru se mexeu. Acordou e sentou-se na cama, esfregando os olhos com uma expressão confusa.

- O que está acontecendo?

- A Hotaru não consegue dormir. - explicou Haruka. E acrescentou num cochicho para Michiru. - E eu não faço idéia do que fazer com uma criança que não consegue dormir.

Michiru soltou uma risadinha abafada pela mão na frente da boca.

Haruka arregalou os olhos. Mau sinal.

- Haruka, você nunca foi criança? - começou ela, com aquele tom cantarolando, fingidamente inofensivo.

Mas Haruka a conhecia melhor que isso e sabia que quanto ela falava desse jeito, depois de rir, só podia significar uma coisa: encrenca.

Michiru virou o rosto então na direção de Hotaru e explicou:

- Quando eu era criança e não conseguia dormir, meu pai costumava me contar historinhas.

O rosto de Hotaru se iluminou.

- A Setsuna me conta historinhas! Eu gosto delas.

Michiru sorriu contente e Haruka olhou-a com os olhos diminuídos.

- Bem. Então por que você não vai lá para o quarto da Hotaru e conta uma historinha para ela, até ela dormir? - sugeriu, forçando um sorriso também.

Michiru bocejou teatralmente e voltou a afundar-se no colchão.

- Eu estou com taaanto sono!

- Eu também estou com sono. - resmungou Haruka.

- Haru. - Michiru olhou séria para ela. - Nós prometemos a Setsuna que íamos cuidar da Hotaru tão bem quanto ela. Não podemos deixá-la sem sono e sem historinha.

- É você que está a deixando sem historinha.

- Ela veio pedir ajuda para você.

- Mas não era o seu pai que te contava histórias? O meu pai não me contava nada, então vai ser mais fácil para você se lembrar para contar.

- Como é que eu vou me lembrar? - Michiru pareceu indignada. - Isso já faz mais de dez anos, Haruka! Ai meu Deus, olha só, três horas da manhã. Não posso perder minhas oito horas de sono de beleza.

- Ótimo argumento. Vou dizer isso para a Setsuna quando ela voltar.

- Cada um faz a sua parte.

- E essa tem que ser a minha?

- Bem... Quem foi que fez o jantar?

Haruka abriu a boca para retrucar, mas fechou-a. Droga. Tinha sido derrotada.

- Nós não pedimos pizza na...

- Haruka! - ralhou Michiru.

- Tá bom! - suspirou exasperada e empurrou o cobertor do corpo.

Hotaru ficou olhando para ela receosamente.

- Papai está com raiva?

O coração de Haruka derreteu. Ela então balançou a cabeça e sorriu com doçura.

- É claro que não.  - fez um cafuné nos cabelos pretos da menina e imediatamente sua rabugice evaporou. - Vamos. Papai vai te contar a historinha mais linda que você já ouviu.

Hotaru sorriu animada e elas rumaram para o corredor.

****

Esperou um minuto e abriu a porta do quarto sem fazer barulho. Alcançou o corredor e foi andando na pontinha dos pés, até o quarto de Hotaru. Abriu discretamente uma frestinha da porta, só o suficiente para que pudesse espiar o que estava acontecendo lá dentro. Segurou o riso quando viu. Hotaru estava deitada na cama, embaixo do cobertor, e Haruka estava sentada na cadeira da escrivaninha de Hotaru, com a cabeça um pouco jogada para trás, como se estivesse pensando seriamente. O silêncio imperava no quarto.

- Papai... - Hotaru tentou instigá-la.

Haruka voltou a atenção para ela, como se despertasse de um transe. Michiru quase riu de novo.

- Sim. A história. Eu sei. Só preciso... Só preciso de... - ficou olhando ao redor, como se buscasse desesperadamente por uma inspiração.

Olhou para uma prateleira na parede com luminárias de vários tipos, cores e temas. Era uma coleção estranha, pensou. Olhou para o cobertor de Hotaru estampado de estrelinhas arroxeadas. Não. Já bastava de história sobre estrelas, espaço e afins. Olhou para a cortina pesada tampando a janela na parede do fundo. Aquele quarto era tão escuro. Era noite de lua cheia, não era? Talvez Hotaru devesse...

- Papai? - Hotaru chamou de novo, ficando intrigada com o silêncio de Haruka.

- Ah, me desculpe! - Haruka acordou de novo e mexeu nos cabelos, nervosa. Não precisava divagar tanto. Hotaru era uma criança. Não exatamente uma criança. E além do mais, ela era muito inteligente... Mas, bem, podia ser até uma história chata, não podia? Claro. Só precisava fazê-la dormir.

Michiru quase mastigava os lábios para não rir. Era tão divertido ver Haruka nesse tipo de apuros que para isso sim ela não se importava de perder suas oito horas de sono de beleza. Só queria ver como ela ia sair dessa.

- Era uma vez - principiou Haruka de repente, para espanto de Michiru, de Hotaru e até mesmo dela própria. - o céu. - sentiu as bochechas corarem. Sentia-se meio idiota, por algum motivo, fazendo aquilo. E não estava muito contente com o começo da história. - Nele havia... Er... Nuvens e pássaros e... E às vezes chovia, e às vezes o sol era forte. - pigarreou. Agora estava se sentindo muito idiota. - Nesse céu, morava uma... Criatura. Era como se fosse... - ficou tentando pensar na palavra certa. Lembrou-se de uma certa imagem e sorriu. - Um anjo. - decidiu. - Ela se chamava Wind. Sabe quando você sente o vento soprando sua pele, seus cabelos, fazendo você sentir frio e às vezes te refrescando quando está muito calor? Bem... Isso é obra da Wind. Ela é um anjo muito solitário que gosta de correr pelo céu, sem rumo... E quando ela corre, acontece esse sopro.

- Acho que eu nunca vi essa Wind. - disse Hotaru.

- Mas é claro que não. - agora Haruka estava empolgada com a própria história. - É que a Wind é tão veloz, que a única coisa que as pessoas conseguem ver é a movimentação das folhas, da água, das cortinas, depois que ela passa.

Hotaru assentiu com a cabeça.

- Só que um dia, enquanto ela corria e agitava as águas do oceano, uma voz parou-a. Uma voz que a chamou pelo nome: “Wind!” E então Wind parou para ver quem a chamava. E era uma sereia. Uma linda sereia de olhos azuis e cabelos que ondulavam como o mar. Ela disse para a Wind: “Eu tenho te observado correndo para lá e para cá. Por que você não para um pouco e fica aqui comigo?” Mas a Wind era muito orgulhosa. Ela achava que gostava de ser solitária, que gostava de correr sem que ninguém pudesse alcançá-la. “Meu nome é Sea”, a sereia se apresentou para ela. Mas Wind já estava muito irritada por aquela sereia, que apareceu do nada, já saber o seu nome e ainda por cima, ter sido a única no mundo que conseguiu pará-la e vê-la. Por isso, ela saiu correndo de novo. E deixou a Sea sozinha. Mas como a Wind era tão veloz, ela cruzava o mundo muito rapidamente. E como o oceano é grande, no outro dia, ela encontrou a Sea de novo, em cima de uma rocha, tocando uma linda música no violino. “Wind! Wind!” ela chamou de novo. E Wind parou, porque, no fundo do seu coração, tinha adorado a música dela. “Eu gosto dos seus cabelos dourados”, Sea disse para ela. “E dos seus olhos verdes. Eles se parecem com o oceano onde eu vivo.” Mas Wind, ainda muito orgulhosa, fugiu mais uma vez. Mas não demorou a encontrar Sea de novo. Dessa vez, com uma concha, ela estava desenhando a figura da Wind na areia da praia. “O que está fazendo? Pare com isso já!”, Wind ordenou para Sea. “Mas você é tão bonita. Eu realmente gosto de você.”, disse a Sea. Mas Wind gritou de novo para que ela apagasse o desenho, dizendo que não queria que ninguém a visse. Então Sea deixou que as ondas apagassem seu belo desenho. Wind foi embora, e no dia seguinte, houve uma tempestade. Ela correu ainda mais velozmente por cima do oceano, mas dessa vez não encontrou Sea. Ficou olhando para o céu cinzento até que o sol aparecesse por trás das nuvens de novo, devolvendo-lhe a cor azul. E então Wind pensou que o azul do céu em que morava era igual ao dos olhos de Sea, assim como Sea havia dito que os olhos de Wind eram iguais ao oceano onde morava. Mas mesmo assim Wind não quis dar o braço a torcer. Ela era intocável. Era inatingível. Não podia se juntar a ninguém, não podia deixar que Sea captasse ainda mais detalhes sobre ela. No dia seguinte, houve outra tempestade. E enquanto Wind estava correndo, observando o cinzento do céu, um raio a atingiu e a lançou contra o oceano. Wind só sabia lidar com o oceano superficialmente, não tinha idéia do que havia em suas profundezas. Não sabia nadar. Então foi afundando, afundando, naquele verde que era igual ao dos seus olhos... Pensando que ela morreria ali, afogada como em si mesma, como que no seu egoísmo e na sua solidão. Mas então, quando ela fechou os olhos, sentiu alguém tocando seu corpo intocável. Sentiu que esse alguém a estava levando de volta à sua superfície, numa velocidade incrível. E quando abriu os olhos de novo, estava deitada numa rocha, tossindo e cuspindo água. Ao seu lado, estava o lindo rosto de Sea, preocupado. “O que aconteceu?” perguntou Sea. “Você não se afogou para me ver, não é?” Wind se sentiu muito mal. Sea realmente a amava e a havia salvado. E ela havia negado um simples pedido de ficar ao lado dela. “Não, eu não me afoguei para te ver.”, Wind respondeu, sincera. “Mas agora eu sei que me afogaria para pedir o seu perdão. E sei que me afogaria para ficar com você. Ainda quer ficar comigo?” E Sea sorriu. “É claro que eu quero.”, ela disse. E então Sea mergulhou no oceano novamente, enquanto Wind ficou pairando sobre a água, as duas segurando as mãos e se movendo para o infinito juntas, para sempre.

Haruka suspirou ao terminar. Estava com um sorriso bobo no rosto. Mas então, de repente, lembrou-se do motivo de estar ali falando sobre aquela fantasia louca: Hotaru.

- E e-então, Hotaru. - não pôde evitar gaguejar de embaraço. - Gostou da história?

Mas Hotaru estava dormindo serenamente.

Haruka sorriu de novo. Deu um beijinho na testa da menina e levantou-se da cadeira. Não tinha idéia de quando ela havia dormido, se tinha ficado muito tempo falando sozinha. Mas agora não importava mais. Sua missão estava cumprida.

Quando abriu a porta do quarto, porém, teve uma surpresa. Michiru estava no corredor, olhando para ela com os olhos brilhando intensamente e um sorriso enorme pintado no rosto.

- M-Michiru! - Haruka sentiu-se corar de novo, violentamente. - Há quanto tempo você está aí?

Michiru riu daquele jeito de novo. E Haruka soube a resposta sem que ela precisasse dizer nada: desde o começo.

- Você fez tudo de propósito. - rosnou Haruka, caminhando para o quarto, sem conseguir encará-la.

- Foi uma bela história, Haruka.

As duas chegaram ao quarto e deitaram-se na cama. Michiru apoiou-se no cotovelo para que pudesse olhar para Haruka. Não estava mais com sono.

- E então? De onde foi que você tirou essa história? - perguntou, travessa.

- Bem, eu... - os olhos fujões de Haruka caíram na tela que Michiru havia terminado de pintar uma semana atrás, em que ela, Haruka, era um anjo com asas enormes contra um céu azul cheio de pássaros, usando um vestido adornado de jóias. - Foi um sonho que eu tive. - disse, por fim.

- Um sonho? Verdade?

Haruka finalmente tomou coragem de olhar para Michiru. Seus olhos azuis estavam repletos de encantamento e seus cabelos ondulavam hipnoticamente nos seus ombros. Riu.

- Mais ou menos.

Michiru deixou um sorriso de entendimento dominar seus lábios e depois riu também.

- Eu te amo, Wind. - murmurou.

- Eu também, Sea.

E então o céu e o mar se encontraram num beijo.


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