Volta por Cima escrita por TaisePeixoto


Capítulo 2
O Começo


Notas iniciais do capítulo

Um pequeno mergulho no passado para entendermos melhor o desejo de vingança da Ellie.



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Dia 1º de março

10 anos atrás

Minha mãe estava me levando de volta para aquela ridícula escola de freiras. Eu tinha sete anos e ela me arrastava pelas ruas depois da minha terceira tentativa de fuga frustrada. Ela não entendia porque eu não podia voltar para aquele lugar.

Eu era filha única e vivia em uma rua que outrora fora o centro onde viviam as pessoas mais abastadas da região. Eu morava na capital do país, quase todos que moravam no meu bairro ocupavam cargos na política ou no exército. Como era o caso do meu avô. Meu avô tinha sido o Ministro da Defesa, militar vindo de uma família de militares. Ele e minha avó se casaram com dezoito anos embora tenham demorado muito para ter filhos, minha avó tinha quarenta anos quando minha mãe nasceu já estava tão velha para o primeiro filho que morreu no parto. Vou ter que dizer que foi um alívio para meu avô já que os dois não se suportavam. Minha mãe era a “filhinha do papai” até que decepcionou ele da melhor maneira: casou com meu pai.

Foi um escândalo, a filha do Ministro da Defesa casada com um biólogo. Meu pai era e ainda é professor de biologia em uma escola pública local. Dois anos depois minha mãe ficou grávida.

Meu avô morreu antes de eu nascer, mas não antes de torrar toda a fortuna da família dele. Ele conseguiu se viciar em brigas de galo. Dá pra acreditar? Um velho general barbudo recém saído do Ministério da Defesa no meio de uma roda de velhos apostando dinheiro em qual galo estripava o outro mais rápido. Dá pra imaginar o tipo de relação que meu avô, que não tinha escrúpulos em induzir os galináceos a se matarem, tinha com meu pai, um biólogo militante do Greenpeace.

Quando vovô morreu a única coisa que deixou pra nós foram uma casa no bairro que eu morava até hoje e uma biblioteca enorme, que minha mãe não teve escrúpulos em montar um sebo para vender todos os livros. Pensando bem ela parece mesmo a filha de um apostador de brigas de galo não é?

Ah, e tem outra coisa que vovô me deixou de herança: uma vaga no Gensa.

- Mãe, por favor, eu não posso voltar lá.

- Ellie já chega, eu tenho que ir trabalhar e você tem que ir pra escola. Você não quer aprender a ler para ler todos os livros do vovô?

Desde criança, bem pequena mesmo, eu tinha fascinação por livros. Eu achava o máximo quem conseguia decifrar aqueles símbolos. O que eu não entendia é por que se os pais sabiam ler eles não podiam simplesmente ensinar aos filhos em vez de obrigá-los àquela tortura constante.

- Tudo bem, então me dê um bom motivo pra você não querer ir.

Foi nesse dia que eu aprendi uma lição importante sobre a escola. É igual àquele lance de Vegas, o que acontece na escola fica na escola.

Como eu podia contar pra minha mãe o que aconteceu? Era vergonhoso demais.

Acontece que no dia anterior aconteceu algo que marcaria para sempre minha história no Gensa.

Eu tinha realmente ficado apavorada no primeiro dia de aula, com todas aquelas crianças correndo e gritando, eu não estava acostumada com crianças, no meu bairro só moravam militares aposentados. Mas eu realmente queria aprender a ler. A aula estava maravilhosa, logo no primeiro dia já íamos desenhar letras! Mas a minha alegria na escola na vida inteira durou exatamente duas horas, até dar o sinal do intervalo.

As crianças simplesmente saíram correndo da sala para brincar no parquinho com seus novos amiguinhos. Mas eu não tinha novos amiguinhos para brincar. Fiquei sentada imaginando o que ia fazer até que percebi que eu não estava sozinha na sala. Uma garota mais alta e obviamente mais velha do que eu ainda estava sentada lá no fundo da sala. Ela me olhou e sorriu, e eu sorri de volta.

- Oi meu nome é Samantha, mas pode me chamar de Sam.

- Eleanor, mas pode me chamar de Ellie.

Eu realmente detestava o meu nome, Eleanor, o que a minha mãe tava pensando? Mas era o nome da minha avó, provavelmente ela se sentia culpada de ter matado a mãe dela no parto.

- Então Ellie, o que quer fazer?

E foi assim que começou. Em dois minutos éramos as melhores amigas. Agora que eu tinha uma amiga com quem conversar decidimos ir brincar no parquinho. As garotas já estavam brincando na casinha de bonecas enquanto os garotos corriam dos balanços pro escorregador, enquanto alguns jogavam futebol.

Sam e eu pegamos bonecas e sentamos na sombra de uma árvore para brincar. Decidimos os nomes das bonecas. Foi quando a Sam me fez a pergunta que ia ferrar com a minha vida.

- E aí Ellie quem você quer que seja o pai da sua filha?

Eu olhei para os garotos que jogavam futebol a alguns passos de nós. É normal que as crianças queiram que os caras mais bonitos sejam o pai do filho delas, é a lei natural desde os tempos das cavernas. E o garoto mais bonitinho era o loiro de olhos verdes que tinha acabado de marcar um gol.

E foi nessa hora que eu dei a resposta que ia ferrar com a minha vida.

- Hum, bom eu acho que o Chaz, quero dizer ele é bonitinho.

A Sam sorriu e entendeu. Foi nessa hora que eu ouvi um risinho vindo de trás da árvore. De repente, como a fada Sininho do Mal, uma garota pulou na minha frente. Ela era tão magra que parecia um mosquito, e tinha dentes grandes demais também. Era loira com o cabelo quase branco e com os olhos azul bebê. Era a Tom-tom, minha colega de classe. Ou melhor Stefânia. Eu finalmente tinha encontrado alguém com um nome pior que o meu. A mãe dela devia assistir muita novela mexicana. Mas ela insistia que todos a chamassem de Tom-tom. E era ela quem me encarava com um sorriso zombeteiro, é crianças são más.

- Então Ellie você quer namorar o Chaz, eu posso providenciar isso.

Então a Tom-tom fez a coisa que ia ferrar com a minha vida.

- Ei Chaz, vem aqui.

Eu corei até a raiz dos cabelos, eu não acreditava que aquela maldita mosquita ia fazer aquilo. Aparentemente os dois já se conheciam pois ele largou o futebol pra ver o que ela queria.

- O que é?

Eu corei ainda mais quando ele chegou. Ele era tão lindo.

- Tom-tom não faz isso.

A Sam falou em tom de ameaça. Tom-tom devia ser bem corajosa porque a Sam era dois anos mais velha que ela. Ela não se importou e simplesmente continuou ferrando com a minha vida.

- A Ellie quer namorar com você.

Nesse ponto a maior parte da turma já estava ao nosso redor. Foi a vez dele corar.

- Quem é Ellie?

Cara, eu era tão notável que ele nem sabia o meu nome! Mas é claro que a Tom-tom me faria esse favor. Sem clemência ela apontou pra mim. Todos começaram a dar risadinhas. Até que o Chaz, como o menino de sete anos que era, ficou realmente irritado.

E disse a frase que definitivamente ferrou com a minha vida.

- Bem capaz que eu ia querer namorar você sua... sua... Elliefantinha!

Acontece que aquilo foi realmente malvado da parte dele porque eu era um pouco gordinha. A turma inteira caiu na gargalhada, o Chaz pareceu se sentir um pouco melhor por não estar mais sujeito à humilhação de ser considerado meu namorado. É o que eu digo, ele já não tinha emoções naquela época! E eu fiz a única coisa que uma garota de sete anos na minha situação faria: saí correndo, me tranquei no banheiro e chorei até a Sam chamar a professora pra me buscar.

A Sam foi atrás de mim e tentou me consolar.

- Ellie é sério, não fica assim. Quer que eu chute a bunda dele pra você?

Mas aquilo não ia me ajudar muito. Pensando bem eu devia ter mandado a Sam chutar a bunda dele antes de ele começar a praticar boxe.

Então começou a rotina de humilhações que durariam dez longos anos. Todos me chamando de Elliefantinha e rindo do quão gorda eu era, eu correndo para chorar no banheiro e a Sam do lado de fora ameaçando matar meio mundo pra me fazer sentir melhor.

Eu nunca falei sobre a Elliefantinha pra minha mãe. Ela não entenderia. Eu simplesmente agüentei calada. Pelo menos até agora.

1º de agosto

Seis meses atrás

O dia em que quase morri

- E aí Elliefantinha, eu queria tirar uma foto sua. Pena que eu não tenho satélite.

- Hey Elliefantinha quer ir lá em casa, é que eu to com um vazamento você podia servir como rolha.

Esse era o jeito meigo dos meus colegas me darem tchau. TODO DIA.

- Já chega!

Essa aí é a Sam me defendendo. Ou melhor usando o poder infalível dos peitos dela pra me defender. Como sempre.

- Ah tudo bem Sam, a Elliefantinha até que é bonita. Pena que está no planeta errado.

- Já chega.

E o esquadrão de garotos que estavam rindo histericamente enquanto eu tentava chegar até o portão se dispersou quando ouviu aquela voz. Aquele era o Roy, o namorado da Sam. O Roy também seria alvo das críticas e piadinhas deles pelas roupas de roqueiro que ele usava o cabelo comprido, e o fato de ele passar todo o tempo dele entre as aulas e a constante preocupação de engolir a Sam nas horas vagas no departamento de arte da escola. E cara, ele desenhava bem. Mas eu disse seria, seria se ele não praticasse todo o tipo de artes marciais imagináveis no final de semana. Segundo ele era para aperfeiçoar os movimentos dos mangás dele. Mas nenhum dos meus colegas tava a fim de tentar a sorte com um cara tão grande quanto o Roy.

Saímos nós três no portão. Então como faziam todos os dias o Roy encostou a Sam no muro e os dois começaram a travar uma intensa batalha tentando alcançar as amídalas um do outro. Tirando o fato de que aquilo era incrivelmente nojento, eu também queria dar privacidade a eles. Enquanto eu me afastava podia ficar olhando o movimento. Geralmente eles não paravam até o último carro sair do estacionamento, e olha que isso podia demorar quase uma hora.

Do outro lado da rua os robôs estavam reunidos em torno do carro novo do Chaz, uma Ferrari, diga-se de passagem. As coisas estavam bem no Ministério de Relações Exteriores, será que o dinheiro dos impostos do meu pai estava naquele carro? Chaz se exibia para os amigos, os cabelos dourados brilhando no sol. Era uma pena ele ser tão filho da mãe, porque ele era realmente gostoso. Principalmente com os cabelos molhados depois do treino de boxe.

Mas havia alguma coisa errada. Cadê a Tom-tom? Ela não era do tipo que ficava longe do namorado, principalmente quando ele dirigia uma Ferrari.

Foi quando aconteceu.

Eu estava parada na calçada, ridiculamente encarando um cara que eu odiava quando ouvi a Sam gritar e um carro acelerar. Eu mal consegui distinguir uma mancha branca antes do carro me atingir com toda a força. Senti minha perna quebrar enquanto eu era arremessada pra cima do carro, e depois para o chão. Depois disso ficou tudo escuro. 

Minha cabeça doía e rodava eu tentava tocar nela com a mão mas não conseguia. Eu levantava a mão mas parecia que nunca alcançava minha cabeça. Eu ainda estava de olhos fechados vagamente ciente dos sons ao meu redor. Uma sirene, uma voz estridente que eu descobri ser da Tom-tom, um choro que eu achei que fosse da Sam. E uma voz masculina que falava sem parar. Mas eu não conseguia ouvir direito, eu ouvia tudo com eco, parecia que eu estava em um aquário. Foi então que eu abri os olhos.

Tinha um paramédico colocando alguma coisa no meu pescoço embora eu não estivesse sentindo o meu pescoço. A Sam estava praticamente em cima de mim chorando desesperada, enquanto o Roy tentava inutilmente tirar ela dali. A Tom-tom estava mais acima com uma cara de apavorada explicando alguma coisa pra um cara vestido de policial. Mais na frente estava o Chaz, que aparentemente achou meu acidente mais digno de sua atenção no momento do que o carro novo dele. Era de esperar que o fato de eu abrir os olhos alertasse alguém que eu estava bem, mas ninguém pareceu reparar. Então eu levantei. E foi muito estranho.

Eu tentei apoiar minhas mãos no chão, mas eu não sentia o chão. Sentei o corpo e me apoiei nos joelhos pra levantar. Mas eu não sentia o chão, era como naqueles sonhos horríveis e agonizantes onde parece que você tá pisando em gelatina. Eu tinha sido atropelada, estava me sentindo estranha e estava milagrosamente de pé, era de esperar que alguém tivesse notado que eu estava de pé. Mas eu encarei o Chaz que estava bem na minha frente e ele ainda olhava pra baixo, pra onde eu estava deitada há um minuto.

- Cara, ela tá mal mesmo.

Foi esse comentário do Robert, minha alma gêmea que me fez olhar para baixo, para onde meu corpo estava um minuto antes.

Foi quando eu percebi que na verdade meu corpo ainda estava lá. Apesar de eu estar de pé olhando pra ele.

Foi nessa hora que eu gritei.


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Notas finais do capítulo

Curiosidades:
1 – Assim como a Ellie eu me apaixonei por um coleguinha meu quando eu tava no prézinho, o nome dele era Raul. Por isso eu digo que sempre fui muito precoce com essas coisas. E pior que eu fiquei louca por ele até o dia em que eu saí da escola. O Chaz é baseado nele, o carinha popular que era incrível no futebol, e que foi meu primeiro amor platônico.
2 – Por conseguinte a Stefânia, vulgo Tom-tom, acreditem existe alguém com esse nome, era minha arqui-rival na escola. E ela ficou com o carinha que eu gostava. Enfim chega de fofocas do passado, mas ela era tão cruel quanto a Tom-tom e espero que se ferre tanto quanto ela. Não que eu deseje mal para alguém... =P
3 – O apelido Tom-tom vem do filme De Repente 30 que eu amo de paixão! Pra quem não tinha percebido...
4 - Eu quis colocar fotos de alguns personagens para que vocês vejam como eu os imagino, me digam se tá legal. Acho que vou fazer isso pro resto da fic.